Rodrigo García só é fiel à liberdade e à falta de pudor
Desaparecido há muitos dos palcos nacionais, enfant terrible do teatro europeu, apresenta em Lisboa e Porto a sua última criação. No palco de 4, há galos a passear, jogos de ténis contra um certo quadro de Courbet, doggy style ou plantas carnívoras. Como num sonho.
Existe uma técnica de treino popular entre os jogadores de ténis que consiste em bater bolas contra uma parede, com uma linha branca pintada à altura da rede. Depois é só fingir que a parede é um adversário e gastar as energias a jogar contra si próprio. Outra técnica semelhante, embora menos conhecida, foi inventada por Rodrigo García para a sua nova criação, intitulada 4. Essa alternativa consiste, de igual maneira, em bater a bola de ténis contra uma superfície estática, no caso um ecrã gigante no qual está projectado o quadro A Origem do Mundo, de Gustave Courbet. Com a diferença de que o ecrã devolve não apenas a bola, mas premeia a pontaria mais afinada do jogador com uma súbita e rápida ampliação da genitália feminina que é o único centro possível da obra. É sempre para lá que o tenista em palco faz pontaria. Freudiano, onanista, individualista ou apenas disparatado – vale tudo.
4 segue o mesmo método de construção que Rodrigo García vem ensaiando desde que se mudou da Argentina para Madrid em 1986 e fundou, tempos depois, a companhia La Carnicería Teatro. Chegado a um meio teatral radicalmente diferente daquele que existia em Buenos Aires, García custou a perceber como conseguir candidatar-se a apoios que lhe permitissem encenar textos de Beckett ou Paulovski. Sem grandes esperanças, enviou uma peça original para um concurso para novos dramaturgos e, de um momento para o outro, passou a ser não tanto um encenador quanto um autor. E um autor dado a excessos, que conhecemos graças ao Citemor mas cujo rasto desapareceu de Portugal nos últimos anos – falha corrigida agora pelo D. Maria II (5 de Dezembro) e pelo Rivoli (11 de Dezembro). 4 parte da mesma abordagem de partilha absoluta do processo com os actores, em que Rodrigo García vai experimentando cenas aparentemente desconexas. “Trabalho sempre da mesma maneira”, diz ao Ípsilon. “Acumulo material com os actores nos ensaios. Ao mesmo tempo escrevo em casa. Nos últimos dias levo os textos para os ensaios e vemos aquilo que podemos usar de tudo quanto escrevi e de que forma. E acabo por fazer um story board com uma ordem das sequências.”
Por isso mesmo, os impagáveis textos delirantes de García numa crítica feroz, desenfreada e corrosiva ao capitalismo dos seus primeiros tempos (coincidentes com a sua actividade de publicitário e cuja publicação em Portugal seguirá em 2016 na colecção Livrinhos de Teatro) permitem apenas uma vista parcial do seu teatro. Em 4, essa mesma acumulação de quadros espaventosos e em roda livre, muitas vezes frequentados por animais (desta vez são galos), teve por novidade a exploração de um método que, revelou García à revista francesa Les Inrockuptibles, passou por deixar-se ficar meia hora na cama depois de acordar, imóvel, fingindo dormir, numa armadilha para caçar os sonhos que tivera durante a noite.
Terá sido com esse sistema que caçou, provavelmente, a imagem de um jogador de ténis diante do quadro de Courbet ou, na continuação, a chamada à cena de gravações de John McEnroe largando toda a sua ira sobre um árbitro cuja decisão não o tinha beneficiado. O grau de descontrolo parece semelhante. Até porque García não elege antecipadamente temáticas a explorar nem sequer tenta definir um rumo claro para os espectáculos que monta. Por isso, fala de 4 como uma “história sobre uma acumulação de guizos, cabeças de coiotes, movimentos com roupa ensaboada, gira-discos com a 4ª Sinfonia de Beethoven, galos que vagueiam livremente, meninas de nove anos, um bocado de literatura, minhocas presas por plantas carnívoras, um samurai, um jogo de ténis contra uma pintura de Courbet, desenhos animados, reflexões sobre o doggy style, luzes de estádio de futebol e drones que levam fantasias à cidade através de música produzida por sinos”. Ou seja, não há história alguma. Não há história alguma que não seja montada por um espectador que vai unindo os pontos com total liberdade.
Público criativo
4 deve tanto o seu título ao número de performers em palco quanto ao adágio da 4ª Sinfonia de Beethoven e ao sexo de quatro (doggy style) que atravessam a performance, nota Rodrigo García ao Ípsilon, reforçando a sua tendência natural para acolher uma ordem aleatória. Mesmo quando se sabe que as reflexões de Rem Koolhaas sobre o junkspace – um vírus de transformação da paisagem num gigantesco centro comercial – constituíram uma suposta matéria de trabalho para 4, e se podem entrever algumas pistas para isso num rol de frases avulsas de que se destacam “há mais beleza na demolição do que nas formas sinuosas da construção de hoje” ou “a implosão por dinamite é o tic-tac do coração de Deus”, o autor responde que “muito e, no fim de contas, nada de nada” de Koolhaas acabou por entrar na peça. “Quando me pediram para escrever sobre o projecto, falei do trabalho de Koolhaas como filósofo, urbanista e poeta até mais do que como arquitecto… mas assim que comecei a trabalhar nada disso ficou.”
Aquilo que ficou foi uma peça em que são cuspidas frases soltas que podem tanto falar de literatura e de jogos de vídeo – “não há necessidade de dar um ponto de vista, não há necessidade de completar”, lê-se nos ecrãs; “isso diz-nos que os bons livros nos pedem muito e os jogos de vídeo muito pouco”, comenta García – como perguntar a quem poderá interessar o anúncio “comi costeletas de cordeiro com um copo whisky”. Aquilo que ficou foi uma peça em que se dança cumbia, em que duas mulheres se entrevistam cobertas por dois panos de corpo inteiro, em que uma narrativa menos sinuosa sobre uma infância passada numa relojoaria é desfiada com o vagar de uma história antes de deitar, em que minhocas servem de refeição a plantas carnívoras. “Em 4”, como se fosse preciso explicitá-lo, Rodrigo García afirma que “o público deve ser altamente criativo, porque há cenas que não têm uma narrativa fácil, são como fragmentos de sonhos.”
Pouco mudou, portanto, no universo criativo de um dos criadores mais indomáveis do teatro europeu. O facto de ter assumido em 2014 a direcção do Centro Dramático Nacional de Montpellier, rebaptizado Humain Trop Humain, não o amaciou. “Pensei que agora como director do CDN estarias condicionado a fazer obras mais tranquilas, mas vejo que estás o mesmo louco de sempre”, disse-lhe alguém a propósito da estreia de 4. “Bom, louco não é uma boa palavra, na realidade referia-se à minha liberdade e à minha falta de pudor”, retorque García. “Liberdade e ausência de pudor são essenciais para fazer uma obra, para não enganar ninguém.”
O único engano, com Rodrigo García, será esperar que no palco existam zonas interditas.