Krzysztof Kieslowski: outra Europa, outros filmes, outros públicos

Krzysztof Kieslowski foi um dos últimos estertores de uma ideia de cinema europeu – a do “autor” capaz de conciliar o “prestígio” fundado na sua idiossincrasia e conservando um módico de apelo popular. Eram outros filmes, outros públicos, outras salas de cinema - viagem no tempo, agora.

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Kieslowski atravessou a cena internacional como um meteorito, e hoje até é fácil ver nele e no seu sucesso um dos últimos estertores de uma ideia de cinema europeu Didier Olivré/Corbis

Em Março do ano que vem cumprem-se vinte anos sobre a morte de Krzysztof Kieslowski, aos 54 anos. Foi o último grande autor polaco, pelo menos em termos de capacidade de circulação internacional, numa cinematografia cheia de tradições mas um pouco órfã desde o relativo ocaso de Andrzej Wajda e os prolongados exílios de Roman Polanski e Jerzy Skolimowski. Foi, também, um fenómeno: a implantação de Kieslowski no imaginário cinéfilo internacional foi uma questão de quatro filmes feitos em quatro anos, entre 1991 e 1994: precisamente estes que agora voltam aos écras, A Dupla Vida de Veronique e a trilogia das três cores, Azul, Branco e Vermelho. Antes disso houvera, claro, o Decálogo, uma série de televisão que seguia os Dez Mandamentos, um episódio para cada um, e que deu origem, nalguns casos (nomeadamente A Short Film About Killing), a versões mais extensas para exibições em sala de cinema. O Decálogo é de 1988 e foi o início da projecção internacional de Kieslowski, que até então filmara sempre com capitais polacos e raramente era visto fora da Polónia. A partir daí, abertas as portas do financiamento internacional (França, sobretudo), arrancaria para essa série final de quatro filmes, todos feitos no estrangeiro ou entre a Polónia e o estrangeiro, antes de anunciar a reforma, pouco antes da morte, professando o desejo de passar o tempo que lhe restava “a pintar e a fumar”.

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A trilogia das três cores, Branco, Vermelho e Azul, voltam aos écras, juntamente com A Dupla Vida de Veronique
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Kieslowski atravessou a cena internacional como um meteorito, e hoje até é fácil ver nele e no seu sucesso um dos últimos estertores de uma ideia de cinema europeu – a do “autor” capaz de conciliar uma ideia de “prestígio” fundada na sua própria idiossincrasia e conservando um módico de apelo popular – que depois dele, e ao longo destes vinte anos, se foi lentamente extinguindo. Podemos vê-lo, também, com o recuo que o tempo permite, como o caso de alguém que estava na hora certa e no lugar certo para filmar, em sequência, os últimos anos do comunismo de Leste e os primeiros anos daquela Europa estupidamente “feliz” da década de 90, que acreditava não ter, a partir daí, entraves para uma verdadeira união (a trilogia das cores, decalcando o padrão da bandeira francesa e os ideais da Revolução de 1789, “Liberdade”, “Igualdade” e “Fraternidade”, não deixava de apontar para um ecumenismo desse tipo, pelo menos na superfície).

Da crueza à euforia estética
A obra estritamente polaca de Kieslowski (que filmava desde a década de 60) só foi vista, na sua generalidade, depois destes anos de reconhecimento internacional. Pode-se encontrar aí, sobretudo na sua produção documental, um olhar duro, mesmo rude, à altura da dureza e da rudeza da vida polaca da altura, um confronto permanente com a realidade (mesmo nas ficções, que não perdem o pé ao “real”) de onde está ausente aquele romantismo ou as suas derivas que estes quatro filmes, a começar por Veronique, patenteiam. Nem aquela perspectiva católica, mais ou menos “oblíqua” e sempre bastante complexa, estampada no Decálogo. O momento crucial para o aparecimento do Kieslowski tardio terá sido o encontro com o argumentista Krzysztof Piesiewicz e com o músico Zbigniew Preisner. Deu-se em 1985, num filme chamado Sem Fim, e “até ao fim” todos os filmes de Kieslowski repousariam nas intricadas teias concebidas por Piesiewicz (o contraponto católico para o declarado agnosticismo do cineasta) e nas enleantes composições musicais de Preisner (sendo de notar que a música, tendo um papel fundamental nestes quatro filmes, é mesmo o meio onde se movimentam as personagens de A Dupla Vida de Veronique e de Azul).

No final da trilogia das cores, em Vermelho, dava-se o mais declarado traço de união entre os três, através da reunião das personagens vistas nos vários filmes. Como os filmes tinham cenários diferentes (a Polónia, a França e a Suíça), essa reunião podia ter essa leitura mais ou menos política referente a uma Europa finalmente sem barreiras, onde todos podem estar próximos de todos (enquanto ainda na Dupla Vida de Veronique a relação entre a personagem polaca e a personagem francesa era meramente uma questão de “reflexo” ou de “paralelismo”, a proximidade tornada possível apenas em termos “místicos”). Por outro lado, introduz o tema do “destino”, dos acasos e das coincidências como manifestação de algum tipo de teleologia, com uma incidência na construção narrativa mas também na “moral” a extrair dela, que acaba por ser o ponto onde mais se encontram os últimos quatro filmes de Kieslowski (e as relações entre eles descem ao nível do detalhe: von Budenmayer, um compositor fictício saído da imaginação de Piesiewicz e Kieslowski, é mencionado em Veronique e na trilogia da cores). Quer a Veronique quer a trilogia das cores colocam Kieslowski na linhagem de alguns grandes cineastas europeus do “acaso”, como Bresson ou Jacques Demy. Mas se as referências religiosas, ou pelo menos a um qualquer mecanismo supra-humano capaz de misteriosamente controlar os destinos individuais ou colectivos, o aproximariam mais de Bresson, a relativa euforia estética (pelo menos bem longe da secura “austeritária” do autor de Pickpocket) a que Kieslowski se entrega deixam-no bastante mais perto do romanesco segundo Demy (que também foi, já agora, um cineasta de “cores”, e sempre atravessado por um vento sombrio). De resto, convém dizer que Kieslowski admitiu o acaso até como método na construção dos seus filmes, e em declarações sobre Veronique referiu ter rodado sete finais diferentes para escolher um na montagem, sendo que a montagem passou por vinte versões até chegar à definitiva.

Não temos verdadeiramente uma resposta para esta pergunta: o que têm estes filmes de Kieslowski, testemunhos de uma época que foi há tão pouco tempo mas parece tão remota, a dizer a um espectador contemporâneo? Que falam de uma Europa que nunca terá chegado a existir, isso é certo – em Azul, primeiro filme da trilogia, tem particular importância a composição de uma peça musical chamada A Unidade da Europa. Que falam de uma Polónia a tentar erguer-se da penúria económica deixada pela débacle do comunismo, também é certo – nomeadamente em Branco, segundo filme, o mais “polaco” de todos, e o mais fortemente concentrado numa perspectival social e económica. Mas talvez não digam tanto como quando se abstraem, ou se parecem abstrair, de um “contexto” – como em Vermelho, com aquela pungente e delicadíssima relação entre Irène Jacob (esse rosto kieslowskiano por excelência, também na Verónique, e que depois de Kieslowski raramente encontrou filmes à altura) e o velho juiz interpretado pelo majestoso Jean-Louis Trintignant, no seu último grande papel antes do Amor de Michael Haneke, quase vinte anos depois.

Mas é a vinte anos atrás, ao tempo de outros filmes, de outros públicos, de outras salas de cinema, que nos leva o momento de ir, outra vez, ver Kieslowski ao cinema. Uma pequena viagem no tempo, e não a negligenciemos. A edição em DVD virá mais tarde.

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