“Como mudança radical acho que não; como maior serenidade também não; como maior tolerância, acho que sim"
Para quem o conheceu com ego e verborreia torrenciais, eis o mestre do melodrama contido. Minha Mãe — domingo no Lisbon & Estoril Film Festival; estreia a 26 — é sublime. Maturidade? “Como mudança radical acho que não; como maior serenidade também não; como maior tolerância, acho que sim."
Ao princípio havia Michele Apicella, qual alter-ego de Nanni Moretti, autor e protagonista.
Não era exactamente “uma personagem”, pois que a biografia e as situações iam mudando de filme a filme, mas era “um tipo”, que se tornou imediatamente distintivo: ego fortíssimo, fúrias e verborreia torrenciais, cinéfilo e ocupado com cinema (e teatro) com sonhos de realizador, obcecado com a política italiana e a esquerda, fazendo face às mulheres e aos falhanços das relações amorosas. Sempre assim foi (excepto Don Giulio, o padre de A Missa Acabou, em 1985) até ao marremoto político na piscina de Palombella Rossa (1989).
Depois houve uma situação pessoal de doença, e Moretti expôs-se, ele próprio, nas andanças com a inevitável vespa e fazendo os tratamentos, em Caro Diário (1993), que seria filme de uma tormenta mas também de uma espantosa liberdade, e auto-exposição havia ainda em Abril (1998), com um momento tornado célebre, a sua exclamação quando via num debate televisivo Massimo d’Alema então líder dos pós-comunistas italianos: “Vá, diz qualquer coisa de esquerda, ao menos qualquer coisa de cívico”.
Mas os seus últimos filmes afastam-se da auto-ficção. Em O Caimão (2006) há a política ainda, no caso Berlusconi, objecto de sátira feroz, mas sem o regresso à cena do próprio Moretti, muito menos de Michele Apicella, Habemus Papam (2011) é uma inteligentíssima fantasia sobre uma eleição pontifícia, com o escolhido renitente.
Mas a viragem – pois sendo sempre inconfundivelmente Nanni Moretti era, é também algo de diferente – tinha antes ocorrido com O Quarto do Filho (2001), melodrama familiar com o qual directamente rima Minha Mãe, que Moretti veio apresentar ao Lisbon & Estoril Film Festival – há ainda uma sessão no domingo, 15, às 14h, no Medeia Monumental sala 4 – e estreia a 26 de Novembro.
Pela primeira vez na sua obra é um “filme de mulheres”, com três gerações, uma realizadora, a sua mãe e a sua filha. Mas filme que rima com O Quarto do Filho porque é outro melodrama familiar. E Minha Mãe é um filme absolutamente sublime.
Foi a ocasião de um encontro com aquele que é um dos mais importantes autores cinematográficos contemporâneos, um dos mais lúcidos e também um dos… melhores conversadores.
Tornou-se conhecido e distintivo como um cineasta de uma fortíssima auto-representação, depois mesmo, em Caro Diário e Abril, de auto-apresentação – nesses dois filmes já não há o precedente Michele Apicella mas o próprio Nanni Moretti. Em O Quarto do Filho ainda era o protagonista mas o filme era já muito diferente. Nos filmes mais recentes parece distanciar-se: não aparece em O Caimão e se em Habemus Papam e Minha Mãe é intérprete mas já não o protagonista. Porquê este distanciamento?
Dantes pensava que os meus filmes tinham sentido apenas se eu tivesse esses três papéis, argumentista, protagonista e realizador. Considerava que isso era um mesmo trabalho, não três diferentes; quando escrevia já fazia escolhas de realização e de interpretação. Era assim: escrevia para mim como protagonista e para mim como realizador.
Agora tendo mais a distinguir as três coisas: penso que como actor posso mesmo – e já o fiz – trabalhar com outros realizadores, penso que os meus filmes podem perfeitamente ter outros protagonistas: se conto com Silvio Orlando em O Caimão, Michel Piccoli em Habemus Papam e Margherita Buy em Minha Mãe, fico contente em poder não ser o protagonista – os protagonistas são três actores extraordinários como eles. Mas mesmo se não sou o protagonista o investimento psicológico, o investimento emotivo que meto nos meus filmes é o mesmo.
São sempre filmes muito pessoais e mesmo se não nascem de uma experiência realmente autobiográfica, como Habemus Papam, ainda assim são fruto de um sentimento autobiográfico – o sentimento de inadequação do Papa era o meu sentimento de inadequação, a sua depressão era a minha depressão. Portanto se esses filmes não são autobiográficos são-no como sentimento, como ponto de vista.
A propósito de experiência autobiográfica sempre pensei que um filme como O Quarto do Filho não teria existido sem a sua própria nova condição de paternidade: em Abril o seu filho é recém-nascido.
Minha Mãe e O Quarto do Filho surgiram de modo muito diverso. Minha Mãe nasce de uma experiência autobiográfica [a morte da sua mãe]. O Quarto do Filho nasceu de um medo, o medo de todos os pais. Nesses dois filmes há luto, mas um luto muito diferente entre eles: o medo de perder o pai ou a mãe é da ordem natural das coisas e em Minha Mãe os filhos, e também o espectador, vão-se dando conta que a mãe morrerá, enquanto em O Quarto do Filho a morte de um filho é a coisa mais inatural que possa acontecer.
Mas mesmo assim são, digamos, filme-irmãos. Não é certamente uma coincidência que num e noutro a sua personagem tenha o mesmo nome, Giovanni.
Não, não é coincidência. Direi também que há outra coisa que os faz filmes semelhantes: os protagonistas não são crentes. Isso não está no argumento, não está nos diálogos, não é dito pelas personagens, e isso faz com que haja algo de implícito. Nem os pais em O Quarto do Filho nem os filhos em Minha Mãe são crentes, e isso torna as situações ainda mais duras para as personagens, porque não existe a consolação de um Além.
Em Minha Mãe há um realizador mas não só não é você próprio como fez uma opção muito importante: não é um realizador mas uma realizadora.
Sim, achei que esta história seria mais interessante contada no feminino. E não há só Margherita [a personagem de Margherita Buy] há também a sua mãe e a sua filha, três gerações de mulheres. Pareceu-me mais interessante se a situação fosse vista através do olhar de uma mulher, e penso também que deste modo tive uma maior distância e com isso mais lucidez.
Teria sido mais confuso se fosse eu a interpretar o protagonista, nunca pensei nisso. Desde o início, desde que o projecto me começou a ocorrer, achei que o protagonista seria uma mulher.
Creio contudo que em Minha Mãe há, como em todos os seus filmes, cinema e política, e também, como noutros, família. E política porque no filme que a realizadora está a rodar há um conflito social com uma ocupação por parte dos trabalhadores, portanto, como sempre, há a preocupação com questões sociais.
Não queria que Margherita estivesse a fazer um filme “à Nanni Moretti”, que houvesse nesse filme um reflexo da sua vida privada. Queria que, se Margherita é plena de incertezas, então o seu filme fosse pleno de certezas: há o preto e o branco, o patrão de um lado, os trabalhadores de outro. A vida dela é tão complicada que eu quis que o seu filme fosse antes sólido, bem estruturado.
Há uma cena de particular importância: Margherita quer muito fazer um filme sobre a realidade, quando vê um conjunto de figurantes exclama “mas não são reais”, o seu assistente retorque que “sim, são reais”, e isso fá-la exclamar uma coisa surpreendente e que parece contraditória, “quero lá saber se são a realidade, este é o meu filme!”. Dir-se-á que por vezes o real que os realizadores buscam apresentar afinal não é o real.
Margherita parece um pouco prisioneira de uma representação, digamos que passada, da classe operária. Mas nesse diálogo há também uma questão: o cinema não deve apenas respeitar a realidade, mas deve reinventar a realidade. Margherita diz “este é o meu filme”, portanto é ela que escolhe como representar a realidade, não a quer apenas copiar.
Sempre foi um cineasta cinéfilo. Neste filme há uma referência explícita a As Asas do Desejo de Wim Wenders: surge o cartaz do filme e até a história que a mãe conta de ter visto “um filme estranho, parte a preto e branco, parte a cores”, também pode ser entendido como referência.
Nisso nunca tinha pensado! De facto esse diálogo é algo que retirei da realidade, assisti em hospitais a diálogos assim. E quando o estado de saúde do meu pai se agravou…
O seu pai que também…
Foi actor nos meus filmes, sim. Recordo-me de um diálogo assim, em que um dia ele falava de um filme que imaginava. Portanto, não tinha pensado nisso que diz, mas agora faz-me pensar.
Mas de qualquer modo há o cartaz.
O cartaz foi reelaborado, não o queria com “Um filme de Wim Wenders, com Bruno Granz”, queria aquela imagem, por isso o arranjei com a minha cenógrafa, com outras cores.
O importante era a imagem do anjo?
Sim, isso mesmo.
Falemos da espantosa parte final do filme. Faz sucessivamente duas elipses, quando Margherita e Giovanni sabem primeiro do agravamento do estado de saúde da mãe, e depois da morte dela. Isto sem nada ser dito, apenas apresentando os sentimentos deles os dois.
Agrada-me fazer “trabalhar” também o espectador, não gosto de o acompanhar, com a mão na mão, e explicar-lhe tudo, com diálogos preenchidos de notas. Muitas vezes deixo também espaço ao “trabalho” do espectador. Por exemplo não conto nada da minha personagem, o seu trabalho, a vida privada; e quanto ao ex-marido de Margherita também não digo nada, quando e porquê se separam. Há tanta coisa que não quero explicar passo a passo ao espectador, prefiro deixar espaço à sua fantasia.
E há a extraordinária cena final: já depois da morte da mãe, há ainda um diálogo entre Margherita e ela, a filha pergunta “em que estás a pensar?” e a resposta é “em amanhã” – o filme sobre uma morte conclui-se a pensar “em amanhã”!
Isso não estava assim no argumento, em que a cena ocorria a meio do filme, mas na montagem pensei que devia antes ser a conclusão, no modo como a mãe se despede, saúda e é o adeus. E o último plano mesmo é de Margherita, que no espaço de segundos primeiro sorri, recordando a mãe com ternura e amor, e depois é tomada de pânico, porque pensa que ficou sem raízes, só. Margherita Buy é espantosa ao passar no mesmo plano de um sentimento a outro.
Disse que o realizador deve “reinventar a realidade”. Mas também poderá ser um “intérprete” de situações pessoais? Quer em O Quarto do Filho quer em Habemus Papam o seu papel é de psicanalista, e Sigmund Freud era das personagens principais de um dos seus primeiros filmes, Sogni d’Oro. Acha que há uma relação entre psicanálise e cinema?
Digamos que é um mundo que sempre me fascinou, ainda que os livros de psicanálise os prefira ler como se fossem de narrativa. Mas o trabalho de analista sempre me interessou.
Pois que falámos de Habemus Papam, o filme parece agora premonitório com o sucedido com a resignação de Bento XVI.
Isso é algo que me faz sorrir. Quando o filme se estreou em 2011 muitas pessoas da área católica disseram: “Um Papa que renuncia? Isso não é possível, seria vil”. E quando Rarzinger renunciou dois anos depois as mesmas pessoas que tinham dito “um Papa nunca fará um gesto assim vil” disseram “Ah que gesto corajoso! Que gesto revolucionário”. No cinema não aceitaram essa possibilidade, mas quando ela se tornou realidade aplaudiram-na!
Falemos então ainda de realidade, e de política. Ainda sente necessidade de implorar “diz qualquer coisa de esquerda, ao menos qualquer coisa de cívico” como em Abril?
Digamos que, em relação a alguns anos atrás, agora tenho menos certezas, estou muito mais confuso e por isso não quero dizer coisas genéricas ou mesmo banais sobre a política italiana – estou numa fase em que prefiro estar calado, do que em dizer algo, só por dizer.
Para quem o conheceu com os filmes de Michele Apicella, parece incrível que com O Quarto do Filho e agora Minha Mãe haja um Moretti que é um mestre do melodrama.
Melodrama, mas contido. No melodrama não havia receio de exagerar, enquanto a mim me interessa contar estas histórias com muito mais discrição que no melodrama clássico.
Mas no final do filme o espectador fica comovidíssimo.
Sim, e se isso sucede dá-me prazer porque tentei ser muito delicado. Como é uma história dolorosa dá-me prazer que as pessoas o sintam, como me dá prazer que se riam nas partes cómicas. Mas este sempre foi um pouco o meu modo de fazer filmes, alternando situações e sentimentos.
A palavra, ou o conceito, de “maturidade” tem algum sentido para Nanni Moretti?
Sim, tem sentido se penso em mim, porque me acho mais tolerante que dantes. Mas não tem sentido se se refere a uma mudança: mudar-se a si mesmo é a coisa mais difícil que pode suceder numa vida. Desde os três anos até aos 90 somos sempre a mesma pessoa. “Maturidade” como mudança radical acho que não; “maturidade” como maior serenidade também não; “maturidade” como maior tolerância, acho que sim.