No seu novo filme Montanha, o cineasta português João Salaviza regressa à adolescência, tema de duas das suas curtas-metragens, Arena e Rafa.
Gosto sobretudo de Rafa: um adolescente descobre que a mãe está presa e decide deixar a Margem Sul na mota de um amigo. O seu destino é a esquadra da polícia onde a mãe está detida, na esperança de a poder trazer de volta. Com uma fotografia belíssima, Rafa traz-nos a vida de muitos jovens da outra margem, a viverem um quotidiano de tédio, onde a família e a escola há muito deixaram de ter o papel de referência com que costumamos enquadrar a adolescência.
Em Montanha, Salaviza vai mais longe. David tem 14 anos e vê a mãe chegar de Londres, porque o seu avô materno está no hospital. O filme mostra como David deambula pelo bairro dos Olivais, recusa a escola e vive as emoções da adolescência, sem que um adulto apareça a conferir o percurso para a definição da sua identidade.
O que me encanta neste filme é a capacidade do realizador em captar a intimidade de um adolescente a partir do interior do protagonista. Montanha não é mais um filme sobre a adolescência, é um testemunho de um jovem sobre o que está a sentir nessa época de vida. Salaviza filma pelos olhos de David, a partir da sua pele e das suas emoções. Os adultos estão por ali, mas não estabelecem com os jovens relações significativas: nas conversas com a mãe predominam os silêncios, o diálogo com o namorado da mãe é pontuado por não-ditos e na escola sobressaem as frases feitas da professora, a que não faltam as recomendações paternalistas, tantas vezes dadas a estes jovens sem rumo.
O avô está no hospital, espaço filmado em tons escuros, lúgubres, presságio da morte que vai chegar. David, numa cena belíssima, chora a morte do avô e nós, mais uma vez pelo seu olhar, ficamos a saber que ele era o seu único vínculo significativo. À volta, a cidade destruída, inacabada, fria, onde a violência pode espreitar a cada passo e as referências tradicionais de uma família coesa e de uma escola para todos deixaram de existir.
A adolescência também é um território de descoberta do amor e da sexualidade. No entanto, o filme de Salaviza levanta a questão: pode haver histórias de amor satisfatórias num contexto de fragilidade das relações familiares primordiais? Há espaço para a paixão juvenil quando à volta predomina um cenário de crise e instabilidade no quotidiano? David aproxima-se de Paulinha e partilha-a com um amigo, mas a rapariga também vive num mundo sem adultos, onde a experimentação sexual ocorre sem referências e sem grande reflexão. Aqui também observamos os corpos de três adolescentes cansados, abandonados, à espera de um encantamento que não chega ou de um limite qualquer que ninguém quer estabelecer. Paulinha parece não conseguir ligar-se a nenhum dos rapazes e nós, sem nada sabermos sobre a sua vida, compreendemos que também está sozinha no mundo e que se agarra à vida através do seu corpo em maturação.
A mota também lá está, como em Rafa, único meio para viver uma sensação de liberdade, de evasão e de domínio de um mundo que nada oferece. Só a vertigem da motorizada permite ter a sensação de escalada da “montanha”, metáfora do cineasta para nos conduzir às vicissitudes da adolescência problemática. Tudo corre mal, como se espera a cada passo, e essa “conquista” roubada acaba queimada num cenário de destruição.
Em derradeira análise, Montanha é um filme sobre a verdadeira adversidade dos nossos dias, a crise das relações interpessoais e da construção de um futuro melhor.