Madrid temia sequestro dos seus diplomatas em Lisboa
Altos funcionários da delegação diplomática de Espanha são fotografados e dispersam-se por casas não referenciadas no fim-de-semana dos ataques. São os comandos da Amadora que dispersam assaltantes na Praça de Espanha e a PSP detém na Rua do Salitre quatro jovens com 79 objectos recém-roubados.
Mais de um mês antes do assalto à embaixada de Espanha, na noite de 27 de Setembro de 1975, as autoridades espanholas em Portugal andam em sobressalto. O que seriam as últimas execuções da ditadura franquista suscitam manifestações de repúdio internacional e, em Lisboa, nos meses de brasa do PREC [Processo Revolucionário em Curso], as dimensões do protesto são singulares. Madrid temia o sequestro de alguns dos seus diplomatas na capital portuguesa como forma de pressão.
“Tínhamos notícias de que estavam previstos sequestros, inclusivamente as mortes de alguns diplomatas espanhóis”, admite, na capital espanhola a 17 de Dezembro de 1975, António Poch y Gutierrez, embaixador em Lisboa, em declarações ao diário ABC, após um jantar de desagravo “interpares”, com outros embaixadores e altos funcionários diplomáticos. Esta transcrição consta da correspondência enviada pela embaixada portuguesa na Calle Pinar ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, de que era então titular Melo Antunes.
“Temíamos alguma coisa, em Setembro, o embaixador falou com Costa Gomes a pedir protecção adequada, e o Presidente da República disse para ele não se preocupar”, relata à Revista 2 o embaixador Inocêncio Arias, então conselheiro político da embaixada recém-chegado a Lisboa. “O Copcon encomendou a segurança ao Ralis, a segurança da embaixada ficou a cargo do regimento mais vermelho de Portugal, creio que foi uma ingenuidade, uma criancice”, comenta. Diplomatas de Espanha alertam, também, o chefe da diplomacia portuguesa e alguns militares do MFA como Almada Contreiras, então casado com uma cidadã espanhola.
Por isso, é importante o relato do embaixador Poch ao diário de Madrid: “Os que dirigiam aquilo eram espanhóis das FRAP [Frente Revolucionária Antifascista e Patriótica, à qual pertenciam três dos cinco condenados à morte pelo Conselho de Guerra de Burgos de 28 de Agosto, os outros eram da ETA] e, além de portugueses, havia também chilenos, cubanos, brasileiros, tupamaros, italianos… um bom sortido da IV Internacional.”
O diplomata não se refere, apenas, aos assaltos na noite de 27 de Setembro à embaixada na Rua do Salitre (onde também funcionam o Consulado-Geral e as chancelarias) e ao Palácio de Palhavã, na Praça de Espanha, a residência do embaixador. Mas a uma série de protestos e acções que começam a 28 de Agosto, após a divulgação da sentença de Burgos.
Naquele dia, de acordo com os registos diplomáticos espanhóis, a Associação de Ex-Presos Políticos Antifascistas convoca manifestações junto da residência do embaixador e nas instalações da Rua do Salitre. A polícia recorre a gases lacrimogéneos e dispara para o ar para travar o que se afigura como uma tentativa de assalto. Uma intervenção policial que suscita críticas nos meios de comunicação e à esquerda.
A 1 de Setembro de 1975, deflagra um pequeno engenho num anexo do Palácio de Palhavã e, um dia depois, no Consulado-Geral de Espanha no Porto explode uma bomba de escassa potência, provocando quatro feridos ligeiros e prejuízos menores. Ambos os atentados são reivindicados pela Solidariedade Revolucionária Internacionalista.
“A partir de 19 de Setembro, cada vez que saímos do escritório [Rua do Salitre] somos fotografados por dois jovens barbudos, não sei se eram da FRAP”, assinala Inocêncio Arias. “Por que me fotografam, se não sou actor de cinema?”, interroga, com ironia.
“Dois dias antes do assalto à embaixada e à residência do embaixador [25 de Setembro], houve uma manifestação”, prossegue. “Como não era conhecido, acabava de chegar, estava entre os manifestantes, a observar”, recorda: “Metade não eram portugueses, talvez uns 500 fossem espanhóis, havia chilenos, franceses, alemães, revolucionários que viam o protesto contra a embaixada espanhola como um banquete, um festim.”
Na tarde daquele dia, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Melo Antunes, solicita ao Comando Operacional do Continente (Copcon, liderado por Otelo Saraiva de Carvalho) medidas de protecção para as instalações diplomáticas espanholas. Também Carlos Fabião, chefe do Estado-Maior do Exército, é contactado. A pressão de Madrid é grande e, a 25 de Setembro, através da sua embaixada, o Governo espanhol protesta junto de Lisboa pela forma como a imprensa nacionalizada aborda as questões da sua política interna. No dia seguinte, na reunião matinal do Copcon, a segurança da embaixada espanhola e da residência oficial do embaixador volta a ser tratada.
Os diplomatas espanhóis antevêem o problema e recorrem à dispersão. Por considerarem pouco seguras as sedes diplomáticas e as suas residências habituais, procuram outras moradas. No fim-de-semana de 27 de Setembro, o embaixador António Poch e mulher ficam em casa do conselheiro político Inocêncio Arias, que por ter chegado recentemente a Lisboa estaria menos sujeito a seguimento.
Os piores vaticínios cumprem-se. Na noite de 27 de Setembro, a chancelaria na Rua do Salitre é assaltada. Os manifestantes atacam, depois, a residência do embaixador. A mobilização é feita pelo Rádio Clube Português e pela Rádio Renascença, nesta última, pela voz de Artur Albarran. São invocadas as mortes decretadas em Espanha por Franco, mas os relatos dos correspondentes espanhóis em Lisboa, citados na investigação do diplomata José Luís Del Riego, anotam entre a multidão pessoas, na sua maioria jovens, com comportamento mais próximo do lúmpen do que da militância revolucionária.
Um auto de notícia da 1.ª divisão da PSP, da Praça da Alegria, de 27 de Setembro corrobora esta tese, com a detenção, às três da madrugada, de quatro homens, de idades compreendidas entre os 16 e 23 anos, e dos quais não existe informação sobre qualquer actividade política. “Motivo da prisão: por no local da captura [Rua do Salitre, junto ao consulado espanhol] terem sido por mim detidos, em virtude de transportarem os objectos constantes na guia junta, que furtaram do consulado espanhol, quando dos incidentes ocorridos provocados pelos manifestantes em sinal de protesto pelas sentenças em que foram condenados alguns espanhóis”, escreve o agente Ferreira.
Os jovens foram detidos em flagrante delito na posse de 79 objectos furtados: de garfos, facas e colheres a açucareiros, cafeteiras, taças, castiçais, tabuleiros, jarrões, lustres e… 12 esferográficas comuns. Os objectos ficam sob custódia da Polícia Judiciária durante 24 anos. Em 22 de Janeiro de 1999, num lote de mais de 260 peças, entretanto recuperadas pela PJ, são entregues a Espanha.
“Raúl Morodo [embaixador espanhol em Lisboa] estava em fim de mandato e foi alertado pelo director-geral da PJ, Fernando Negrão, para um conjunto de peças de prata, apreendidas ao longo do tempo a quem as roubou ou por terem sido postas à venda, provenientes do assalto à embaixada e residência do embaixador de Espanha”, relata agora Vera Jardim, então ministro da Justiça: “Fizemos uma cerimónia muito simples de entrega no átrio da embaixada, à qual não se deu grande divulgação. Algumas das peças eram muito boas.”
Fernando Negrão assegura que estas apreensões tiveram lugar em operações policiais tradicionais. “A informação que tenho é que entre os manifestantes havia lúmpen, gente que aproveitou para assaltar”, confirma.
Esta é uma das poucas certezas deste caso. Os diplomatas espanhóis queixam-se de escassa protecção. Na sua investigação para a Escuela Diplomática do Ministério dos Assuntos Exteriores, Del Rio contrapõe duas teses. A PSP nega a versão do Copcon de ter meios suficientes para tal missão e afirma ter pedido reforços aos militares, o que estes não sustentam.
Já nos acontecimentos no Palácio de Palhavã há mais clareza. O Copcon pede a intervenção do Ralis, onde estava o piquete de intervenção, que responde ir estudar a situação porque a missão não está prevista. É feita uma assembleia da unidade para decidir, e só às cinco da manhã chegam à Praça de Espanha efectivos do… Regimento de Comandos da Amadora, que, com tiros de G3 para o ar, põem fim ao assalto. Doze militares do Ralis acabam por ser absolvidos das acusações de passividade e desinteresse em Outubro de 1981.
“O Ralis decidiu não proteger a embaixada, fizemos muitas diligências, mas o problema é que em Portugal não existia então Estado”, comenta Inocêncio Arias. “Melo Antunes, que estava preocupado, foi ultrapassado pelos acontecimentos, não houve má intenção de Otelo, não acredito que fosse mal-intencionado”, destaca.
A 29 de Setembro, um telegrama confidencial do Ministério dos Negócios Estrangeiros para a embaixada de Madrid, a propósito do assalto na véspera [28] do Consulado-Geral do Porto, atesta as dificuldades das autoridades portuguesas: “Tropas chegaram atrasadas em virtude de grande concentração multidão nas vizinhanças consulado-geral e por ter havido dificuldades reunir soldados necessários por pessoal estar ausente nos quartéis (fim-de-semana). Além disso intervenção militar, como é evidente, foi só pedida quando forças policiais se mostraram incapazes dominar situação. Brigadeiro Veloso, comandante região militar, nega terminantemente que tropas se tivessem aliado a manifestantes. Brigadeiro antes e depois esteve em contacto cônsul geral e foi assim possível retirar parte do material da chancelaria a tempo de o salvar. Consul geral parecia aprovar forma decorreu acções militares.”
Madrid aprecia e destaca o comunicado do Conselho de Ministros de Portugal de repúdio dos assaltos em Lisboa e sublinha a condenação do PCP. “Consta-me que não faltou ao Governo português vontade de proteger a nossa embaixada, mas faltou-lhe força executiva”, relata no jantar de Dezembro o embaixador António Poch. Ou seja, falhou a autoridade do Estado.
E também a informação. Em 23 de Maio de 1975, é criado por decreto-lei o Serviço Director e Coordenador da Informação (SDCI), constituído exclusivamente por militares, na dependência do Conselho da Revolução. O seu labor consta de relatórios semanais de análise da situação nacional e internacional e de uma clássica revista de imprensa.
Nos meses que antecederam o assalto às instalações diplomáticas espanholas, há referências do SDCI ao país vizinho. Da crónica do enviado da revista Cambio 16 denunciando a presença em Lisboa de agentes da CIA às actividades de António de Spínola, da recusa de comerciantes em cidades fronteiriças espanholas de receberem escudos, alegando que “isso agora não vale nada” até à saída pela fronteira do Caia de camiões com “mobílias e outros objectos de valor”.
Contudo, há omissão sobre as ameaças às instalações e pessoal diplomático de Espanha. Na Torre do Tombo, onde a documentação do Conselho da Revolução está a consulta, não constam os relatórios do SDCI das semanas de Setembro de 1975 marcadas pelas primeiras manifestações e os assaltos.
“A situação espanhola impôs uma resposta tíbia, manifestada na aprovação de uma série de medidas, mais de imagem do que com o objectivo de castigar o povo português”, anota José Luís Del Riego. Numa peculiar combinação de iniciativas, da tradicional retirada temporária do embaixador e pessoal diplomático, deixando a representação a cargo de um encarregado de negócios, à suspensão da cotação do escudo pelo Banco de Espanha.
Fronteiras, como a fluvial de Ayamonte e a de Vila Verde Ficalho, encerraram durante algum tempo. Numa operação para consumo interno e para afagar a moral do regime é organizada em Madrid a 1 de Outubro uma manifestação de apoio a Franco na Praça do Oriente. O objectivo é responder às críticas internacionais pelas execuções, mas três mil manifestantes concentram-se junto à embaixada de Portugal.
“Dispersaram sem incidentes, com as suas bandeiras de Espanha, carlistas e da Falange”, relata o telegrama enviado da capital espanhola para o Palácio das Necessidades. Também há concentrações junto dos consulados portugueses em Vigo, Badajoz, Sevilha, Ayamonte, Las Palmas e no vice-consulado de Jerez de la Frontera.
O regime promove o envio de protestos para a embaixada de Portugal. Só até 4 de Outubro chegam à Calle Pinar 376 telegramas. “Como espanhol a 100%, manifesto a minha repulsa aos portugueses que participaram na destruição da nossa embaixada (…) não esqueçam que nós espanhóis, uma vez dispostos, entramos pela fronteira e vos atiramos ao mar”, é o teor de um telegrama sem remetente, enviado a 3 de Outubro de León. A mensagem termina com “Viva España!; Arriba España!; Viva Franco!”
No jantar de 17 de Dezembro, já depois da morte de Franco, o embaixador António Poch sintetiza a situação: “Quando acontecem destes factos, é necessário fazer três coisas, pedir desculpa, admitir a responsabilidade, indemnizar, e o Governo português já fez as três.” Um milhão de contos de 1975 foi o que Portugal pagou.
Em Fevereiro de 1976, cinco meses após o assalto, os chefes da diplomacia reúnem-se na Guarda e renovam intenções. O Tratado de Amizade e Cooperação entre Espanha e Portugal é assinado em Madrid a 22 de Novembro de 1977, substituindo o Pacto Ibérico de Março de 1939 subscrito por Salazar e Franco.