A cidade adormecida

Que Paris é esta que foi atacada por um grupo de jihadistas, deixando o mundo em estado de choque? A cidade está agora vazia e os parisienses à espera de que ela acorde e lhes diga que podem continuar a festa.

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— Os mortos não estão tranquilos, em Paris.
— Ninguém está tranquilo, em Paris.
René Fallet, Paris au mois d’août (1964)

1. Na manhã seguinte aos ataques de sexta-feira 13, no espaço frio do Nowe Muzeum Slaskie, em Katowice, no Nordeste polaco, encontrei, numa parede tão cinzenta como as cores do quadro, uma reprodução do Arco do Triunfo, tal como o viu Aleksander Jedrzejewski em 1932. Chama-lhe, simplesmente, Paris (Arc du Triomphe-Étoile). O movimento circular que faz mover a direcção do nosso olhar está ao centro da pintura. O arco, de detalhes desfeitos, é, ainda assim, mais preciso do que os restantes edifícios das ruas que o contornam. Existem vários carros e carrinhas vermelhas e o dia parece de chuva mas buliçoso. Não fosse o que se passara na véspera e a visão deste quadro seria, para mim, tão banal como a realidade que nele se vê retratada. O pintor, sobre o qual a informação é escassa, até no próprio museu, pinta o que Paris parece desconhecer, como, de facto, desconhecia: as intenções que, nesse mesmo ano, se escondiam atrás das acções de Hitler em plena preparação de assalto ao poder. 

Quando regressei, surpreenderam-me as ruas vazias. Enquanto percorro uma livraria, encontro um livro, Place de l’Étoile, escrito em 1968 por Patrick Modiano, autor que é alma viva da história de Paris. Situando-o dez anos depois do quadro pintado por Jedrzejewski, Modiano fala de uma capital ocupada pelo exército alemão. Ao início, um diálogo entre um jovem oficial alemão, que pergunta onde fica a Étoile, e um judeu, que lhe aponta o lado esquerdo do peito, marca o tom do livro. Étoile, que significa estrela em português, permite-se a um jogo de palavras entre a localização da praça, desejada pelo alemão pelo que representa para a identidade da cidade, e a estrela de David, que marca e confina a identidade do judeu.

Dizem-me que desde a ocupação alemã que as ruas de Paris não se mostravam vazias. A tentação de encontrar um paralelo com as ruas que encontrei no regresso de Katowice é justificada quando, depois da declaração de guerra que François Hollande proferiu perante o Senado e o Parlamento, em Versalhes, vejo no filme Francofonia, do realizador russo Aleksander Sokourov, a tentativa de falar da arte como “a língua franca da civilização”, como escreveu a revista Les Inrockuptibles. Sokourov socorre-se do exemplo da ocupação alemã e do processo de transladação das obras no Museu do Louvre para palácios e mosteiros desconhecidos do exército alemão para explorar a ideia de uma cidade-estado que, não sendo o berço da humanidade, é, pelo menos, o berço do humanismo. A narrativa de Francofonia, que mistura documentário e ficção, não deixa de colocar uma Marianne a repetir os valores da República perante as intenções de Hitler, que justificava o saque do Louvre como a tomada de posse da própria Europa. A leitura de Sokourov propõe que através dos retratos do povo expostos no Louvre podemos contar a história europeia. “Esta necessidade de registo do povo, esta fixação da memória, não existe noutras civilizações, como a muçulmana, que não admitem o retrato”, continua. É como se dissesse que sem história não há memória, e sem memória não há consciência.

Civilização foi também a marca distintiva no discurso de Hollande na passada segunda-feira em Versalhes: “A França não se envolverá numa guerra de civilizações porque os assassinos do Estado Islâmico não representam qualquer civilização.” Paris, mais do que capital de um país, é, afinal, a capital de uma civilização que vê serem atacados aqueles que já nasceram depois de todas as conquistas e, por isso, herdaram uma cultura maior e mais vasta do que a própria França. “A cultura — é por ela que a França hoje se bate”, reafirmou Hollande ao Conselho Geral da UNESCO, na manhã de quarta-feira, horas depois de novas explosões na periferia parisiense.

Aquilo a que se referia era, apesar de tudo, à criação de uma lei para o exílio patrimonial de obras de arte que pertencem a todos mas que estão sujeitas a cair nas mãos dos terroristas do Estado Islâmico. Mas a destruição a que esse património mundial tem sido sujeito nos últimos meses relaciona-se com a ausência de necessidade de referências artísticas. A destruição da memória colectiva começa na destruição da memória individual. E, com ela, a dos seus rostos e do seu modo de vida.

2. Leio no Le Devoir o artigo de Dider Peron, “O que forjará a geração Bataclan”: “Se quisermos considerar que em França, mais do que em qualquer outro lugar, uma geração se define pelo seu baptismo de revolta ou manifestação, falemos nós dos estudantes do Maio de 68 ou dos tumultos de 2005, ficamos com a sensação de que, pela primeira vez, há uma geração que nasceu e morreu no mesmo ano.” Era essa liberdade, essa ideia de fraternidade, esse princípio de igualdade que fizera com que, em Janeiro deste ano, dias depois dos ataques ao jornal Charlie Hebdo, as ruas de Paris se enchessem de um mar de gente, mesmo as que nunca tinham lido ou ouvido falar do jornal satírico. Era tanta a gente que o mundo foi pequeno para as acolher porque o que se defendia não admitia fronteiras. Eram as mesmas pessoas que já nasceram na miscigenação e tanto lhes dá comer paquistanês ao almoço como jantar sírio à noite. É gente que enche os 10.º e 11.º bairros com a ligeireza de um quotidiano sem regras. Gente que é, afinal, a recusa da gentrificação, da cidade turística, da realidade vista pelo filtro do Instagram. É gente que não vai aos museus porque deixa sempre tudo para o fim mas pode ir ao cinema às 9 da manhã, porque haverá sempre um filme para dialogar com o seu estado de espírito. É gente que, afinal, precisa das ruas não apenas porque as casas são pequenas mas porque precisa dos rostos dos outros para se sentir em casa. É gente que olha para Paris e sabe que a cidade já não é o lugar da descoberta mas da validação. Paris pode já não ser a cidade da nossa vida, mas a cidade por onde a nossa vida passará. A cidade onde nunca há tempo para nada excepto para perder tempo a discutir um qualquer assunto horas a fio, em qualquer sítio. A cidade das filas intermináveis para tudo, da burocracia não kafkiana mas proustiana, porque tudo tem uma razão ancestral, e a cidade onde o primeiro ano é um verdadeiro teste à resiliência e à sorte de principiante.

Paris é, dizia-me um amigo que entretanto se foi embora para Nova Iorque, “a cidade que se ama melhor quando se está distante”, porque quando se vive nela todos os dias, é esse namoro constante que deixamos colado em frigoríficos do tamanho de uma perna em casas do tamanho de quatro braços esticados e que custam mais do que o rendimento médio português, mas com vista para todos os sonhos possíveis.

“A França é a terra de acolhimento de todos os inexistentes, e falamos francês, que é a língua do Império das Ideias”, escreveu Alexis Jenni em L’art français de la guerre, romance ácido sobre o pós-guerra, como se fosse um estado mental no qual a França se foi construindo ao longo de todo o século XX e que hoje parece ainda mais certo, sobretudo quando a geração atacada não herdou o medo de viver. “O império permite-lhe viver em paz, ser igual e diferente ao mesmo tempo sem fazer disso um drama. Contudo, para se ser cidadão de uma nação, há-que merecê-lo, por nascimento, pelo carácter, por uma análise fina das suas origens. É esse o lado negativo de uma nação: ou somos ou não somos, e a dúvida permanece.”

Por isso, em Janeiro, quando gritámos ser Charlie, gritávamos, nas ruas de Paris, pelo que a França há tanto tempo gritava por nós. O que se estava a defender era esse direito de pertença através da defesa de valores que, adormecidos porque tidos como garantidos, estavam a ser atacados pela mais vil das formas: a repressão de algo tão estrutural para a identidade como a liberdade de pensar.

Mas em Janeiro não estávamos em guerra. Agora estamos. As ruas estão vazias. Estão vazias há vários dias. Onde estão os parisienses? Os bares fecham mais cedo, os teatros demoram a encher, os autocarros, à noite, passeiam sozinhos. Aqueles que têm família noutras regiões depressa marcaram viagens, apesar dos preços proibitivos de última hora. Nas mensagens que fui recebendo desses amigos que foram para o Sul, para o Norte, para junto da família, parece não caber a nostalgia filmada por Woody Allen em Meia-Noite em Paris, nem os passos de dança de Gene Kelly nas praças de cartão de Um Americano em Paris. Parecemos ter vergonha das pernas da Shirley Maclaine a desafiar o Jack Lemmon no Irma La Douce ou perdido a vontade de correr pela Grand Galerie do Louvre, como no Jules e Jim.

Desde a Ocupação que Paris não se esvaziava, insistem. Nem quando o estado de emergência foi criado, em 1955, para fazer face aos ataques do exército argelino. A guerra depois de 1945 continuou sempre lá fora, e Paris, depois de libertada, o palco de todas as manifestações. Hoje ninguém sabe o que foi porque ninguém teve de se esconder. Nunca ninguém teve de viver em ruas vazias, deixadas apenas para os turistas e, mesmo esses, incapazes de as fotografar.

O projecto europeu, que por duas vezes a França questionou — na rejeição do Tratado em 2005 e na vitória dada à Frente Nacional nas últimas eleições europeias — vivia bem com o orgulhoso cepticismo francês. É por isso que não há um guião para estes dias. E Paris, a dos cenários para filmes, não chega para encher as ruas.

Navegou-se à vista até que a realidade que só conhecíamos filtrada pelas redes sociais, discutida nos cafés como hipótese teórica, questionada na imprensa, entrou no quotidiano de cada um, num estádio de futebol, num restaurante, num bar, numa sala de espectáculos. Na vida, afinal, que mais do que escolhida era garantida. E é por isso que toca tanto os que têm de Paris a imagem da capital perfeita, de pôr do Sol atrás de Notre Dame e feiras da ladra de perder de vista. E é por isso que, indignados, os parisienses, os que moram aqui e os que, de coração, se sentem aqui, nesta capital da civilização, não suportam o moralismo dos que dizem que só se chora por Paris e exigem que se chore por todos os dramas. Como se Paris não fosse, afinal, o âmago do que se tenta defender para cada um dos outros dramas.

Já não sei onde li: “A liberdade que estamos a defender é a nossa liberdade, a nossa forma de a viver.” Na manhã seguinte aos ataques, um comentário publicado no jornal New York Times fazia a apologia de um modo de vida que não podia soçobrar. E que reflectia isso mesmo: “A França incarna tudo o que os fanáticos religiosos detestam: aproveitar a vida na terra através de uma multitude de formas: um café perfumado com um croissant cheio de manteiga de manhã, lindas mulheres que nos sorriem na rua vestidas com saias curtas, o cheiro do pão quente, uma garrafa de vinho partilhada entre amigos, um pouco de perfume, crianças que brincam no Jardin du Luxembourg, o direito a não acreditar num Deus qualquer que ele seja, não se preocupar com as calorias, flirtar, fumar e ter uma vida sexual sem se ser casado, ir de férias, poder ler qualquer livro, ir à escola gratuitamente, brincar, rir, reivindicar, fazer pouco tanto dos políticos como dos padres, deixar a inquietude sobre a vida após a morte para os mortos. Em nenhum país no mundo se vive melhor que em França.” Foi isto que foi destruído, este mundo “de abomináveis pervertidos”, escreveram os terroristas na reivindicação dos ataques. Como se defender então do seu próprio modo de vida?

 3. Nos dias a seguir aos ataques não foram poucas as pessoas que partilharam no Twitter o título francês de A Moveable Feast, de Ernest Hemingway, Paris est une fête, defendendo exactamente que aquilo que havia sido atacado pelos terroristas era, afinal, um modo de vida que não admitia recuos. Anne Hidalgo, maire de Paris, haveria de se referir a esse modo de viver no discurso que fez na quarta-feira no encontro dos maires franceses: “Esta Paris que foi atacada é nossa. Sofre mas mantém-se de pé e olha a direito. Está viva e viverá. Permaneceremos de pé, continuaremos a ser nós mesmos, unidos pela liberdade, pela igualdade e pela fraternidade.”

Nunca tendo lido o livro, abro ao acaso uma edição de bolso e encontro uma descrição que serve na perfeição uma cidade que, longe de ser perfeita, é sempre descrita como o sendo: “Paris era uma cidade muito velha, e nós éramos jovens e nada era simples, nem mesmo a pobreza, ou a riqueza imprevista, nem a luz da lua, nem o bem, nem o mal, nem o respirar de alguém a dormir ao nosso lado à luz da lua.” E outra, deixada de fora na edição original e recuperada quando passaram 45 anos da sua publicação: “Não há nunca um fim em Paris e a lembrança que cada um guarda é diferente. Voltaríamos todos e, a cada vez, não importa quem éramos, ou o que havia mudado, nem com que dificuldades — ou com que facilidade — o tínhamos conseguido. Paris valia sempre a ida, e recebíamos sempre qualquer coisa daquilo que lhe dávamos.”

Perguntei a amigos diversos o que era, como era, porque era, Paris e as respostas mostram esse sentimento de pertença prolongado no tempo. Falavam de como a cidade foi parte das suas vidas, ou a vida toda, ou a cidade onde deveriam ter nascido, de como foi nela que se apaixonaram a sério, de como Paris as ensinou a viver para lá da sua própria imagem de cidade-postal, de bifes tártaro e champanhe numa tarde de Inverno, de símbolos de paz e liberdade, do jazz, da luz reflectida nos edifícios, e dos próprios edifícios, da sua majestade e da profunda e constante transformação, de lugar de acolhimento para todos... E a cada resposta afastando um quotidiano que, muitas vezes, parece fazer de tudo para nos expulsar. Há uma frase, profundamente misógina, de Raymond Queneau em Zizi dans le metro, onde se lê que “Paris parece uma daquelas mulheres que se transformaram em homens à força de tanto praticarem desporto”. Essa dureza, sedutora quando é necessário defendê-la, é uma característica irresistível, molda-lhe o charme e apaga as dúvidas. As ruas estão vazias. E os que sobreviveram, como escreveu Aragon, “nascerão das ruínas de hoje”.

Um amigo, professor de História da Arte, diz que passou os primeiros dias da semana a ouvir os alunos do ensino secundário a justificar as ausências das aulas por medo. E os que iam, incapazes de controlar as emoções. Nas aulas, em vez da história, em vez da arte como língua franca da civilização, o choro compulsivo de alguns. Paris e a sua monumentalidade não servem de nada. Pergunto-lhe como fez para lhes explicar o que se passara e que a cidade atacada ainda era a sua cidade. A resposta é a mais contundente: “Não fiz, ouvi.”

Marc Crepon, director do Departamento de Filosofia da École Normale Superieur, escreveu no jornal Libération que “uma vez que a violência irrompe no decorrer normal da vida, há uma ruptura que é introduzida; e o que é interrompido é a confiança no espaço percorrido, nos lugares que frequentamos, naqueles com quem nos cruzamos”. Talvez isso explique a dificuldade de esclarecer o que é, o que pode ou como é Paris. Nunca a pergunta havia sido formulada porque não havia razão para o ser.

4. Na tarde de 7 de Janeiro, após ter terminado uma reportagem para o jornal e deixado a Rua Nicolas Appert, onde ainda fica a redacção do Charlie Hebdo, não foram poucas as vezes que ouvi alguém dirigir-se a um homem ou uma mulher muçulmana e sorrir-lhe, estender-lhe a mão e dizer-lhe que sabia que não eram todos iguais. Nos dias seguintes, e mesmo com a retórica inflamada da Frente Nacional, Paris sabia que era o que era por causa daqueles que ali tinham escolhido viver ou ali tinham nascido. Na grande manifestação de dia 11, quando a República era aquele mar de gente toda igual, fraterna e livre, éramos todos parisienses, franceses, cidadãos do mundo, como se Paris fosse a Atenas de Sócrates.

Mas hoje “o corpo social treme de febre”, como escreveu Alexis Jenni em L’art français de la guerre. “Não consegue dormir o corpo social: ele receia perder a razão e a sua integridade; a febre agita-o. Ele não encontra posição na cama quente. Um barulho inesperado soa-lhe como uma agressão. Os enfermos não suportam que lhes gritem, faz-lhes tão mal que é como se lhes batessem. No calor descontrolado do seu quarto, os enfermos confundem a ideia e a coisa, o medo e as consequências, o barulho das palavras e dos murros.”

Vivem assim, hoje, os que sobreviveram. E foram todos os que não morreram. Se os últimos dias já eram estranhos, com a ideia de normalidade a ser reequacionada através do esforço da sua moralização — o que é ou não normal, afinal?! — com as declarações de Hollande, o normal agora é encontrar a sua própria definição de normalidade a partir do que nos rodeia.

E o que nos rodeia é, agora, a guerra. Por isso, agir normalmente, estar em guerra, é ouvir o silêncio nas ruas. É não ousar olhar nos olhos de quem viaja ao nosso lado no metro. É dizer bonjour timidamente. É perguntar, receoso, se a pessoa ao lado perdeu alguém e ficar aliviado porque a resposta foi negativa, como se a ideia de segurança pessoal se construísse a partir da distância que temos relativamente ao que se passou. É não ver ninguém nas ruas a um domingo à noite, excepto aqueles que não têm onde dormir, e acelerar o passo quando nos dirigem a palavra. É suspeitar por cima do ombro e ver as cortinas fecharem-se, esquecendo que não é porque nos sentimos mais seguros que estamos menos sozinhos. É acharmo-nos protegidos mas não sabermos até quando. É sentirmo-nos estrangeiros na nossa própria casa, na que escolhemos. É garantir que saímos de casa, mesmo que seja só para ir ao supermercado, com o bilhete de identidade no bolso. É dizer aos amigos que se quer estar mais tempo com eles. É tentar fazer como se nada fosse, esperar pelo dia em que tudo isso vai acabar e esquecermos que o fim pode nunca chegar. É ouvir que os ataques se intensificaram e saber que isso não vai senão alimentar o ódio. E é impedir a adrenalina causada pela ideia de vingança, afinal tão natural. E, por isso, ouvir mães discutir no passeio que deveriam existir mais medidas para proteger os filhos a quem não sabem explicar o que se passou torna-se tão natural que é como se tivesse sido sempre assim. É estranhar que o largo passeio em frente ao Centre Pompidou esteja vazio, de turistas e malabaristas, mas percebermos o porquê e indignarmo-nos.

E então, procurando sair do torpor, leio a coluna de Luc Le Vaillant “Abraçar-nos-emos como abomináveis pervertidos”, no Libération, no dia em que entramos em guerra, e percebo a razão para essa resistência a essa guerra, feita em casa, contra os que a invadem: “Para não esquecermos as existências desbaratadas pelas balas, amanhã voltaremos a ouvir a música rock no Bataclan e a comer os nam de camarão no Petit Cambodje e a cortar a cabeça aos teocratas, tal como cortámos a cabeça ao absolutismo real que fazia correr rios de sangue.”

 5. Paris regressará. Paris é “a mudança em continuidade”, diz-me um amigo, sempre impressionado com a recusa de uma cidade-postal numa cidade, precisamente, tão antiga. Um outro amigo dizia-me, seco: “A única diferença entre hoje [terça-feira] e a quarta-feira passada é que há menos oito terroristas vivos. De resto, tudo é igual.”

E então volto a Patrick Modiano, que escreveu No Café da Juventude Perdida sobre a geração que viveu as ruas vazias de 1944 e cujo título encontra agora novos ecos nas ruas vazias da geração de 2015. Ele fala de uma ideia de tempo comum construído na cidade e a partir do que se perdeu em cada uma das vidas interrompidas: “Volto-me mas não há ninguém. Não somente à noite, mas no pino das tardes de Verão em que deixamos de saber quem somos ou em que ano estamos. Tudo recomeçará, como antes. Os mesmos dias, as mesmas noites, os mesmos lugares, os mesmos encontros. O eterno retorno.”

Tudo recomeçará, afinal. Mas hoje as ruas estão vazias, deixando que o som das sirenes das ambulâncias ocupem todas as vidas.