Paris indignada com falta de coordenação entre secretas europeias

O homem que terá orquestrado os atentados, Abdelhamid Abaaoud, foi morto na operação policial de quarta-feira. Governo diz que ninguém comunicou ao país que ele tinha regressado da Síria.

Foto
O Governo francês confirmou a morte de Abdelhamid Abaaoud Christian Hartmann/Reuters

À semelhança do que aconteceu após os atentados contra o jornal satírico Charlie Hebdo e uma mercearia de produtos judaicos, em Janeiro, as discussões sobre o massacre da passada sexta-feira em Paris evoluíram rapidamente para uma troca de acusações entre países europeus sobre as falhas das agências de serviços secretos.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

À semelhança do que aconteceu após os atentados contra o jornal satírico Charlie Hebdo e uma mercearia de produtos judaicos, em Janeiro, as discussões sobre o massacre da passada sexta-feira em Paris evoluíram rapidamente para uma troca de acusações entre países europeus sobre as falhas das agências de serviços secretos.

Esta quinta-feira, na mesma declaração em que confirmou a morte do homem suspeito de ter planeado os ataques terroristas de 13 de Novembro, o ministro do Interior francês, Bernard Cazeneuve, disse que o seu país não recebeu nenhuma informação de que Abdelhamid Abaaoud tinha regressado da Síria e que estava em França, dando um peso institucional às acusações difundidas por jornais e televisões franceses nos últimos dias – a de que "os belgas simplesmente não estão à altura" de lidar com as células de extremistas islâmicos criadas e alimentadas na Europa por cidadãos europeus.

O primeiro-ministro belga, Charles Michel, respondeu a estas acusações numa declaração perante o Parlamento, prometendo um pacote de 400 milhões de euros e novas leis para lidar com o extremismo islâmico, que em épocas mais pacíficas na Europa seriam recebidas com indignação por organizações de defesa da privacidade: a detenção de presumíveis jihadistas que regressem da Síria; a criminalização das pessoas definidas como "pregadores de ódio"; o encerramento de locais de culto que não estejam registados; o fim da compra anónima de cartões de telemóvel pré-pagos; e a autorização para que a polícia possa realizar buscas domiciliárias a qualquer hora, de dia ou de noite.

Seja qual for o resultado desta discussão – se continua a ser adiada uma solução depois de passar a onda de choque, como aconteceu após os atentados de Janeiro, ou se terá tradução em novas leis, dada a particular violência do massacre do dia 13 –, o ministro do Interior francês disse que é urgente pôr os países da União Europeia a falar mais entre si sobre os problemas de cada um deles com o extremismo islâmico, e tornar mais eficaz o controlo das fronteiras externas.

Uma das medidas concretas apontadas por Bernard Cazeneuve é a aprovação urgente da partilha, entre todos os Estados-membros, do registo de identificação dos passageiros das companhias aéreas que voam de e para a Europa. As companhias já guardam várias informações sobre os seus passageiros, e alguns países, como o Reino Unido, têm a sua própria base de dados, mas as preocupações com a defesa da privacidade têm alimentado um braço-de-ferro entre a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu desde 2011 – as duas instituições estão ainda a trabalhar para aproximar posições, tal como acontecia aquando do atentado contra o Charlie Hebdo, e o Governo francês reforça agora a sua exigência de que o Parlamento vote a favor da proposta.

Desta vez, no centro da troca de acusações sobre falta de eficácia e de coordenação entre os serviços secretos europeus está Abdelhamid Abaaoud, um belga de 27 anos que as autoridades francesas acusam de ter sido o organizador dos ataques terroristas coordenados da semana passada, que fizeram pelo menos 129 mortos em vários restaurantes e na sala de espectáculos Bataclan, em Paris.

Depois de algumas horas de suspense, as autoridades francesas confirmaram esta quinta-feira que um dos dois mortos no assalto da polícia a um apartamento na zona de Saint-Denis, em Paris, na madrugada de quarta-feira, é de facto Abdelhamid Abaaoud – acredita-se que a outra vítima seja a sua prima Hasna Aitboulahcen, de 26 anos, que terá accionado um cinto com explosivos durante a operação policial, durante a qual foram detidas oito pessoas.

Para as autoridades francesas, é difícil compreender como é que Abaaoud conseguiu viajar entre a Europa e a Síria desde o início de 2014 sem nunca ter sido detido, mas principalmente que nenhuma agência de serviços secretos de um país da União Europeia tenha informado Paris de que ele estava em França na semana passada. Foi só depois dos atentados em Paris, na noite de sexta-feira para sábado, que o Governo francês recebeu uma informação sobre Abaaoud, e por parte de uma agência "de um país não Europeu" – em algum momento desde o início de 2014, o homem que terá planeado os ataques foi detectado na Grécia e teve o seu telefone sob escuta.

Se é compreensível que seja difícil vigiar todos os cidadãos europeus suspeitos de ligações ao extremismo islâmico, no caso de Abdelhamid Abaaoud há muito que havia motivos para lhe ser dedicada uma atenção especial.

Em Janeiro passado, uma semana depois do atentado contra o Charlie Hebdo, a polícia belga lançou uma ofensiva na cidade de Verviers contra uma célula criada no município de Molenbeek e comandada por Abaaoud (dois suspeitos de pertencerem a essa célula foram mortos na ofensiva).

Por essa altura, o homem que terá planeado agora os atentados em Paris foi condenado na Bélgica a 20 anos de cadeia, à revelia, por recrutar jovens para as fileiras do autoproclamado Estado Islâmico, e o ministro do Interior francês disse esta quinta-feira que Abdelhamid Abaaoud ajudou a organizar pelo menos quatro outros planos terroristas, entre os quais os ataques no museu judaico em Bruxelas, em Maio de 2014, e num comboio de alta velocidade entre Amesterdão e Paris, em Agosto deste ano.

O seu rosto era conhecido das agências de combate ao terrorismo pelo menos desde 2014, quando apareceu num vídeo a arrastar corpos mutilados presos a uma carrinha, na Síria, e em Fevereiro deste ano foi capa da revista oficial do autoproclamado Estado Islâmico, a Dabiq. Numa entrevista em que não é possível saber onde acaba a verdade e começa a fanfarronice, Abaaoud menorizou as capacidades dos serviços secretos ocidentais: "Consegui sair [da Síria], apesar de ser perseguido por muitas agências de serviços secretos. Isto prova que um muçulmano não deve recear a imagem inchada dos serviços de informações dos cruzados."