Papa atravessou as barricadas para ir ao encontro dos muçulmanos de Bangui
"Somos irmãos e irmãs", disse Francisco na visita ao PK5, bairro cercado pelas milícias cristãs. Antes de deixar a República Centro-Africana, o Papa pediu a cristãos e muçulmanos que repudiem juntos o ódio e a violência.
O Papa atravessou terra de ninguém, vigiada por milícias de um lado e de outro, para ir ao encontro de muçulmanos cercados pelas armas e pelo medo num enclave de Bangui, a capital massacrada da República Centro-Africana. Quis ir lá, apesar da insegurança, lembrar que “cristãos e muçulmanos são irmãos e irmãs” e que juntos devem repudiar “o ódio, a vingança e a violência, particularmente aquela que é feita em nome de uma religião ou do próprio Deus”.
A visita ao país, devastado nos últimos dois anos pela violência intercomunitária, “não seria completa se não incluísse um encontro com a comunidade muçulmana”, admitiu Francisco ao ser recebido na mesquita central de Bangui, situada no coração do PK5.
Foi naquele bairro que se acantonou a população muçulmana da cidade, forçada a abandonar as suas casas pela violência das milícias anti-balaka, grupos essencialmente cristãos formados em resposta às atrocidades cometidas pelas forças Séleka, uma coligação de rebeldes muçulmanos que governou o país entre Março e Dezembro de 2013. Aos massacres de cristãos, seguiram-se massacres de muçulmanos, provocando um êxodo desta minoria, que até então representava 15% da população da República Centro-Africana. Dos 122 mil muçulmanos que viviam em Bangui, não restarão mais de 15 mil, quase todos refugiados no PK5.
O cessar-fogo assinado no Verão de 2014 abriu caminho à transição, mas a violência regressou em Setembro passado, num ciclo de ataques e represálias que provocou já mais de uma centena de mortos e levou ao adiamento das eleições, previstas agora para Dezembro. O PK5 voltou a ser uma zona de guerra – na avenida que separa o enclave do bairro cristão mais próximo vêm-se apenas casas queimadas; numa ponta espreitam as barricadas dos anti-balaka que cercam o bairro e impedem a entrada de comida e a saída dos habitantes; na outra erguem-se barricadas montadas pelos grupos de autodefesa.
Foi esse pedaço de desesperança que Francisco quis percorrer na manhã desta segunda-feira, num jipe descapotável mas rodeado por guarda-costas, polícia e capacetes azuis das Nações Unidas. A missão de paz da ONU colocou também blindados com metralhadoras ao longo do percurso do papamóvel e snipers nos telhados dos minaretes do PK5. Apesar do aparato viram-se apenas sorrisos e braços estendidos em sinal de boas-vindas. “Pensávamos que todo o mundo nos tinha abandonado, mas ele não nos abandonou. Ele também nos ama, aos muçulmanos, e eu estou muito feliz”, disse à AFP Idi Bohari, um ancião que se juntou à multidão que se juntou à passagem do Papa.
Nos seis dias da sua primeira viagem a África, Francisco fez sucessivos apelos ao diálogo entre cristãos e muçulmanos, num momento em que as duas religiões estão em rápida expansão no continente e se multiplicam conflitos em que se cruzam rivalidades políticas, étnicas e religiosas. A etapa centro-africana era, por isso, essencial a uma deslocação que teve como palavra de ordem a reconciliação e o Papa não desistiu mesmo quando a França, que mantém no país um milhar de soldados, avisou que não poderia garantir a sua segurança.
Na mesquita central, como já na véspera num campo onde encontraram abrigo quatro mil cristãos fugidos à violência, Francisco insistiu que o conflito no país “não tem verdadeiros motivos religiosos”, mas é antes fruto de manipulações políticas. “Deus é paz, salam”, disse, usando o árabe do Corão, e repetiu que “aqueles que dizem acreditar em Deus, têm de ser homens e mulheres de paz”. “Cristãos, muçulmanos e os membros das religiões tradicionais viveram aqui em paz durante muitos anos. Devem, por isso, manter-se unidos para erradicar todos os actos que, venham donde vierem, desfiguram a face de Deus e cujo único objectivo é servir interesses particulares.”
Nos últimos dias, o imã Tidiani Moussa Naibi falara do PK5 como uma “prisão a céu aberto” – no bairro escasseia a comida, os residentes temem sair sequer para ir ao médico –, mas ao receber o Papa disse acreditar que o passado comum das duas comunidades será mais forte do que “as manobras dos que tentam manipulá-las”. “Os cristãos e muçulmanos deste país estão destinados a viver juntos e a amarem-se uns aos outros”, garantiu.
Dali, Francisco partiu para um estádio onde o esperavam 20 mil fiéis para a última eucaristia em solo africano. Aos cristãos pediu para serem “artesão da renovação humana e espiritual” de que o país precisa, para serem corajosos “no diálogo com os que são diferentes” e “no perdão” a quem lhes fez mal.
Num gesto que pode ser efémero, mas muito simbólico num país sangrado pela violência, um grupo de jovens muçulmanos, com t-shirts do Papa, saiu do PK5 numa caravana automóvel para assistir à missa e, ao chegarem ao estádio, foram aplaudidos pelos fiéis, conta a AFP. Francisco, que chegou a África como “peregrino da paz e da esperança”, deixou a República Centro-Africana pouco depois. Sorridente e a salvo.