A noite em que a voz de Benjamin Clementine arrebatou Lisboa
Foi um daqueles momentos irrepetíveis. Esta sexta-feira, na primeira noite do festival Vodafone Mexefest, o público rendeu-se por completo à voz sobrenatural, à presença magnetizante e ao piano de Benjamin Clementine.
Vinham aos magotes, de todas as outras salas do festival Vodafone Mexefest, dirigindo-se na direcção do Coliseu dos Recreios. Era a hora do músico inglês, de coração parisiense, Benjamin Clementine, naquele que era o concerto mais esperado da noite de sexta-feira, em Lisboa, no festival Vodafone Mexefest.
Chegavam ainda com o espírito com que haviam estado na maior dos outros concertos: falando com o parceiro do lado sobre as novas amizades, rindo-se de copo na mão, tirando com sorriso inevitável auto-retratos com o iPhone ou discorrendo sobre a situação económica do país. O habitual. As trivialidades da vida.
Havia de tudo: a maior parte curiosos porque tinham ouvido o álbum de estreia At Least For Now – mas ao vivo a experiência de ouvir aquelas canções é totalmente diferente – e outros porque o haviam visto no festival Super Bock Super Rock em Julho. E outros ainda, os mais cínicos ou desconfiados, que os há sempre nestas ocasiões, para averiguar se o fenómeno não seria banha da cobra.
E de repente ouviram-se notas de piano, ténues ainda, com ele a acariciar apenas o instrumento, como habitualmente, alto, esguio, aristocrático no porte, mas descalço, cabeleira afro, de casaco comprido, sentado de forma peculiar na ponta de um banco alto.
As frivolidades do mundo nem por isso se silenciaram. Havia desassossego na sala repleta. O som do piano foi subindo de intensidade, ligeiramente. E depois ouviu-se aquela voz, qualquer coisa de sobrenatural, das entranhas do mundo, se fez escutar e o Coliseu e a Avenida da Liberdade e – temos a certeza – Lisboa inteira, ficou muda, de olhos brilhantes, totalmente atónita, deixando por momentos as miudezas da vida, virando-se para o essencial, para a humanidade daquela voz, daquela música.
No fim, a sala veio abaixo. Aliás, não parou de vir abaixo ao longo do concerto. Entendamo-nos. É fácil fascinarmo-nos pela sua biografia, já contada nestas páginas várias vezes. É também fácil admirar a voz, a presença magnetizante e a sua música, como quem olha com alguma frieza para um quadro na parede. Mas depois ele tem o resto: é como nós, ou assim fantasiamos, toca-nos, revira-nos, expõe desespero, raiva, violenta doçura e também satisfação – e em vez de o admirarmos apenas, passamos a amá-lo.
E foi assim ao longo de todo o concerto. Uma relação de devoção. Da plateia, ouviram-se juras de amor. Houve quem não parasse de chorar. Bateram-se palmas a compasso. Entoaram-se cantilenas em uníssono. E, do palco, ele, emocionado mas sempre humilde, curvando-se perante aquela celebração. Sim, foi tão comovente, tão bonito, como isto. Uma daquelas noites que não se esquecem.
Já o havíamos visto em três ocasiões anteriores e é sempre diferente. Em Brighton, por exemplo, deu um recital quase próximo do silêncio, fazendo-se acompanhar ocasionalmente por uma violinista. Noutras duas situações, como no festival Super Bock Super Rock, apresentou-se como uma formação mais convencional, e esta sexta-feira foi acompanhado apenas por um baterista.
Os arranjos e as soluções musicais engendradas também se vão modificando, e até a sua presença em palco se foi alterando. Entre o músico que há uns meses apenas ruminava frases imperceptíveis com a assistência e o cantor que agora agradece em português e consegue interagir com o auditório vão anos-luz.
Por vezes, o som do piano sai em cascata, coadjuvado pela bateria, as notas perseguindo-se até ele soltar aquela voz elástica de barítono. Às vezes é pianíssimo, o Coliseu silencia-se, um arrepio parece instalar-se, para logo ser majestoso, como se a sua voz, sublimando letras autobiográficas, fizesse ricochete no terceiro balcão, enquanto a música, nem jazz, nem clássica, nem soul, nem blues, mas tudo isso ao mesmo tempo, fosse pairando no espaço.
Algumas vezes fecha os olhos, transcende-se, puxa a voz aos limites, expõe uma expressividade emocional arrebatada, para de seguida desaguar numa intensidade elegante, vislumbrando-se os seus longos dedos e os gestos eloquentes. As canções não possuem uma estrutura rígida. As que a audiência reconhece vão sendo desfiadas (London, Condolence, Adious, Nemesis, Cornerstone), mas também há lugar para outras canções, com swing e ritmo, com bateria, piano e voz em duelos ondulantes.
Às tantas, detém-se a cantar, mas quem não pára é o público, como se em vez de um espectáculo para voz desnudada e piano estivéssemos num concerto de estádio. No final, regressa para um encore triunfal e irá voltar certamente mais vezes. Nunca mais teremos oportunidade de ouvir em palco Nina Simone, Chet Baker, Jacques Brel ou Jeff Buckley, algumas das suas ascendências possíveis, mas muitos já poderão dizer que, num serão de Novembro, em Lisboa, viram e ouviram Benjamin Clementine, numa noite única e irrepetível.
Este sábado, ainda será possível vê-lo em Faro, no Teatro das Figuras, encerrando a pequena digressão que iniciou no domingo passado em Braga, e que também passou pelo Porto e Aveiro. O ano de 2015 é seu. E Portugal rendeu-se-lhe.
Vários concertos em simultâneo
A sua voz quase silenciou, simbolicamente, todas as outras. E foram muitas as que se fizeram ouvir na primeira noite do festival onde cada um é convidado a desenhar o seu próprio itinerário de concertos, com muitos deles a acontecer em simultâneo. Uma dessas vozes foi a da norte-americana Caroline Polachek, a cantora dos Chairlift que deram um espectáculo abaixo das expectativas no Coliseu.
O som esteve deficiente e a aposta quase integral nas canções do novo álbum (Moth, a editar em Janeiro) veio a revelar-se equivocada, não só porque ninguém as conhecia (com excepção do single Ch-ching), como pelo facto de serem mais atmosféricas do que celebrativas, longe da exuberância pop que se lhes reconhece. Ou seja, a energia esfuziante que quem já os viu ao vivo lhes identifica foi abafada e o que se viu e ouviu foi um grupo ainda a apurar a melhor forma de expor as novas canções.
Já se sabe, parte da atracção do evento, vive dos espaços que Lisboa todos os anos não se cansa em revelar. A edição de 2015 haverá de ser também recordada como aquela que deu a conhecer o Tanque a muitos dos espectadores que circularam entre o Rossio, a Rua das Portas de Santo Antão e a Avenida da Liberdade. Abriu há pouco tempo, é um espaço recuperado de uma antiga piscina, e é adjacente ao Coliseu. Foi aí que, digamos assim, mais se suou, com toda a gente a dançar ao som do rap e outras urbanidades, seja com Karol Conka ou com os brasileiros Zegon & Loudz, com uma mistura eficaz de hip-hop saudavelmente gordurento e sons latinos.
Onde também se dançou foi no Palácio da Foz, onde evoluíram Bison & Squareffekt ou o imparável DJ Firmeza, exemplos da vitalidade actual da música portuguesa de inspiração globalizada, com incidência em África, com ritmos urbanos como o tarraxo ou o kuduro a porem em sobressalto os corpos mais afoitos.
Outros espaços que vale sempre a pena visitar são a Casa do Alentejo, onde, ao início da noite de sexta-feira, o português Janeiro tratou de aquecer os espíritos com pop portuguesa de balanço abrasileirado, ou a monumental Sociedade de Geografia, onde a guitarra de Tó Trips e a bateria de João Doce, apesar da difícil acústica da sala, conseguiram restituir melancolia e evocar outras latitudes, numa viagem instrumental por África, Américas e Europa.
Para muita gente, uma das surpresas aconteceu no Tivoli. Foi aí que evolui LA Priest, ou seja o inglês Sam Dust, que nem sempre consegue apresentar consistência, com uma música tão esfuziante quanto esquizóide, algures entre Jamie Lidell e Prince, com electro, funk, house e uma voz elegante, mas quando acerta fá-lo com grande requinte, manuseando sozinho sintetizadores e programações, e interagindo com à vontade com a assistência.
A grande desilusão foi o cancelamento do concerto do rapper inglês Roots Manuva, por doença súbita, substituído pelo português Mike El Nite. Mas, claro, ninguém se irá lembrar disso. A noite de sexta-feira ficará para sempre gravada na memória daqueles que estiveram no Coliseu por causa daquela voz.
O festival termina este sábado com concertos de Ariel Pink, Petite Noir, Patrick Watson, Jenny Hval ou Peaches.