Nicolás Paris: um mundo inteiro
Aos 38 anos, Nicolás Paris é um dos novos nomes da arte colombiana em mais franca afirmação nos circuitos internacionais. A sua primeira exposição individual em Portugal, no Museu Berardo, é uma janela aberta sobre um mundo melhor
Uma mesa comprida e estreita, como uma bancada de laboratório. Sobre ela, dezenas de objectos. Pequenas esculturas em feltro, papel e metal, desenhos, livros, textos. E, lá no meio, um lápis de colorir. É verde, está pronto a usar e tem duas palavras gravadas num dos lados: jardim portátil.
O lápis, em si, é banal. Encontra-se à venda em qualquer papelaria ou supermercado. No entanto, através de uma pequena inscrição, constitui agora a possibilidade de um jardim. Ou melhor: através de uma pequena inscrição, é agora um jardim. Um jardim que não existe apenas enquanto hipótese teórica. Pelo contrário. Estamos perante um jardim concreto, real. Um jardim que existe na medida em que acreditamos nele.
Acreditar é a única condição para a existência. Por isso, de cada vez que alguém capaz de acreditar poisa os olhos neste lápis, há um jardim a tomar forma. Mais: o encontro é definitivo e multiplicador – a partir dele, todos os lápis verdes passam a ser jardins.
O fenómeno inicial – e iniciático – é da ordem da transubstanciação. O lápis original continua lá, claro. Imóvel, encerrado na matéria física da sua trivialidade, será a única coisa a ver por quem não acredita. No entanto, sob um olhar crente, o mesmo lápis cresce, expande-se e transforma-se. Primeiro na esfera interior dos afectos do observador. Depois fora, no mundo.
É que a arte e o processo artístico compõem um sistema de fé como qualquer outro. Para acreditar que um objecto é mais do que a matéria de que é feito, é necessária uma visão transformadora. Esta, por seu lado, exige que acreditemos nas palavras e nos gestos do criador que a propõe. E a questão é que é fácil acreditar em Nicolás Paris.
Estamos frente ao lápis verde quando ele diz: “Uma pergunta pertinente, para mim seria: se isto é um jardim portátil, então quantos rios cabem num tom de azul?”
Um ponto de interrogação pode ser um espoletador poderoso. De emoções, imagens, conceitos. Mais quando surge após uma sequência sugestiva de palavras. E as sequências de Paris são especialmente sugestivas. Só não necessariamente pela improbabilidade do que propõem.
Na verdade, quase tudo o que poderíamos dizer sobre o seu Jardim Portátil já foi dito a propósito de outras obras, de outros artistas. Aliás, foi dito quase palavra por palavra quando em 1974 o britânico Michael Craig-Martin apresentou pela primeira vez o copo de água sobre uma prateleira a que chamou An Oak Tree/Um Carvalho (1973).
A proposta de Craig-Martin, há já mais de 40 anos, era idêntica à de Paris: um banal copo com água que o artista propunha ao espectador ver como um carvalho adulto. Folhas, ramos, tronco e raízes ali onde havia apenas o vidro transparente e o interior de água inalterado, deixados sobre uma pequena prateleira afixada à parede de uma galeria. Qual é então a excepcionalidade do projecto artístico de Paris? A candura e precisão da sua poética, aliadas a uma poderosa visão política do mundo e do papel que a arte nele pode desempenhar.
“Para mim, uma questão muito importante, e muito prática, é onde acontece a arte. Como é esse lugar? Onde é que ele existe? É preciso actualizar métodos de trabalho e a relação entre diferentes métodos de trabalho. Porque a arte pode estar sempre a acontecer em diferentes lugares. Atrever-me-ia a dizer que, idealmente, a arte não acontece num museu. É um exercício mental, uma experiência intelectual que acontece noutros lugares. Gostaria de pensar que o que as pessoas encontram num museu é o início de um processo que o artista não controla nem deve controlar. A arte acontece no tempo, não no espaço”, diz-nos Paris antes ainda de entrarmos na primeira das salas que compõem Quatro variações à volta de nada ou falar do que não tem nome, a exposição, comissariada por Filipa Oliveira, que é a primeira individual deste artista colombiano em Portugal.
Haverá várias formas de interpretar e dar sentido a estas palavras. O que Paris quer dizer com elas é que a sua prática põe enfase nos processos de difusão, mais do que nos processos de produção. Para ele, a produção – ou seja, a obra física, material – redunda em meras plataformas para o início de diálogos, pretextos para encontros. Assim, uma exposição não difere de um laboratório ou de uma sala de aulas – um espaço onde criar conhecimento e intercâmbio.
“Intercâmbio de serviços”, diz ele – sendo os “serviços” as reflexões que uma obra possa suscitar. Tudo isto ligado a um profundo interesse pela educação e pela pedagogia. Através da arte.
Uma genealogia
Há uma genealogia biográfica por detrás desta malha: antes de ser artista, Paris foi professor; antes de ser professor, foi padeiro; antes de ser padeiro, formou-se em arquitectura – e acumulou ensinamentos de todas estas práticas, sem abandonar nada en route num percurso que tem menos de aleatório ou de errático do que possa parecer. Pelo menos se tivermos em conta que a missão primeira da arquitectura é projectar o mundo a habitar pelo homem. E que, tal como o abrigo, o pão, o primeiro alimento, é uma necessidade básica. A padaria foi também o ofício de eleição de muitos anarco-sindicalistas latino-americanos. Acreditavam que a revolução se fazia não apenas em luta contra as instituições do poder mas também a influenciar o dia-a-dia das pessoas. Como o fazem os professores com as crianças. E como Paris acredita ser missão da arte. Com a qual não só se aprende, mas também se desaprende. O que é igualmente importante.
Aprender a ler, por exemplo – na sua exposição, Paris tem uma sequência de círculos de madeira seccionados e articulados, uma cor para cada grupo de uma frase (grupo nominal, verbal, complementos de tempo, lugar, modo…). Aprender a ler com a escultura. Ou desaprender a andar de bicicleta – se a bicicleta for um quadrado de ferro pintado de amarelo com duas rodas pretas do mesmo lado.
“A arte é um acto de resistência, tal como aprender”, diz-nos Paris. Resistência face a quê, perguntamos-lhe. “À passagem do tempo. E é um acto de resistência pessoal, individual. Oferece-nos a possibilidade de nos emanciparmos, encontrarmos quem somos ou quem podemos ser. E a forma de sermos úteis, sobretudo.”
Apesar de não ser assumida como prioridade, há uma forte componente formal em cada intervenção de Paris. Em geral, baseada na ideia de diagrama. Trata-se de reduzir ideias ao mínimo. Para que outros possam aceder à sua essência e interpretá-la. Para isso é necessária precisão.
Paris diz que é como quando compramos um aspirador e temos de montá-lo. Primeiro abrimos o manual, organizado da forma mais simples possível, para que qualquer pessoa possa percebê-lo. “Trata-se de comunicar de uma forma muito sistemática e organizada, que possa dizer a qualquer pessoa como activar aquele aparelho.”
A própria organização espacial de cada exposição surge como mecanismo visual de activação das ligações entre cada ideia. “A geometria e a ordem permitem isso, fazer essas ligações”, diz Paris. Mais do que o caos? “Bom, o caos é uma ordem. E o interessante é que não sabemos o que está antes e depois, se a ordem, se o caos. Aspirar a perder o controlo do que as pessoas levam de uma exposição é aspirar ao caos. De forma organizada.”
O número quatro
No Museu Berardo, Quatro variações à volta de nada ou falar do que não tem nome ocupa quatro salas, insistindo num número cheio de presença e de simbolismo na obra deste artista. (“O coração tem quatro cavidades, o corpo divide-se em quatro partes, há quatro operações básicas de matemática, o ano tem quatro estações, há quatro pontos cardeais… Em aprendizagem o quatro é fundamental.”)
A primeira sala organiza-se em torno da ideia de “ferramenta”. Nela o pensamento é considerado um exercício, já algumas das ferramentas que o apoiam são literais – e depois transformadas. De um conjunto de serras usadas para a montagem da exposição, por exemplo, nasceu uma série de esculturas cúbicas – figuras geométricas tridimensionais. Diz Paris: “Depois de construir uma figura destas, qualquer pessoa percebe o que é um triângulo equilátero. Sabe fazê-lo. Podes começar a falar-lhe, por exemplo, de proporções. Trata-se não de aprender um conceito mas de aprender a fazê-lo, dar-lhe forma.”
Ao centro da sala, está também um grande grupo de piões bojudos. Em vez de uma ponta metálica, giram sobre um bico de grafite. Ao serem atirados, traçam desenhos aleatórios. “O que mais me agrada”, diz o artista, “é que quando começas a querer representar algo, o processo habitual é dominar primeiro a técnica. Quando controlas a técnica, então podes começar a tentar representar o que vês ou imaginas.” Aqui não se trata de representar – trata-se de usar o lápis para perder o controlo. E os desenhos feitos por Paris no próprio pião são geometrias relacionadas com o caos e a ordem. Poliedros, fractais, constelações, pequenos diagramas. “Têm a ver com o cosmos e a relação entre uma partícula de pó e um planeta”, diz o artista. Ele que volta recorrentemente à natureza – para dizer, por exemplo: “Se num papel desenhares pontos aleatórios, há um método para, com um compasso, os juntar todos numa linha sinuosa. O desenho dos rios, na natureza, surge dessa forma – os pontos aleatórios são como acidentes geográficos; os rios começam a fazer curvas para contornar esses acidentes, acabando por juntá-los numa linha.”
As “ferramentas” na primeira sala, dizíamos. Na segunda, apresenta-se “o método”. Propõem-se dez conceitos de sala de aulas. A Sala de aulas para aprender a ver as ideias crescer ou para entender como opera a natureza, por exemplo, é uma subtil rede metálica suspensa do tecto. A progressão da sua malha reproduz a sequência de Fibonacci: 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21…
Aplicada na avaliação de mercados financeiros e na computação, a sequência de Fibonacci permite também perceber certos fenómenos naturais: como crescem a casca de um caracol, as folhas de uma alcachofra ou de um abacaxi, como evolui um tornado… Já a Sala de aulas para pensar com o corpo homenageia o coreógrafo norte-americano Merce Cunningham, que centrou grande parte do seu trabalho na teoria do acaso do I Ching – Paris retira de uma das peças do coreógrafo uma cadeira sem assento e com uma tira com a qual pode ser amarrada às costas de alguém, que a transportará consigo.
Goethe, com a sua teoria das cores, Paul Klee, com os diagramas para os alunos da Bauhaus, Lygia Clark, com as superfícies moduladas a que chamou “bichos”, Bruno Munari, com as suas investigações sobre os jogos, a infância e a criatividade, El Lissitsky e os movimentos construtivistas, Melville, o seu escrivão Bartleby e a preferência deste pela recusa… Por entre a singeleza formal da multiplicidade de propostas com que habita o espaço, Paris vai-se apoiando num campo referencial facilmente identificável e que frequentemente referencia directamente.
Uma das peças que expõe na mesa inicial é uma intervenção sobre o livro Generic City, de Rem Koolhaas – entre as páginas pôs um termómetro, comentário à falta de calor da cidade contemporânea. Ao lado, um recorte de Lenine feito em papel surge a discursar na varanda de um edifício desenhado por Lissitsky, neste caso reproduzido a partir de uma caixa de bolas de pingue-pongue – as mesmas bolas brancas que, um pouco mais à frente, surgem no chão a mostrar cada uma das letras de uma Linha Ponteada. Não longe está uma pequena peça que na última sala da exposição veremos ser usada num vídeo intitulado Cata-vento – entre o polegar e o dedo médio, o artista segura um quadrado de papel que o vento faz girar (só isso…).
“Para mim, trabalhar como professor foi uma grande experiência”, conta Paris. “Todos os dias, na mesma sala, tinha de comunicar com alunos com estruturas de aprendizagem muito diferentes, uns com uma estrutura mais visual, outros mais conceptual ou matemática. O desenho foi uma boa ferramenta. E penso nas exposições da mesma forma. Estou a tentar comunicar com um grupo de pessoas com diferentes desejos, intenções, expectativas e percepções. É um exercício muito parecido. Explorar diferentes estratégias para poder comunicar com todos – é o que estou a tentar.”
Não é apenas uma matriz teórica, é um compromisso de fundo com a realidade – ao longo de um mês o artista fica em Portugal a trabalhar com os serviços educativos do museu e uma série de escolas visitantes.