Argentinos votam com desejo de mudar - mas para a direita ou para a esquerda?

Há um cansaço com o Kirchernismo, mas também o receio que um Presidente de direita imponha políticas que acabam com programas socias. Os mercados internacionais apostam em Maurício Macri.

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Apoiantes de Macri com uma imagem do candidato em papel mas em tamanho real JUAN MABROMATA/AFP

As sondagens dão oito pontos de vantagem a Maurício Macri, o candidato da oposição de direita nas presidenciais argentinas que marcam o fim dos 12 anos de um Kirchner no poder. O ex-presidente da câmara de Buenos Aires, uma cidade de dez milhões de pessoas, concorre contra Daniel Scioli, o ex-governador da província, que tem uma área semelhante à de Itália e foi o sucessor escolhido por Cristina Fernandez de Kirchner, numas eleições marcadas por uma economia em queda e uma forte mas difusa vontade de mudança.

O casal Nestor Kirchner e Cristina Kirchner, políticos peronistas, construíram um sistema baseado em programas de subsídios para os mais pobres, nacionalização da petrolífera YPF, aumento das tarifas sobre as importações e leis com medidas apoiar os mais idosos, os deficientes, gays e lésbicas e outros grupos minoritários ou às margens da sociedade que mereceu um nome próprio, o Kirchernismo. A morte súbita de Nestor impediu que voltasse a ser Presidente depois de Cristina ter sido também eleita para a Casa Rosada e agora ela, depois de cumprir dois mandatos, tem de deixar o poder.

Mas a herança do Kirchernismo está em jogo nestas eleições – a Presidente Cristina promete que não se afastará da política, e controlou a campanha do político que escolheu como seu sucessor. Se bem que Scioli, visto como um kirchnerista moderado, após a primeira volta de 25 de Outubro, tenha tentado escapar-se um pouco ao controlo abafante da sua patrona.

E nos nomes que Scioli vai anunciando como os que comporiam o seu governo, se ganhar, integra colaboradores próximos do seu gabinete de governador, e onde primam pela ausência figuras do núcleo duro do Kirchernismo, diz o jornal espanhol El Mundo. É notada a ausência de membros do movimento juvenil La Cámpora, liderado por Máximo Kirchner, o filho mais velho da Presidente, que elege deputados para o Congresso argentino.

O sinal de Vidal

Só que, na primeira volta, a 25 de Outubro, Daniel Scioli apenas obteve 37% frente a Maurício Macri – e não um resultado relativamente folgado que lhe desse algum conforto para a segunda volta, como previam algumas sondagens. E houve outros sinais preocupantes para os kirchneristas: a macrista María Eugenia Vidal, a grande revelação política destas eleições, arrebatou a província de Buenos Aires aos peronistas – algo que não acontecia desde 1987, sublinha o jornal espanhol El País.

A eleição de Vidal, com o apoio expresso de Macri, elevou as expectativas de vitória do candidato da oposição na segunda volta das presidenciais. Ela até aparece em alguns dos anúncios da sua campanha.  “Com as suas raízes na classe média, Vidal é uma espécie de contra-peso de Macri, que o partido de Scioli retrata como um neoliberal nascido na riqueza e no privilégio”, comentou à Reuters Jimena Blanco, analista da firma de consultoria britânica Verisk Maplecroft. Macri é de uma das famílias mais ricas da Argentina – mas Scioli também.

Mas Macri é o representante da direita e, apesar de prometer manter alguns dos programas sociais de Cristina Kirchner, proteger os salários dos trabalhadores e da classe média, e manter os subsídios energéticos, mas quer reformar a terceira maior economia da América Latina – que tem as reservas de divisas muito baixas, um défice orçamental a crescer porque disparou a despesa pública, uma inflação na ordem dos 24% e um crescimento fraco. Hoje, quem tem dinheiro para viajar vai fazer compras vai fazê-las ao estrangeiro, porque é mais barato, diz o El País: o consulado dos Estados Unidos em Buenos Aires é o segundo, após o de Pequim, que mais vistos de turismo atribui em todo o mundo.

A pobreza afecta 2,1% da população, e seis dos 41 milhões de argentinos recebem ajudas sociais, diz ainda o jornal espanhol. Mas as es estatísticas pouco confiáveis. A Argentina vive com o receio de uma forte desvalorização da moeda, sempre com a recordação dos anos do corralito, quando o Governo, para enfrentar uma crise profunda, em que o país estava completamente endividado, congelou todas as contas bancárias.

O dedo da Moody’s

Os mercados internacionais e as agências de notação estão a cruzar os dedos, apostando numa vitória de Mauricio Macri. A Moody’s afirmou esta semana que a nota da Argentina pode subir se o candidato da oposição ganhar e impuser reformas favoráveis aos mercados, disse o principal analista para a América Latina desta agência, Mauro Leos, citado pela Reuters.

Não é de esperar nenhuma escalada: actualmente, o país tem uma nota Caa1, o que significa que tem um grande risco de entrar em incumprimento (enfim, é lixo…). “Talvez possa ser suficiente para sair do grupo Caa. Mas se o fizermos, seremos muito cautelosos”, sublinhou Leos.

O trabalho da campanha de Daniel Scioli é desacreditar a mensagem de que a mudança é possível. “A partir da primeira volta pusemo-nos a falar com as pessoas sobre como Macri lhes vai afectar o bolso, vai aumentar o pão, o leite”, explicou ao El País Pablo Walker, líder de um grupo que faz campanha porta-a-porta num bairro em San Miguel, a cerca de 37 km de Buenos Aires.

Pergunta a um grupo de varredores de rua quanto ganha e fala-lhe da possibilidade de uma grande desvalorização da moeda. O salário dele são 6500 pesos argentinos, mais ou menos 627 euros. “Acredita que Macri lhe vai subir o ordenado? Se houver uma desvalorização de 50% sobem os preços todos, mas o salário não”, adverte. Um dos varredores diz, finalmente. “Não, na realidade vou votar em Daniel Scioli. Com Macri lixamo-nos.”

Mas há um desejo de mudança, um cansaço com o Kirchnerismo – com os “K” – que permitiu a Ramiro Tagliaferro, o marido da nova governadora de Buenos Aires que tão simbólica se tornou para a campanha de Macri, conquistar um outro bastião dos Kirchner, a cidade de Moron, a cerca de 30 km da capital argentina. É mesmo um centro urbano de classe média, de cerca de 320 mil habitantes, em que 75% do município tem esgotos e 90% água canalizada – algo que falta em muitas habitações da área de Buenos Aires, onde pululam favelas – que era dirigido há 16 anos por um fiel kirchnerista, entretanto chamado ao Governo. Mas nas eleições gerais de 25 de Outubro entregou-se à oposição.

“Votei em Nestor e Cristina [em 2003, 2007 e 2011] porque me pareciam a melhor opção. Mas criaram muitos confrontos políticos, fizeram com que a gente lute por causa deles, não se pode falar de política com colegas de trabalho ‘K’. Até 2011 vivia-se bem, mas começaram a dar mais subsídios. Cobram-te imposto sobre rendimento para pagar aos que não trabalham. Queremos uma mudança… Roubam-te mal sais de casa”, queixa-se Juan Pablo Sánchez, de 37 anos, funcionário num bingo, citado pelo El País. “Em Morón há muita classe média e estamos descontentes com o imposto sobre os rendimentos”, resumiu, dando testemunho de uma volta à direita no eleitorado argentino.

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