Loureiro dos Santos: “Ocupar a Síria com tropas é criar um outro Vietname”
Loureiro dos Santos, 79 anos, ministro da Defesa com Mota Pinto e Lurdes Pintassilgo, em executivos de iniciativa presidencial de Ramalho Eanes, membro da Academia de Ciências, perito em segurança e estratégia, reflecte sobre os atentados de Paris. Por Nuno Ribeiro (texto). Miguel Manso (fotos)
José Loureiro dos Santos não tem dúvidas das nuvens que a ameaça jihadista provoca na Europa. Desconfia das grandes proclamações pós-atentados dos políticos e do anúncio de guerras de vingança. Constata o falhanço dos serviços de informação e de uma Europa, carente de política de Defesa e sem coerência no domínio externo. E alerta: uma intervenção militar na Síria, sempre em último recurso, tem um imenso perigo. O de criar, mais de 40 anos depois, um novo Vietname. Um verdadeiro lodaçal.
Na sequência dos atentados ao Charlie Hebdo disse que a Europa ia ser o palco de uma guerra. Depois do 13 de Novembro a sua tese confirmou-se?
Sim, só espero que sejam tomadas medidas suficientes para impedir novos episódios desta guerra, deste combate entre dois tipos de civilizações. A civilização ocidental que respeita tipos de normativas e certos comportamentos e uma civilização muito marcada por normas de natureza religiosa, portanto com todos os perigos que tem o normativo religioso que facilmente se transforma em facciosismo e leva ao que estamos a assistir. No fundo, a razão dos atentados é ideológica, não há razão prática, não visa conquistar território ou alterar a situação política no país, o que visa é amedrontar as populações e transmitir aos seus apaniguados a ideia de força e capacidade face aos europeus que têm uma maneira diferente de viver da deles.
Desde Janeiro, do ataque ao Charlie Hebdo, foi feito o necessário para travar estes atentados?
Não sabemos. Para travar estes atentados é basicamente necessário reforçar e articular os serviços de informações europeus. É a chave. Se os serviços de informação não conseguirem detectar e monitorizar a tempo a organização de grupos que poderão ter uma deriva desta natureza, mais cedo ou mais tarde esses grupos agem. Então é tarde. Parece que agora há êxitos da polícia francesa em caçar os criminosos, mas os crimes já estão feitos e a perspectiva deve ser a sua prevenção.
Sempre disse, referindo-se ao terrorismo jihadista, que os seus elementos não nos vão invadir porque já cá estão. Com a recente vaga de refugiados não há terreno favorável à extrema-direita?
Até agora não assistimos a episódios visíveis cometidos por essa extrema-direita, mas se os atentados continuarem é a situação mais adequada para que apareçam, se organizem e respondam forças da extrema-direita invocando a falência do Estado. Este tipo de atentados tem uma repercussão psicológica brutal. Em França as pessoas andam com medo, confessam o medo, desconfiando se o outro não é o terrorista. É uma situação insuportável e para terminá-la é necessário que os serviços de informações de vários países funcionem e estejam articulados. A Europa tem esse ponto fraco. A Europa são vários países, o número de países dificulta a questão, podem surgir rivalidades e não haver boa coordenação. Normalmente, nesta área, a informação que se dá é em troca da que se recebe. Pode não ser em simultâneo, mas há um jogo de barganha.
Qual o papel da União Europeia?
Acho que foi e é nulo. Pelo menos não se viram efeitos, o que tem uma explicação. A Europa, como um todo, não funciona suficientemente. As estruturas europeias, aquelas que são essenciais e se traduzem na segurança e no bem-estar dos povos dos países europeus, são muito perras. Têm dificuldade em funcionar e produzir objectivos.
Também voltámos aos egoísmos nacionais?
Não sei bem se são egoísmos nacionais, possivelmente é mais a barganha, o negócio. Um país que tem conhecimento de uma série de problemas e em vez de os comunicar para evitar a catástrofe, muitas vezes guarda esse conhecimento. Não o transmite a outros serviços de informação. Muitas vezes isso acontece.
Se os serviços de informação têm debilidades, a solução é pôr tropas no terreno?
As tropas no terreno só em última instância.
Não estamos nessa fase?
Em França parece que sim, e a prova é que têm tropas no terreno.
Defende tropas no terreno?
Sim, mas não num envolvimento total. Não é possível os europeus enviarem milhares de homens para a Síria para combaterem os terroristas. A solução tem de ser uma aliança com o Estado em causa…
A natureza do regime sírio não dificulta essa colaboração?
Não tem dificultado. Neste momento, os franceses e russos estão a bombardear. Claro que a guerra civil na Síria e o terrorismo estão misturados. A Rússia, por exemplo, não é dessa opinião.
Para acabar com o terrorismo na Síria temos de patrocinar um ditador?
Não digo que seja um ditador. Neste momento, os Estados Unidos estão a enviar esquadrilhas de aviões para bombardear algumas áreas, o que é combinado com o Governo sírio. Essas intervenções são possíveis e úteis. Avançar com tropas e ocupar o território é criar um outro Vietname. É um lodaçal de onde nunca mais se sai.
O que é preciso acontecer para haver intervenção no terreno?
Infelizmente quando houver um número de baixas provocadas pelo terrorismo que alarme a população e obrigue os próprios Estados a responder. De algum modo, é o que se está a passar agora em França. Numa das maiores potências europeias, os seus habitantes andam com medo na rua. A ideia que está ser transmitida é a de que a França não é um país seguro.
O Presidente Hollande falou em "guerra"…
Sim. Mas quando ouço essa gente falar de guerra, normalmente significa que houve falhas na preparação dos dispositivos para prevenir. Depois, falam de guerra, dizem que vão responder, mas é tudo palavras, tudo palavras.
Para consumo interno?
Exactamente, para consumo interno. É uma maneira de tentar apagar os efeitos negativos dos próprios atentados e, neste caso, em França, de travar a extrema-direita.
O que representa a declaração “estamos em guerra”?
É uma constatação de impotência. De facto, isto não é uma guerra…
Dizer que se está em guerra contra o jihadismo é uma declaração de impotência?
O jihadismo combate-se na sombra, com os serviços de informação. Como, aparentemente, não se está a conseguir travar na sombra depois usam-se as palavras para compensar a falta de eficiência das forças de segurança. No fundo é isso.
Até que o jogo de palavras deixe de funcionar.
Isso pode acontecer. Que o jogo de palavras deixe de funcionar ou que os atentados se sucedam de tal forma que criem uma sensação de medo generalizado na população que pode conduzir ao reforço de certas áreas políticas, nomeadamente extremas, e pode levar, até, à contestação ou à tentativa de golpes para substituir o Governo com o argumento de que não cumpre uma das suas funções — garantir a segurança das populações.
Se a luta contra o jihadismo não é uma questão militar, a NATO fica de fora?
Julgo que a NATO pode fornecer alguns dos seus instrumentos, basicamente de informação. A NATO é uma organização que está no terreno, tem instrumentos próprios. Como a União Europeia tem pouca coisa, a única organização internacional que tem instrumentos a funcionar, uma estrutura organizada e capacidade de acção é a NATO.
É genuína a preocupação da Rússia no combate ao jihadismo?
Neste caso acho que sim. É verdade que não estiveram a bombardear o autoproclamado Estado Islâmico (EI), mas a oposição ao Presidente da Síria. O que se está a passar na Síria, no fundo é uma série de disputas desencontradas que decorrem no mesmo lugar. Há a resistência ao Presidente Bashar al-Assad, os apoiantes deste, os terroristas… Bashar al-Assad reclama, e tem um pouco de razão, que é a última garantia de uma certa segurança naquela região.
Esta panóplia de interesses na Síria não tem garantido a sobrevivência do Estado Islâmico?
Pelo menos tem ajudado, porque nesse ambiente de diversas posições divergentes movimenta-se bem, aproveita essas fracturas entre as unidades políticas.
Os Estados organizados já não o deviam ter percebido?
A luta contra o terrorismo é sempre ingrata. Enquanto os terroristas não agem, enquanto não há combates e atentados, a população não sente a necessidade dessa luta.
Na sequência do 11 de Setembro de 2001, temos tido uma sucessão de vespeiros – Iraque, Líbia, Síria – perante a incapacidade internacional de os debelar.
Quando aconteceram as chamadas primaveras árabes, toda a gente bateu palmas. Eu chamei-lhes as invernias árabes porque, de facto, a alteração de uma determinada estrutura hierárquica que está a funcionar – pode não nos agradar – dá uma certa garantia. Há, pelo menos, o mínimo de condições de segurança que aquela estrutura tem capacidade de manter. Agora estamos perante o contrário: as estruturas que deviam controlar internamente nesses Estados todas estas erupções não funcionam e vêm projectar-se no exterior. É o que está a acontecer. A Europa, de certa maneira, transformou-se no terreno de manobra dessas forças.
Se a intervenção militar não é solução, qual a forma de combater o jihadismo?
Evitar o seu aparecimento, controlá-lo através das informações.
Não deverá haver políticas mais abrangentes?
Haverá casos de jihadismo nos quais a sua justificação tem a ver, basicamente, com a forma como a política interna [de um país europeu] está a ser conduzida. Então, a política tem de ser alterada, tem de haver diálogo entre os líderes.
Concorda com os que apontam a não integração dos jihadistas como a origem dos atentados?
Admito, mas não predominantemente. São os próprios jihadistas que não se sentem participantes daquela sociedade, não concordam com os seus normativos e combatem-nos. Têm orgulho nos seus princípios e afirmam-no pela força, atemorizando os outros, o que dá uma sensação de existência. Perante as dificuldades sociais, afirmam a sua existência pelo terror, pondo os países, neste caso a França, em polvorosa. Mas também há jihadistas bem de vida. O problema não é uma questão de pobreza, mas um problema ideológico, de maneira de viver.
Esta situação coloca aos nossos países um equilíbrio delicado entre liberdade e segurança. Esta dicotomia não é perigosa?
Claro que é. Uma vez que essa dicotomia é sempre considerada, e não pode haver liberdade sem segurança pois a segurança é um elemento essencial da liberdade, mas também não pode haver exageros de segurança que limitam a liberdade. É, de facto, uma questão delicada. Apesar de tudo, nos países ocidentais isso tem sido conseguido, Tivemos [na semana passada] estes atentados, mas de forma geral pode-se dizer que a Europa, nos últimos tempos, vive em paz. Isto significa que há sistemas de segurança e serviços de informações a funcionar.
O envolvimento na luta contra o jihadismo das potências regionais, de outros Estados muçulmanos, tem sido genuíno?
Para mim não é muito visível. O envolvimento de potências exteriores à região é sempre delicado porque pode conduzir a uma escalada. O terrorismo pode-se estender, como nódoa de azeite, aos países da zona, como aumentar na sua violência.
Não temos subestimado a força do EI e as consequências dos seus atentados?
Talvez tenhamos subestimado. Pelo menos não estamos a dar a resposta necessária, o nível de resposta é claramente insuficiente para conter as acções do EI na Europa. Eles recrutam e mobilizam gente que está na Europa, não precisam de importar os seus elementos, têm matéria-prima para doutrinar e utilizar. O que é, ainda mais, complicado.
Pôs reservas a uma intervenção militar, mas sabe que há “falcões” que a querem?
Admito que hajam. A nível dos estados-maiores, falo dos Estados Unidos e de alguns países europeus, como a França. Aparentemente, as lideranças políticas francesas fazem jogo político com estas coisas, não querem ficar mal.
Como define esse tipo de actuação?
É condenável.
Não é populismo parecido com o da extrema-direita?
É o mesmo tipo de populismo que quer tirar partido em termos políticos.
Dizem que Portugal não está na rota do jihadismo. Qual é a sua opinião?
Relativamente ao jihadismo e a todos os focos de violência, Portugal é um país que não tem expressão estratégica forte, como a Alemanha, a França, a própria Espanha. Um acontecimento como estes atentados em Paris tem enorme repercussão que não seria igual, ou parecida, se acontecesse aqui em Lisboa. Esta é uma das razões. A outra é que Portugal tradicionalmente é usado pelos grupos que utilizam a força como zona de recuo, mas não como teatro de operações.
Perante um atentado deste tipo, teríamos condições, do ponto de vista de informação e segurança, para responder?
Do ponto de vista de informações presumo que sim, há gente de qualidade à frente. Do ponto de vista militar temos, mas o recurso aos meios militares nestes casos não é rentável. O meio militar é poderoso demais, forte demais…
A PSP, a GNR e a PJ têm meios?
Penso que sim. Podem às vezes ter deficiência de efectivos, por exemplo, para vigiar todos os pontos sensíveis de segurança do país, serem insuficientes para a vigilância estática e, em resposta, intervir. Nessa altura teriam de entrar as Forças Armadas para vigilância, em patrulhas mistas, mas numa situação normal os militares não têm autorização para utilizar a força. Normalmente, há três graus de situações: o normal; o grau máximo, o estado de sítio, que passa pela definição de uma área que passa a estar sob autoridade militar, como aconteceu no 25 de Novembro de 1975 na área da Região Militar de Lisboa; existe, ainda, um estado intermédio, o de emergência, no qual a autoridade continua nas autoridades administrativas. Claro que tem de haver mecanismos de observação, normalmente são os serviços de informação que dão os elementos necessários ao Presidente da República que decide por decreto presidencial.
“Espero que um ministro PS dê mais atenção aos problemas da família militar”
No último ano e meio, foi porta-voz da opinião de oficiais-generais e oficiais sobre a acção do ministro da Defesa Nacional. Que balanço faz da acção de José Pedro Aguiar-Branco?
Do ponto de vista organizativo fez coisas positivas. Racionalizou os meios, isto é, fez com que houvesse possibilidade de fazer mais com menos.
Do ponto de vista operacional das Forças Armadas há essa possibilidade?
Não, apenas, do ponto de vista operacional. Quando temos três núcleos e os juntamos, mesmo mantendo os efectivos, isso permite aumentar a capacidade operacional, porque passa a haver menos gente empenhada em serviços que sempre existem, independentemente da dimensão do núcleo. Como os serviços de segurança e logísticos. Nesse aspecto houve alguma racionalização de meios. Julgo que o ministro Aguiar-Branco falhou especialmente pela retórica, pela maneira como expôs as situações. Houve alturas em que foi um pouco além do que seria desejado.
Não foi posta em causa a operacionalidade das Forças Armadas?
Não, não foi. Temos forças operacionais.
Essa é uma das críticas de oficiais-generais e oficiais…
O que aconteceu foi a redução dos meios militares.
E não pôs em causa a operacionalidade?
Põe e não põe. No que respeita ao produto operacional das forças não houve grandes alterações, é o mesmo produto. O que se passa é que houve uma forte reorganização do dispositivo, o que é bom pois permite poupar meios, mas reduziu a presença militar em muitas áreas do país provocando a reacção das autoridades locais, por motivos de segurança e económicos. Mas julgo que não podemos apontar ao ministro grandes erros. Os meios operacionais que temos permitem exercer a soberania em qualquer parte do país.
O que espera de um ministro da Defesa do PS?
Espero que tenha mais atenção com os problemas dos militares e das suas famílias. Refiro-me ao problema da assistência na Saúde, essas questões que afectam diariamente a família militar e que, a meu ver, não tiveram a atenção que deviam do actual ministro.