Aline partiu à procura do seu Norte
Para agitar a sua música, Aline Frazão rodeou-se de electricidade, de um homem dos Linda Martini e de um produtor com um estúdio numa remota ilha escocesa. Insular é o magnífico e corajoso registo de uma cantora empenhada em redescobrir-se no risco.
Em Setembro de 2009, Albert Kuvezin, vocalista dos Yat-Kha, a grande referência do rock gutural originário da região de Tuva, foi levado da sua terra natal, Kyzyl, até à pequena e remota ilha escocesa de Jura. O pequeno território, com uma modesta população de 200 pessoas, conhecido sobretudo por ali ter albergado George Orwell quando este escrevia a sua obra-prima 1984 e pela sua produção de whisky, foi escolhido por duas razões: 1) ali instalou Giles Perring o seu estúdio The Sound of Jura; 2) sendo Kyzyl um dos pontos do planeta que se encontram mais longe do mar, Perring quis criar música com Kuvezin num cenário que funcionasse como um estremecimento no imaginário do músico. Desse choque de paisagens nasceu um encantador disco acústico (não necessariamente baladeiro) intitulado Poets and Lighthouses, lançado no ano seguinte.
Foi esta resumida história que Carlos Seixas, programador do Festival Músicas do Mundo e amigo de Aline Frazão, contou à cantora angolana para lhe sugerir que arriscasse trabalhar com Giles Perring no seu terceiro álbum. Para Aline, a sugestão ajustava-se na perfeição à vontade de esboçar um plano de fuga de si mesma, partindo da conclusão infalível de que já sabia com o que podia contar vindo da sua cabeça e para onde pendiam as suas soluções musicais instintivas, sendo portanto altura de espevitar a criação com algumas participações exteriores e, de preferência, oriundas de mundos afastados do seu. Depois de ouvir o relato entusiasmado de Seixas acerca de Poets and Lighthouses, o contacto com Perring rapidamente conquistou Aline no momento em que o produtor lhe confessou, num primeiro encontro, que não fazia a mais pálida ideia de quem era Cesária Évora. “Achei fantástico porque era mesmo isso que eu procurava – alguém que não tivesse de todo as mesmas referências. Não foi preciso usar muitos argumentos, o campo já estava inclinado para o lado dele”, diz ao Ípsilon.
Ajudou que o destino fosse uma ilha selvagem, pouco paradisíaca, em que uma viagem até ao único pub de Craighouse não alterava a sensação de isolamento. E assim Aline aceitou lançar-se a “um jogo de confiança, em que tudo era muito arriscado”. Durante os meses que precederam a partida para Jura, quando lutava para terminar as composições que iria gravar, foi assaltada milhentas vezes por uma sensação de que aquilo que a esperava era “um pouco louco”. Não era certamente a cartada certinha de se juntar a um produtor de créditos inabaláveis ou sequer a estratégia de mudar sem correr o risco de uma desestabilização real. Mas, como canta em O homem que queria um barco, letra sua baseada no Conto da Ilha Desconhecida, de José Saramago, era um passo “p’ra descobrir quem sou quando chegar”.
Aline eléctrica
Antes sequer de o nome de Giles Perring aterrar no colo de Aline Frazão, a cantora sabia já que não pretendia estar limitada ao lado mais africano da sua música ou às influências mais salientes do jazz e da música brasileira. Sem pretender fazer uma revolução total nas suas canções – não era isso que estava em causa, até porque imagina que os temas do novo Insular pudessem figurar sem escândalo nos dois álbuns anteriores –, queria atirar-se voluntariamente para terreno pantanoso, queria abandonar certezas, queria ser obrigada a cair e encontrar forma de se levantar. Sabendo isto, a primeira decisão que tomou para desencadear este processo de exploração e de descoberta foi comprar uma guitarra eléctrica. “E agora, o que se faz com isto?”, perguntou-se com o instrumento nas mãos.
Para realizar esse potencial de electricidade, Aline Frazão não desejaria naturalmente tratar as cordas da guitarra de forma amaciada, opção que produziria uma mudança quase artificial, uma subtil alteração de meio sem consequências reais na sua música. Mas a resposta dada por Insular é, no entanto, mais surpreendente do que o enunciado desta mudança faria prever – mais ainda quando o passo seguinte foi integrar como elemento fundamental da sua banda Pedro Geraldes, guitarrista dos Linda Martini. O anúncio de um som eléctrico costuma acarretar uma ideia de movimento para fora, de som expansivo, mas Aline Frazão consegue fazer exactamente o contrário, e encontrar um recolhimento sem que a electricidade se torne estéril. “Em simultâneo com a posição de compositora”, justifica ao Ípsilon, “tinha uma preocupação como intérprete e como cantora. E tinha também essa intenção de explorar a interpretação mais para dentro. É um pouco essa a história do disco – o para fora e para dentro, estar na ilha ou sair dela, sempre esse movimento para trás e para a frente, mesmo nas letras”.
Intermediado por Capicua – que contou a Aline que o homem dos Linda Martini tinha um fraquinho por guitarras africanas –, Pedro Geraldes tornou-se então o principal impulsionador do movimento que Aline buscava. “Queria também que fosse um músico de um mundo diferente do meu”, reforça Aline. “Gosto muito do trabalho dos Linda Martini, mas a par disso tinha de ter um outro ingrediente, que era uma abertura muito grande para esta aventura.” Depois de “testar” o guitarrista numa digressão na Alemanha, a cantora confirmou a sua escolha, embora advertindo Geraldes de que deveria ser ela a aproximar-se da linguagem dele e não o contrário. E a razão de Aline é simples: as canções são dela, estão impregnadas das suas ideias, tresandam à sua personalidade musical, nunca poderão fugir a essa condição. “Não tinha nenhuma insegurança de deixar de ser eu própria”, frisa. “Não ia fazer nenhuma coisa transcendente ou demasiado longe de mim. Eu conhecia melhor os limites e as fronteiras.”
Visita ao Norte
As guitarras de Geraldes, embora não soem tão abrasivas quanto nos Linda Martini, ajudam a carregar no tom melancólico que assola Insular e dotam as canções de um nervo inédito. Para Aline Frazão é “a temperatura da ilha” a manifestar-se, a fazer com que Insular, a canção, soe algures entre a morna cabo-verdiana e as vozes-mitos do blues jazz (Nina Simone, Billie Holiday), e Só silêncio mergulhe ainda mais fundo nessas referências, numa beleza extrema e desossada, reduzida ao mais cru e essencial. Em A louca, essa vertigem adocicada de Aline convoca pequenas explosões, guitarras mais cortantes, empurrando a cantora para uma sonoridade tão tensa quanto nova no seu percurso. Acompanhando este movimento, também as letras funcionam como “uma visita de estudo ao Norte”, a essa cultura que não é a sua, “introvertida, feita de tons mais frios e misteriosos” que a fascinam. “O disco é mais essa atmosfera do que o solar e tropical de onde venho, de Luanda, em que as pessoas falam muito alto e expressam-se com muitas palavras. Não é só a poesia deslumbrante do Chico Buarque que pode dizer muitas coisas sobre a vida, também os silêncios e os quadros mais fechados do cinema nórdico às vezes nos representam muito, até de uma forma mais intensa porque estimulam mais a interpretação.”
“Procurei por ti (…) nos filmes do Bergman/ nos discos do Chico” canta Aline em Império perdido, bela canção em que cordas de guitarra e de harpa se perseguem e enleiam numa dança de sedução. Claro que esse Brasil africano, que também contamina Mayra Andrade, encontra brechas, como acontece em Mascarados (um dos temas mais rasgados por Geraldes), mas Aline nunca se anula para fazer emergir sonoridades menos óbvias em si. Exemplo mais extremo será talvez Langidila, canção pendular entre guitarras ásperas e obsessivas, um baixo que se diria tocado com as ancas e um canto a lembrar os namoros de Marisa Monte com a música pop(ular).
A fechar o álbum, Susana junta Aline Frazão a Toty Sa’Med, uma Angola que não chegou a embarcar a caminho de Jura, um resquício de um outro disco que a cantora ainda ponderou fazer no lugar deste. O tema escrito por Rosita Palma, e gravado na cave do Teatro Tivoli, aponta para a outra ideia que ficou pelo caminho (ou foi apenas adiada) de gravar “um disco de reinterpretação actual do semba, algo que se quer muito em Angola que alguém faça porque as pessoas têm medo de perder as músicas tradicionais”. “As pessoas querem recuperar isso para definir um pouco qual é a Angola do século XXI”, acrescenta.
Essa Angola é também fonte de preocupação de Aline Frazão na sua situação política actual, com a cantora a assinar actualmente uma crónica de reflexão político-social no jornal Rede Angola. Mas esse é o seu processo para fora, envolvendo os outros. Insular é o processo de “uma viagem subtil, sem nenhuma garantia de encontrar o caminho de volta”. Ao desprender-se dessa amarra, Aline quer deixar de ser uma cantora angolana – pelo menos da maneira como o era até aqui. Até porque Angola lhe estará sempre no sangue e na voz. Essa é a parte que ela já conhece. Agora quer tudo o resto.