A pergunta que não tem resposta é esta: em nome de quê?
Os parisienses acordaram neste sábado cheios de dúvidas a que não sabiam responder. Émile não quer habituar-se à ideia de serem os militares a responder pela segurança na cidade.
Já podemos sair de casa, ou devemos ainda respeitar a ordem de recolher imposta pela polícia, já durante a madrugada, depois de uma sucessão de tiroteios, bombas, explosões que mataram 129 pessoas nalgumas das ruas mais movimentadas da capital francesa? Sim, vamos sair, descobriram os franceses, que começaram timidamente a fazer a ronda pelos seus quarteirões — a padaria, a mercearia, o parque infantil, a tabacaria, onde se multiplicavam os títulos com palavras que nenhum deles esperaria voltar a ver aplicadas à sua cidade, “tragédia”, “catástrofe”, “guerra”. “Sim, devemos sair, devemos continuar a viver a nossa vida, porque se mostramos que temos medo, eles ganharam”, dizia um dos clientes que levava várias edições “históricas” debaixo do braço.
Quais são os transportes que estão a funcionar, e o que podemos esperar que já esteja a funcionar amanhã? Os comboios suburbanos operavam, bem como várias linhas de autocarros e de metro, embora todas as estações no perímetro dos ataques de sexta-feira estivessem fechadas a cadeado, com soldados à porta. Nos aeroportos, eram reportadas longas filas para passar a segurança do embarque, embora as chegadas decorressem com surpreendente rapidez e facilidade. Em vez do trânsito infernal, o “Péripherique” que abraça Paris era uma via rápida e tranquila: “Hoje ninguém quer estar na estrada”, explica o taxista.
Escolas, universidades, monumentos, museus, repartições públicas ficaram encerradas; também as grandes superfícies e os grandes armazéns, os mercados já montados para o Natal, a ópera, os teatros, e salas de cinema. Todas as competições desportivas na região de Paris foram suspensas. Para este domingo estão prometidas algumas aberturas (embora não ainda da torre Eiffel, para desconsolo de muitos turistas de fim-de-semana). Na segunda, espera-se que tudo esteja de volta ao normal — o normal possível, explica Chloe, que já sabe que à entrada da faculdade terá de mostrar o cartão de identificação de estudante e abrir a mochila à curiosidade dos seguranças. “Já foi assim depois do ataque ao Charlie Hebdo”, explica, dizendo que na sequência desse ataque, todas as palestras, que eram abertas a quem estivesse interessado, ficaram reservadas exclusivamente aos alunos inscritos.
Depois de uma noite mal dormida, outras perguntas eram de resposta mais difícil. Ainda vamos ter a tropa na rua durante quanto tempo? “É bizarro”, acha Émile, que não quer habituar-se à ideia de serem os militares a responder pela segurança na cidade. É uma das consequências da instauração do estado de emergência nacional, uma situação excepcional que, depois da Segunda Guerra Mundial, a França só experimentou duas vezes.
Mas as maiores interrogações: quem eram; o que queriam; porque fizeram o que fizeram aqueles oito homens, que avançaram de cara destapada e metralhadora em riste aos tiros contra os clientes despreocupados de bares e restaurantes, que se fecharam dentro de uma sala de espectáculos com a lotação esgotada vestidos com coletes armadilhados, que se rebentaram à porta do estádio nacional enquanto lá dentro os homens da selecção, envergando o emblema bleu-blanc-rouge jogavam pela França?
Como foi possível que, em poucas horas de inominável terror, tenham conseguido transformar Paris numa cidade em guerra?
E a questão a que ninguém sabia responder este sábado que acordou atordoado mas estranhamente límpido em Paris, era esta: em nome de quê? “Nada justifica esta barbárie, nada”, nem religião, nem política, dizia Émile. “Como é possível esta desumanidade, de olhar para um estranho e tirar-lhe a vida, sem o mais pequeno sobressalto?”, perguntava, abanando a cabeça, olhando o vazio.
Determinado a repetir os pequenos gestos de um quotidiano normal, Émile ignorou as recomendações de sair de casa “só para o estritamente necessário”, e foi comprar os jornais e o pão do dia. O seu plano de ir ao mercado saiu gorado, mas isso não o desanimava: “Para hoje, o dia seguinte, não está mal”.
Para os parisienses mais afastados do perímetro bloqueado pela polícia — os 10º e 11º bairros (arrondissements), conhecidos pela sua multiculturalidade, diversidade geracional, vida nocturna e boémia — era mais fácil repetir as rotinas quotidianas. Ainda assim, muitos moviam-se com a estranheza e o cuidado de quem acaba de despertar de uma anestesia: um sorriso porque a pequena mercearia do bairro abriu a porta, ou o restaurante da esquina prometia dar almoço.
Vários arriscaram aproximar-se do local da tragédia. À porta dos restaurantes a bares atingidos, as persianas metálicas descerradas começavam a ter afixados pequenos cartazes; no chão foram-se deixando flores e velas, numa procissão silenciosa e sem concentrações ou protestos, que estão impedidos até à próxima quinta-feira. “Não sabemos que acções já estarão a ser previstas para esse dia, mas alguma coisa irá acontecer”, estimava Carol. Para já ainda é cedo para apontar o dedo e protestar — contra o Governo, os serviços de segurança, os muçulmanos ou os refugiados. “Mas esse momento chegará em breve”, garante.
Mesmo se angustiados e em choque, os parisienses insistem para já em manter a calma, como lhes pediu o Presidente François Hollande, que em menos de 24 horas fez três declarações solenes ao país. Centenas deles perfilaram-se, em longas filas de três horas de espera, para doar sangue. “Para já é a única coisa que posso fazer por todas estas pessoas que moram onde eu moro, comem nos restaurantes onde eu como e ouvem a música que eu ouço”, explicava um jovem na fila. Assim que soaram os alarmes, na noite de sexta-feira, enfermeiros, anestesistas, cirurgiões, apresentaram-se espontaneamente nos hospitais para que os blocos operatórios pudessem funcionar ininterruptamente no tratamento de centenas de feridos. “Não foi preciso accionar nenhum plano, toda a gente apareceu”, contou um director do serviço de urgência à televisão francesa.