Pode a ideologia servir de consolo para a mortalidade?

Rodrigo Francisco leva à cena, em Almada, um texto de Vichnievski inédito em Portugal e que encontra no debate entre anarquistas e bolcheviques uma forma de reflectir sobre o alheamento político actual.

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A Tragédia Optimista no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada DR
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A Tragédia Optimista no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada DR

Nas últimas eleições legislativas, em Outubro, a abstenção fixou-se no valor mais alto de sempre em Portugal: 43,07%. Entre desacertos nos cadernos eleitorais e números justificados pela recente vaga de emigração, resta ainda assim uma fatia considerável de cidadãos inscritos como votantes e que, é legítimo depreendê-lo, não se revêem na democracia.

Este facto, não parecendo ter uma relação directa com a peça escrita por Vsevolod Vichnievski em 1932, em comemoração dos 15 anos da formação do Exército Vermelho, é chamado à cena pelo encenador Rodrigo Francisco quando inicia A Tragédia Optimista no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada (até 13 de Dezembro, retomada depois entre 13 e 31 de Janeiro), com dois portuguesíssimos soldados de Abril que, de cravo enfiado nas armas e sob os gritos populares de “o povo unido jamais será vencido”, questionam directamente o público, perguntam se estão no teatro para “ver como se fazem heróis” e interrogam-se ainda sobre quem é esta gente sentada, composta, ordeira que têm pela frente.

“É contra essa ideia de submissão e respeito pelas regrazinhas que a peça trabalha”, defende o encenador. “Contra este estado em que fomos caindo da aceitação das coisas.” Depois, os soldados despem as fardas e ficam com os trajes de marinheiros anarquistas a bordo de um navio soviético de Cronstadt durante a guerra civil russa de 1921. “Estes marinheiros vão mostrar-nos que é possível termos um papel activo na transformação da sociedade, que não temos de aceitar as coisas tal como nos são impostas.” Distanciando-se de uma defesa da União Soviética, Francisco quer, no entanto, lembrar que “foi graças às transformações ocorridas durante esta revolução que nasceram os valores da social-democracia em que hoje vivemos”.

Ideologia como consolo
A abstenção de 2015 continua, no entanto, a pairar sobre a recusa dos marinheiros anarquistas em cederem a qualquer autoridade – depois de ajudarem a depor a ditadura do czar, não querem trocá-la pela ditadura do proletariado –, algo que faz pensar no “grande paralelismo entre o que o Aleksei [um desses anarquistas] e alguns jovens de hoje que cresceram nos anos 80 e em quem se nota um grande afastamento, e até a exibição desse afastamento, em relação à vida política”. “Isto é estonteante”, espanta-se Rodrigo Francisco. A diferença é que a recusa dos anarquistas é de teor ideológico, enquanto na contemporaneidade reina sobretudo uma via individualista ajudada a forjar pela disseminação da cartilha do liberalismo económico.

Se a revolução bolchevique de 1917 se encontra, inevitavelmente, no centro do texto de Vichnievski, ao encenador interessa sobretudo o debate filosófico entre anarquismo e comunismo gerado pela chegada a bordo de uma comissária enviada pelo governo soviético, a quem foi entregue a missão de doutrinar a tripulação para a causa socialista e de mediar a relação com o oficial enviado para tomar conta dos destinos do navio.

A ideologia aparece aqui também como uma questão de sedução operada pela comissária, tentando converter crentes na ausência de uma ordem comum convencendo-os das virtudes do desígnio colectivo. Mas os caminhos desta travessia são pouco habituais. “A forma como Vichnievski chega ao discurso ideológico através de um problema existencial é algo que me interessa muito”, nota Rodrigo Francisco. A pertença de cada indivíduo a “um organismo maior que é a humanidade” é uma questão recorrente e “a ideologia pode servir de consolo ao facto de termos de nos confrontar com a nossa finitude”.

Inédita em Portugal, A Tragédia Optimista era um velho sonho de Joaquim Benite, fundador da Companhia de Teatro de Almada e do Festival de Almada. Tendo encenado A Mãe, de Brecht (a partir de Gorki), em 2010, Benite confidenciou a Rodrigo Francisco a sua vontade de repetir a sequência seguida por Peter Stein na Schaubühne, em Berlim, que em 1970 montou Brecht e, passados dois anos, Vichnievski. Benite acabaria por morrer no final de 2012 sem conseguir levar à cena A Tragédia Optimista e Rodrigo Francisco aproveitou a presença de Stein no último Festival de Almada para trocarem impressões sobre uma peça que o encenador arrisca tratar-se de “um texto fundamental da dramaturgia europeia do século XX”, reforçando nesse diálogo a convicção de que a peça pode apresentar-se para lá da recriação de um momento histórico e colocar em primeiro plano o seu debate de ideias que, no limite, podem salvar a vida de acabar fatalmente em tragédia.

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