Viagem para lá das estrelas

“Civilizações de Tipo I, II e III”, a primeira individual de Rui Toscano no Museu do Chiado, é o recorte de um tempo para lá da melancolia do fim. O humano existe enquanto elemento do cosmos. Nada mais interessa sobre nós. E isso é inesperadamente libertador. E sublime

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Do espaço incomensurável do cosmos ao ínfimo de uma partícula de pó: o fascínio pela cosmologia tem acompanhado o trabalho de Rui Toscano nos últimos anos Guilherme Marques

Há qualquer coisa de inesperadamente tranquilizador no fim. É que viver com medo é doloroso. Se pensarmos na vida como uma experiência de angústia e cacofonia, cheia de gritos humanos e ruídos de máquinas, então, aquele tempo sem tempo em que já tudo acabou ou está prestes a acabar pode surgir como um manto de serenidade a cair sobre nós. Nada de que fugir, nada a enfrentar, nada por que lutar. Só silêncio e imobilidade. Para sempre, sem interrupção.

É como na cena definitiva de Blade Runner. Estamos no topo do Bradbury Building e é tudo tempestade e incerteza. Rick Deckard tem estado a perseguir Roy Batty para o matar quando, de repente, acaba pendurado numa viga sobre o vazio. É a vontade de um homem desesperadamente abraçada a um pedaço de ferro e o corpo todo a baloiçar sobre o abismo.

Este é o momento em que Roy, o acossado, se aproxima da berma para observar o drama.

É o momento da troca de papéis.

“Toda uma experiência viver com medo, não é? É o que significa ser escravo”, diz Roy lá de cima, os olhos azuis gelados a furar o breu da noite, um sorriso-esgar de um lado ao outro dos lábios.

Roy está em tronco nu, tem sangue a escorrer sobre os olhos, o nariz e a boca. Nesse momento, podia aproveitar para vencer. Em vez disso, no último segundo, quando tudo parece decidido, inclina-se sobre o nada, estende a mão e puxa Deckard de volta a terra firme. E enquanto Deckard fica ali deitado sobre o cimento, ofegante e aterrorizado, Roy senta-se no chão, ainda a observá-lo.

Roy viu coisas que os homens, como Deckard, não imaginariam. Naves de ataque em chamas para lá do ombro de Orionte, raios-C a brilhar na escuridão perto da Porta de Tannhäuser... Com a morte de Roy todos esses momentos desaparecerão no tempo como lágrimas na chuva. E Roy está perto do fim. A vida dos replicantes acaba exactamente aos quatro anos de existência e os quatro anos são ali.

“É hora de morrer”, diz Roy. Então, deixa pender calmamente a cabeça sobre o peito e fica só um recorte de corpo fustigado pela tempestade. Um momento a desaparecer no tempo. Como lágrimas na chuva.

Depois da melancolia
Civilizações de Tipo I, II e III, a primeira individual de Rui Toscano no Museu do Chiado, é o recorte de um tempo para lá deste tempo de melancolia, um tempo em que o mundo já deu a volta completa e o princípio e o fim voltaram a unir-se. A respiração humana ouve-se ainda. Um inspirar e expirar denso e orgânico que invade tudo, como se fosse o sopro da própria exposição.

Talvez este som não passe de uma memória perdida, uma anacronia encerrada numa cápsula a flutuar no cosmos. Parece real, ainda assim. Talvez a voz residual de uma série de civilizações extintas, um condensado dos sucessos e insucessos de todas essas eras e daqueles que as habitaram.

Na exposição, a origem do som é também ela um anacronismo: uma antiga boombox vermelha. É dela que sai a respiração de David Bawman, o astronauta de 2001 – Odisseia no Espaço.

Bowman tinha uma viagem a fazer para lá das estrelas. Como nós, aqui, em Civilizações de Tipo I, II e III, onde o nosso caminho começa em Messier 5, uma pintura negra e branca de grandes dimensões. Representa o aglomerado de estrelas Messier 5 NGC 5904, um cluster da constelação de Serpente situado a 14500 anos-luz da Terra.  

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É a primeira das paisagens que Toscano nos propõem. Há outras. Por exemplo, o grande monocromo vermelho que compõe uma representação poética de uma gigante vermelha, uma daquelas estrelas antigas, muitas vezes maiores do que o sol, que morrem como enormes bolas de fogo. Depois, há a sequência de planetas brancos dos 10 projectores de slides antigos que não mostram nada a não ser luz a atravessar uma máscara circular. E uma projecção da paisagem nocturna do início de Blade Runner – torres de prédios iluminados contra o céu negro, fog e uma nave a passar baixa frente às janelas da cidade, uma e outra e outra vez.

Há qualquer coisa de alienante na contemplação deste sublime tecnológico. Não estamos propriamente centrados em nós. Nem a nossa subjectividade. Na verdade, será difícil apontar um sujeito aqui. Há qualquer coisa. Mas que é demasiado grande para chegar a dar conta da nossa existência. Não existimos enquanto indivíduos. Não temos mais presença ou significado do que as partículas de pó retratadas nalgumas das pinturas que nos rodeiam. Tal como as restantes presenças que compõem o universo, existimos enquanto elementos. Como humanos, existimos enquanto elementos de um colectivo – a humanidade. Aqui, nada mais interessa sobre nós. E isso, estranhamente, em vez de esmagador é libertador.

Temos o nosso papel. Pertencemos a uma civilização. Uma civilização de tipo I. Na escala de Kardashev, que mede o grau de desenvolvimento tecnológico das civilizações, corresponde a uma civilização capaz de aproveitar a energia potencial de um planeta. Foi assim com os Maias e todos os povos pré-colombianos, foi assim no Egipto e na Grécia antigos, foi assim durante toda a nossa era de exploração espacial e continua a ser assim hoje, em 2015.   

Na escala de Kardashev, há outros graus de desenvolvimento. Uma civilização de tipo II, por exemplo, é capaz de aproveitar toda a energia potencial de uma estrela. E uma civilização de tipo III vai ainda mais longe: é capaz de aproveitar toda a energia potencial de uma galáxia.

Estamos no primeiro degrau da pirâmide. Mas, como colectivo, parecemos, ainda assim, colossais – sobretudo se imaginarmos a grande coluna ascendente de um humano sobre o outro, milénio após milénio.

Num pequeno texto, Nuno Faria, o comissário da exposição, refere como Rui Toscano faz aqui “uma aproximação cósmica” entre imaginários, tanto reais como ficcionais, muito distantes no tempo. A mesma aproximação que faz entre escalas. Do espaço incomensurável do cosmos ao ínfimo de uma partícula de pó. O artista explica o fascínio pela cosmologia que tem acompanhado o seu trabalho nos últimos anos, nomeadamente a em exposições como La Grande Avventura dello Spazio, na galeria Cristina Guerra, em 2013, e Journey Beyound the Stars, na Travessa da Ermida, em 2015. Trata-se de observar e descobrir planetas e estrelas para perceber a origem, estrutura e evolução do universo. Mas não só. Toscano recorda como os planetas não têm luz e, por isso, não se conseguem ver à distância. Assim, os satélites lançados para os procurarem observam-nos indirectamente – são apontados a estrelas; identificam a existência de planetas através de variações, ainda que mínimas, no brilho destas. “A cosmologia”, diz Toscano, “tem tudo a ver com a percepção, com os mecanismos da visão e a forma como certos fenómenos são processados cognitivamente”.

Em certo sentido, não dista do que se passa em arte.

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