Radiohead no Rajastão

Jonny Greenwood (Radiohead), o cantor e compositor israelita Shye Ben Tzur e o tradicional grupo de metais e percussão indiano Rajasthan Express: em vez de produzirem estranheza, soam a uma tradição esquecida há séculos e acabada de desenterrar.

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Ben Tzur, Jonny Greenwood e The Rajasthan Express

Até aos 20 segundos de Junun, tema de abertura do álbum homónimo que junta Jonny Greenwood (guitarrista e sabotador mor das canções dos Radiohead) ao cantor e compositor israelita Shye Ben Tzur e ao tradicional grupo de metais e percussão indiano Rajasthan Express, dir-se-ia sem pestanejar que poderíamos estar a assistir ao desfilar de uma das sobras de Kid A ou Amnesiac. Uma percussão quebrada, guitarra e baixo amputados a seguirem-lhe as pistas em modo hipnótico, e seria apenas uma questão de segundos até a voz de lamuriador crónico de Thom Yorke começar a espalhar-se por ali.

Só que a partir dos 21 segundos, entra em cena o Rajasthan Express e a marca d’água Radiohead é engolida pelos músicos indianos. Quando um dos cantores abre a goela, pouco depois, fica tudo explicado sem necessidade de enunciado teórico: Greenwood está aqui para ir largando uns apontamentos habitualmente discretos (um pouco mais notórios na base de guitarra e teclados alienígenas em Allah Elohim), tomado por uma cautela constante em não ocupar um lugar de destaque. A sua acção é sobretudo a de colocar pequenos obstáculos no caminho, que não roubam à música o seu destino natural, mas obrigam a uma rota ligeiramente diferente.

Seguidor do encantatório canto qawwali (conhecido sobretudo pelo soberbo intérprete que foi Nusrat Fateh Ali Khan), Ben Tzur, que vive há vários anos na Índia, equilibra aqui espantosamente essa prática da cultura sufi (exemplar na forma como as vozes se enleiam num jogo de chamada e resposta, entre solista e coro) com a muito popular tradição das brass bands do Rajastão. Cruzando todas as referências, as composições do israelita são vocalizadas tanto em hindi e urdu quanto em hebraico.

A aproximação clara a um formato de canção convencional, vulgar hoje em qualquer banda sonora de Bollywood, leva a crer que os temas de Junun figurariam sem qualquer escândalo em filmes protagonizados por Shah Rukh-Khan ou Hrithik Roshan. Junun e o hipnotizante Roked, mas também, de forma mais óbvia, Chala Vahi Des, graças a uma Afshana Khan que soa a descendente directa de Asha Bhosle ou Lata Mangeshkar (as duas cantoras míticas de Bollywood, ainda que Khan não demonstre a mesma destreza na escalada dos agudos), fazem dessa ponte uma travessia absolutamente segura.

Da mesma maneira que Damon Albarn partiu para o Mali (e antes, claro, também George Harrison e os Beatles para a Índia, ou o Rolling Stone Brian Jones para Marrocos), Jonny Greenwood foi até ao Rajastão procurando imiscuir-se na paisagem musical – a viagem foi registada por Paul Thomas Anderson num documentário que partilha o título com o álbum –, depois de ter descoberto acidentalmente a música de Ben Tzur no israelita deserto Negev. Gravado no Forte Mehrangarth, datado do século XV (uma cortesia do marajá Gaj Singh II, de Jodhpur, a extasiante “cidade azul” do Rajastão), Junun é um poço sem fundo de deslumbramento. Parece, aliás, quase impossível que três mundos musicais se encaixem de forma tão natural que, em vez de produzir estranheza e fricção, soem apenas a uma tradição mais alargada, esquecida há séculos e acabada de desenterrar.

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