O dia em que os discos do Zeca ficaram para trás

Falamos de menos sobre isto. Passou-se muito, muito tempo antes de voltarmos a conversar sobre aqueles dias que mudaram as nossas vidas. Na verdade, quase 40 anos. Metade dos seis que seguiam naqueles dois carros de Sá da Bandeira a Windhoeck já não estão entre nós.

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Naquele dia, ao fim da tarde, o nosso pai pôs aquele olhar assustadoramente grave e foi buscar às entranhas um tom mais pesado do que aquele que usava quando cantava Os filhos da madrugada do Zeca Afonso — ou cantaria depois daquele dia, talvez seja mais exacto, mas já antes lia Mao Tsetung no café… “Houve uma revolução em Lisboa, não sabemos o que vai acontecer!”, anunciou, deixando no ar a garantia de que, fosse o que fosse, nada seria como dantes. Mas ao princípio até foi…

Desde aquela tarde de 25 de Abril de 1974 até Julho de 75 muita coisa aconteceu. Para nós, a mais importante foi a mudança de cidade. O nosso pai deixou o escritório em Moçâmedes e o repertório do Zeca, a nossa mãe deixou o liceu onde dava aulas, e nós — Ricardo, 11, e eu, 9 — a maior fatia da infância ali, entalada entre o mar e o deserto do Namibe.

Não haveria mais domingos de aventura deserto adentro, numa espécie de safari visual, ou de caça às ágatas, que se amontoaram no escritório até que o pai construiu aquela geringonça para as polir e nos dar uma teórica lição de vida. Era uma caixa mal-amanhada de madeira com uma manivela que fazia as pedras roçarem umas nas outras lá dentro, o que, com tempo e paciência, tornaria luzidios os veios terra-esverdeados daquelas pedras. “É como nós nesta vida”, dizia: “É no esfrega-esfrega diário uns contra os outros que vamos evoluindo e ficando mais polidos.” Hoje tenho dúvidas, mas não das suas boas intenções.

Quase da noite para o dia metemo-nos no carro pela madrugada e fomos, os quatro, para a ainda Sá da Bandeira. O pai tinha sido eleito presidente do conselho directivo da Faculdade de Letras do Lubango, um pólo da Universidade de Luanda — onde dava aulas de História da Arte Africana e Angolana. Mudámo-nos quando lhe foi atribuída casa de serviço: o primeiro andar de uma moradia mobilada, numa rua perto da universidade onde havia também residências de estudantes.

As nossas coisas — brinquedos, móveis, muita roupa — não voltaram a sair dos anexos dessa casa. O nosso despojamento tinha começado de forma camuflada. Nesse ano de 75, quando as contas bancárias foram congeladas e não se podia levantar mais do que uma pequena quantia por semana, já os aviões estavam esgotados, os barcos parados e os pais de família entravam em desespero. Não o nosso. Era corajoso e determinado, mesmo sabendo que a casa era vigiada dia e noite.

Estar à frente de uma universidade ou de um pólo universitário representa poder. Naqueles meses de incerteza que antecederam a independência, ser independente podia ser muito incomodativo. São alturas em que todos têm de ser identificados ou como amigos ou como inimigos. Alguns processos democráticos começaram a ser praticados mas não eram interiormente bem aceites por alguns quando os resultados das eleições desagradavam.

O nosso pai, que era independente, tinha sido eleito presidente do conselho directivo numa lista em que o outro professor (também português) era simpatizante da UNITA e o representante dos alunos (angolano) era militante da UNITA. Esta lista derrotara uma outra do MPLA. Tinha havido campanha e voto secreto. Mas desde a tomada de posse até à tomada da universidade pela força não passaram muitos meses e estes nunca foram pacíficos.

O pomo da discórdia era a “independência” da Universidade do Lubango da de Luanda. Corriam os primeiros meses de 1975. Na “metrópole”, o 11 de Março estava a acontecer e o Verão Quente estava em marcha. A situação em Lisboa era tão confusa que pouco sobrou de atenções para o que se passava lá longe, em África. Pelo menos do lado da opinião pública. Mas a 31 de Março criou-se, em Lisboa, o Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais. Nós nunca viemos a precisar dele. 

O Acordo do Alvor, assinado no Algarve em Janeiro de 75, criara um governo de transição liderado pelo alto-comissário para Angola (cargo que teve vários protagonistas antes de cair, em fins de Agosto) e ministros dos três partidos, MPLA, UNITA e FNLA. O ministro da Educação, Jerónimo Wanga, era da UNITA, mas o partido com mais peso desse governo era o MPLA e este considerava a educação um sector estratégico, que devia ser centralizado. Não era esse o entendimento de Wanga, que apoiava a criação de uma segunda universidade no país, precisamente a do Lubango.

Foi nesse contexto que foi crescendo a guerra de facções dentro da universidade — reflexo da guerra fria que se vivia no próprio governo de transição — e começou aquilo a que a nossa mãe chama “perseguição ao conselho directivo”.

Em Sá da Bandeira havia muitos estudantes do MRPP que, dizia-se, tinham sido enviados de Portugal para estudar em Angola na pré-independência e para apoiar o MPLA. Em frente à nossa casa havia uma residência de estudantes do MRPP e era daqui que os nossos movimentos eram vigiados, isso era visível para nós, os miúdos. Da varanda de casa, onde eu brincava às casinhas, ou da rua onde andávamos de bicicleta, era flagrante a vigilância: havia sempre alguém às janelas ou varandas, havia comunicações via rádio a relatar os nossos movimentos, comentários. Na universidade, havia as frases ditas de forma audível nas costas dos pais, ameaças, algumas de morte, que depois também chegariam em papel por baixo da porta de casa. “Pelo menos instalavam o medo”, diz a mãe.

Encontro (pouco) secreto

Para concretizar o plano de tornar independente a Universidade do Lubango, o ministro  da Educação telefonou ao pai dizendo que ia no dia seguinte a Sá da Bandeira para se encontrar secretamente com ele. Mas o MPLA soube desse encontro secreto e fê-lo abortar. Muitos estudantes foram para o aeroporto esperar pelo ministro e acompanharam-no durante todo o tempo, tanto o que durava a visita oficial à universidade, como o tempo que ele tinha reservado para se encontrar com o conselho directivo.

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Uma das raras fotografias que restaram do álbum da família Botelho Pereira quando da sua permanência de quase uma década em Angola

O encontro não aconteceu, mas a narrativa estava construída: começaram as acusações de conivência entre o conselho directivo e o ministro com vista à separação da Universidade do Lubango da de Luanda. Foi o que aconteceu 34 anos depois, em 2009, quando o campus da Universidade Agostinho Neto se tornou autónomo, mantendo o carácter público e ganhando o nome de Universidade Mandume ya Ndemufayo. No site da UMN conta-se que, em Junho de 1974, o alto-comissário Silva Cardoso e o então ministro da Educação desdobraram a Universidade de Luanda em três: Universidade de Luanda, Universidade do Lubango e Universidade do Huambo. “Mas na prática esta abordagem nunca chegou a funcionar” devido à guerra civil, lê-se no site.

Autonomizar a universidade, “seria um crime de lesa-pátria?”, pergunta a mãe. A tentativa era grave o suficiente para desencadear um “julgamento” na universidade. Os três membros do conselho directivo foram intimados a comparecer à vez em interrogatórios prévios perante assembleias de estudantes. Entravam numa sala de aulas onde dois inquisidores os interrogavam e os alunos se apinhavam no chão, nas mesas, nas janelas. Foi o que a nossa mãe viu pela porta quando foi a vez de o nosso pai entrar.

“Mas fez, não fez, diga, mas diga!” Demorou horas! Queriam saber se tinha ou não havido um contacto prévio para um encontro secreto com o ministro com o objectivo de criar uma universidade independente. Era o prenúncio do julgamento popular que prometeram fazer logo que fosse possível. [A 28 de Agosto, o Diário de Lisboa relata o primeiro julgamento popular, ocorrido em Luanda. Seis elementos das FAPLA, braço armado do MPLA, foram acusados de violar, roubar e assassinar 11 pessoas. Foram julgados por um tribunal popular no bairro suburbano de Sambizanga, e logo ali condenados e executados, em público.]

Desde Fevereiro — nem um mês depois do Acordo do Alvor e da posse do governo de transição — tornara-se óbvio que a desconfiança entre os movimentos estava longe de diminuir. O poder residia, de facto, nos exércitos que cada movimento não cessava de armar.

Por esses dias de Junho, realiza-se no Quénia a Cimeira de Nakuru — para a qual Portugal não foi convidado —, promovida pelo Presidente queniano, Jomo Kenyatta, com a presença dos líderes dos três movimentos: Agostinho Neto (MPLA), Jonas Savimbi (UNITA) e Holden Roberto (FNLA). A 21 de Junho de 75, os três reconhecem culpas e prometem pôr fim à violência. Mas, como rapidamente se percebeu, eram apenas boas intenções.

Algures em meados de Julho de 1975 a universidade foi tomada pela força. Um secretário foi ao gabinete do director avisar o pai que o campus estava a ser ocupado. Nem o deixou chegar à porta, ele teve de sair pela janela do seu gabinete, um segundo andar: valeu-lhe ser arquitecto e conhecer as rugas do edifício onde se agarrar… Mas saiu à pressa e teve de lá voltar. Nessa mesma noite, fomos todos para um posto militar português. Havia sopa quente e café que a mãe bebia às canecas, envolta em fumo, do café e dos cigarros que fumava sem parar.

Entre o quartel e a universidade havia um enorme campo, talvez cultivado, em que o nosso pai mergulhou na escuridão. Ele ia com outra pessoa — as memórias não são consensuais sobre este episódio. Na minha memória, ele atravessou o negro, demorou uma eternidade e emergiu por fim com aquele seu ar atrevido e determinado.

O que o nosso pai teve de voltar para ir buscar — dessa vez ou de outra — foi o selo branco da universidade com que se oficializavam os documentos. Nos dias seguintes, o conselho directivo continuou a trabalhar na clandestinidade, que é como quem diz, na nossa casa. Mas era preciso ter cuidado: o rapaz que trabalhava lá em casa — fazia as limpezas, cozinhava e vivia num anexo — era do MPLA.

Era o tempo dos comunicados políticos lidos na rádio. Em Lisboa, em Luanda, no Lubango. As lutas universitárias tinham espaço garantido na Rádio Clube de Sá da Bandeira (onde trabalhou o estudante Emídio Rangel), que transmitia os comunicados de um lado e de outro. Do conselho directivo e dos opositores. Em tempo de guerra não se limpam armas e muitas vezes os “tiros” vinham sujos de mentiras e insinuações. “A certa altura, disseram na rádio que o pai tinha sido membro do campo de concentração de S. Nicolau, o que era uma absoluta mentira. O pai foi lá uma única vez porque na universidade pensou-se em fazer daquele lugar um pólo agrícola”, relata a mãe. “Eles pegavam em tudo o que podiam, inventando, para denegrir a imagem do conselho directivo.”

Foi nessa altura que, uma ou duas vezes, à saída para a escola de manhã, havia envelopes por baixo da porta. O pai abriu, a mãe leu e disseram: “Hoje vocês não vão para a escola.” Deve ter sido numa dessas noites longas, em que adivinho a insónia dos nossos pais, que eles traçaram o primeiro plano de saída. De fuga. Uma manhã, a mãe e nós (os miúdos) estávamos a conversar no anexo da máquina de lavar:

— Isto está a ficar complicado. O melhor é vocês irem para Portugal. Vão ter com a família. Nós vamos logo que pudermos.

— Não! — disse Ricardo, o irreverente, 11 anos de furacão interior, de tempestade perfeita. Nós preferimos morrer com vocês do que ficar sem pais.

Esta foi a memória que ficou na minha cabeça. A dele é mais prosaica: não gostava da ideia de irmos sozinhos os dois num avião para o desconhecido Portugal. Diz que nunca disse que preferia morrer…

Não chegámos a ter telefone naquela casa (e a televisão não tinha chegado a Angola). Sabia-se dos focos de conflito que iam acontecendo sobretudo por ouvir dizer, pouco passava na rádio ou nos jornais. Ouviam-se relatos tenebrosos de pessoas desaparecidas, de pilhagens, roubos, violações.

Algures entre Junho e Julho, o pai contactou uma última vez o ministro da Educação. Disse que tinha de ir a Luanda. Decidiu-se que simularíamos uma doença dele, ficaríamos os três a dormir no quarto grande, e assim foi durante dois dias. Numa noite, ele saiu pela janela, percorreu as traseiras das moradias onde vivíamos e umas ruas à frente meteu-se num carro e foi apanhar o avião. Em Angola era tudo longe.

Nós encostávamos um móvel à porta do quarto à noite e da janela daquele primeiro andar pendia uma corda, para descer caso fosse preciso. Não foi. O pai voltou em 48 horas e trazia um papel que seria o salvo-conduto para algumas dezenas de pessoas. Era um documento assinado pelo director-geral dos Serviços da Educação, por ordem do ministro. Uma ordem do governo de transição para ir ao Brasil estudar os currículos das faculdades de Arquitectura para, no regresso, criar a primeira licenciatura em Arquitectura de Angola. Com ele trazia também os bilhetes de Windhoek para Curitiba, para cerca de duas semanas depois. Havia que chegar a Windhoek.

A asa partida

Ricardo, o irreverente, já então era um espírito livre e selvagem. Não suportava, por exemplo, ver aqueles pássaros lindos amontoados numa gaiola que homens transportavam pela cidade a vender. Por mais que uma vez ia ter com o vendedor, perguntava quanto queria por todos, corria a pedir dinheiro à mãe e voltava para abrir a gaiola.

Daquela vez sobrou um passarito. Não saiu da gaiola, não conseguia voar. Tinha partido uma asa, provavelmente na armadilha em que caiu. Ricardo coração de leão e manteiga levou-o para casa. E a mãe cuidou dele como de um filho, deu-lhe de comer no bico, migalhas de pão pequeninas que mastigava primeiro, não sei bem porquê mas ela lá sabe.

O passarito viveu lá em casa até ao fim. Partiu connosco no carro, umas semanas depois, em direcção a sul e à liberdade.

Na véspera da saída (princípios de Agosto), o nosso pai arranjou três ou quatro jerricans com gasolina, colocou-os no Ford Capri GT verde. Descoseu a parte de trás do assento do lugar da mãe e escondeu ali dinheiro, os passaportes e (possivelmente) os bilhetes de avião.

A mãe fez as malas para a viagem sem regresso. Mais do que roupa de vestir, linhos bordados da família, peças em prata, bens com algum valor que se pudessem dar ou vender se fosse preciso. Cozeu mais de 50 ovos e acomodou algum ouro dentro de um penso higiénico camuflado.

Uns dias antes ela tinha tentado comprar comprimidos para dormir, mas as farmácias estavam despidas. Não havia nada, os abastecimentos de Lisboa tornaram-se irregulares ou desapareceram. As contas bancárias eram congeladas. Os aviões voavam quando podiam. As outras colónias africanas já eram independentes, faltava Angola. O império esboroava-se assim, peça a peça, família a família, criança a criança. A minha infância ruiu com ele.

Os comprimidos para dormir eram a porta de emergência que a nossa mãe criara para o plano de fuga. Um plano B, caso não pudéssemos escapar das atrocidades de que se ouvia falar. Violações até à morte de mulheres e crianças, barrigas abertas, pêlos da barba arrancados um a um — e nessa altura o pai já tinha barba…

Como não havia barbitúricos, a alternativa eram lâminas da barba, daquelas de dois gumes, encaixe a meio. “Tinha visto um filme em que se falava da doce morte dos pulsos cortados, um esvaimento, sem dor”, conta a mãe, com dor.

O dia mais longo

Naquela madrugada saímos os seis de casa — nós os quatro, a avó que viera uns dias antes de Luanda, onde vivia sozinha, e o Américo, o velho solteirão, amigo de sempre da família, que vinha de Silva Porto com outra coluna de portugueses à procura de saída por terra. Acabou por ficar connosco.

Saímos de madrugada sozinhos, sem ninguém à nossa espera. Só o destino. E ali estava ele: à saída da cidade, uma caravana de cerca de uma dúzia de carros, com pessoas de Moçâmedes (actual Namibe), onde tínhamos vivido tanto tempo. Juntámo-nos a eles. Direcção sul — Cuiange, Vila General Roçadas (quartel), Vila Pereira d’ Eça (actual Ondjiva), fronteira de Santa Clara. Cerca de 470km de má estrada pelo interior para sair de Angola, atravessar a fronteira e chegar a Oshakati, o mais próximo campo de refugiados no Sudoeste africano (actual Namíbia).

Ainda era noite. Descemos em fila indiana pelas encostas laterais da Serra da Leba, por terras com nomes que hoje nada me dizem. Havia música no carro e ouvimos um anúncio da Coca-Cola em brasileiro que nós cantávamos como se fôssemos de férias: “Hei, você aí, venha para o lado de cá, a gente espera aqui…”

Tivemos de parar três vezes. Uma foi por ordem de um grupo armado. Mandaram sair toda a gente dos carros, quiseram ver tudo, mandaram abrir malas, ficaram com coisas. Aos nossos pais tiraram uma faca de abrir envelopes em prata, com o argumento de que era uma arma.

Essa paragem demorou muito tempo, ou então foi da tensão que se viveu. Muitos carros foram revistados, muitas perguntas foram feitas. Foi nesta desarrumação de entra e sai que o tal passarinho da asa partida fugiu do carro. A asa já tinha recuperado e o pássaro voou, cantando. E a mãe disse baixinho: “Se ele conseguiu, também vamos conseguir.”

Outra paragem foi no Quartel de Roçadas, um dos aquartelamentos das Forças Armadas Portuguesas ainda no terreno. Os homens da nossa caravana decidiram pedir ajuda aos militares para chegar à fronteira. A mãe ficou impressionada com o estado dos militares: “Estavam sujos, magros, com as roupas estragadas, desanimados.” O quartel estava cheio de civis portugueses que já tinham deixado as suas casas e procuravam ajuda oficial para sair do país. Nós não entrámos.

Seguimos viagem em pouco tempo, depois de partilharmos alguns alimentos entre todos. E agora com escolta militar, paga pelos homens da caravana, um serviço que os tropas aceitaram fazer, mas apenas até Pereira d’Eça, a 40km da fronteira de Santa Clara (Ochicongo).

Em Ondjiva (Pereira d’Eça), havia que recolher autorizações de trânsito junto dos três movimentos. O nosso pai volta a assumir o comando e vai de posto em posto recolher as assinaturas necessárias. Vemo-lo passar, num jipe militar descapotável, mais armas que homens ao seu lado, na estrada de pó.

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Chegámos à fronteira, fisicamente uma linha de arame farpado interrompida por uma cancela de pau e um pequeno exército de homens, militares dos três movimentos. Foram horas de espera, não se sabe bem do quê. Ou melhor, sabia-se: era preciso o consenso dos três partidos para podermos cruzar a fronteira. Mas o MPLA não concordava, achava que devíamos esperar pelo amanhecer, dormir ali, algures, parece que havia por ali uma espécie de pensão de beira da estrada, mas ninguém o viu. Só a sanzala…

O pai liderava as negociações da parte da caravana. Passaram-se horas. As pessoas todas do lado de fora dos carros, as crianças como nós a brincar umas com as outras e também com um ou dois miúdos negros que por ali apareceram. Nós entendíamo-nos. Os adultos não. As conversas eram interrompidas e retomadas a espaços. A certa altura, o pai usou os últimos argumentos: exibiu o documento do Ministério da Educação do “governo deles” a enviá-lo em missão ao Brasil. E ameaçou os relutantes: “Se vocês não nos deixam passar, vou fazer queixa de vocês ao Governo e vocês é que terão de dar explicações.” Resultou. Ou quase. “Está bem, você passa, os outros não.” Agora improvisa, o pai: “Não pode ser porque a minha missão é secreta. Eu tenho de passar no meio deles para ninguém perceber a minha passagem.”

Seja. Mandaram fazer a lista das matrículas dos carros e passou um a um, todos os que ali estavam, 15 famílias, talvez. O pai ficou apeado, com a lista na mão, mandou a mãe avançar com o carro, mas ela parou a seguir à cancela, em terra de ninguém, à espera do pai. Os carros passaram todos e ficou o breu, nem carros nem pai, só o silêncio e a escuridão, e a mãe avançou devagar, numa “pilha de nervos”. Até que viu o pai vir na nossa direcção: o último carro que tinha atravessado a fronteira era o do Américo e da avó, ele atirou-se lá para dentro pela porta de trás e seguiram, passaram por nós e nem nos vimos. Abraçaram-se com força. Dessa única vez, a mãe chorou.

Os militares sul-africanos (na altura, a Namíbia integrava a África do Sul), enormes, contaram em inglês que tinham acompanhado os nossos movimentos durante todo o tempo, por binóculos. Estavam preparados para intervir caso não nos tivessem aberto a fronteira. Daquela vez não entraram em Angola, não foi preciso. Mas muitas outras vezes o terão feito.

Nas semanas seguintes, a situação agudizou-se ainda mais. A 30 de Agosto de 1975, o Diário de Lisboa titulava: “Tropas sul africanas avançam sobre Sá da Bandeira”. E noticiava que Pereira d’Eça já estava ocupada. Que “ontem havia indícios seguros de que aviões e helicópteros da África do Sul estariam a sobrevoar General Roçadas”. As forças sul-africanas, noticiava o DL, eram “constituídas por cerca de 800 homens, entre os quais se encontram mercenários portugueses da ex-PIDE/DGS e ex-comandos moçambicanos, apoiados por meios militares sofisticados, tais como carros blindados, obuses de longo alcance, etc.”

Chegámos a Oshakati já seria de madrugada. Ali, no interior da Namíbia, os dias são quentes e as noites geladas. O campo de acolhimento ainda estava a ser montado, fomos os primeiros refugiados a chegar. Havia grandes tendas militares e lá dentro camas de campanha sem colchões, apenas uma rede de aço, sem cobertores. Não havia electricidade, só estrelas. Abriram-se as malas, as roupas e tecidos finos serviram de colchão, almofada e cobertor. Estava mesmo frio.

Numa enorme fogueira do meio do campo fizeram feijão e café. Mas não havia pratos, talheres ou copos: cada um arranjasse o que pudesse. Nós — as mulheres e os miúdos — comemos todos de uma salva de prata que a mãe ainda metera no carro. No dia seguinte improvisaram umas casas de banho. Eram umas estacas espetadas no chão seco da savana, pelas quais passava uma lona grossa para resguardar os buracos na terra que serviam de sanitas. Nessa noite já havia colchões e cobertores para as mulheres e crianças.  Mais um dia e fomos escoltados até ao campo seguinte, Grootfontein. Muitas vezes maior que Oshakati, mas já a abarrotar. As pessoas acotovelavam-se à passagem dos carros mesmo à noite, para ver quem chegava, se o primo, a irmã, o amigo. À entrada, o registo. Mulheres para um lado, homens para outro. Sopa (água e batatas) para as crianças, café e pão duro para os adultos. Felizmente foi só uma noite.

Dali seguimos sozinhos, os seis. Rumo a Windhoek, onde íamos apanhar o avião. Mas ainda faltavam uns dias. Instalámo-nos num pequeno hotel de estrada na cidade, íamos ao supermercado comprar comida que dispensasse fogão — pão, manteiga, leite, bolachas, café, sopas de pacote, chocolate, bananas. Muito melhor que no campo de refugiados!

Na véspera de embarcar, o pai negociou com o dono do hotel: os dois carros pelo pagamento dos quartos. Conseguiu. E nós voámos para Joanesburgo. E foi lá, naquele imenso aeroporto, que deixei o que restava da minha infância. As minhas mãos faziam falta para levar outras coisas. Não a minha necessaire com a última boneca e suas roupinhas. Essa ficou atrás de uma coluna de pedra.

A 29 de Agosto, o alto-comissário interino de Angola, general Ferreira de Macedo, declara o fim do governo de transição (dias depois de suspenso o Acordo do Alvor, que assentava na ideia de união política e militar dos três movimentos). De imediato, num comunicado publicado no Diário de Lisboa a 30 de Agosto, o MPLA reagiu afirmando que assumiria sozinho as responsabilidades governativas a partir de 11 de Novembro. Nesse dia, a independência foi declarada separadamente pelos três partidos, mas só a proclamação, em Luanda, da República Popular de Angola pelo MPLA foi reconhecida. A guerra civil angolana prosseguia.

A 2 de Novembro terminara a ponte aérea — a última missão dos militares portugueses em Angola — que trouxe para Portugal mais de 238 mil pessoas. Muitos outros saíram por mar e outros ainda, como nós, por terra. Nós, nessa altura, já estávamos em Curitiba, onde o pai rapidamente arranjou trabalho e onde fomos felizes durante cinco anos. Quando regressámos a Portugal, em 1980, já não nos chamaram “retornados”. Éramos apenas um pouco estranhos.

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