Bocage, alma com mundo
É tempo de reler, reencontrar Bocage, voz livre que o tempo não derrotou mas que uma vida desregrada e de sempre renovado sacrifício não poupou e foi capaz de manter vivo.
Poeta rebelde e inovador que conseguiu promover a transição estética e até ideológica da tradição arcádica neo-clássica para o romantismo de que também foi símbolo inspirador com a sua paixão pela liberdade, a sua tensa relação com os poderes – o político e o religioso – e a sua ligação ao imaginário popular, Manuel Maria Barbosa du Bocage nasceu na tarde do dia 15 de Setembro de 1765, em Setúbal, filho de um bacharel e advogado e de uma senhora de origem francesa.
Manuel Maria estudou latim, francês e grego, assentou praça no exército e depois foi admitido na Escola da Marinha Real. Embora tenha desertado no final do curso, foi nomeado guarda-marinha, durante o reinado de D. Maria I. Nunca foi feliz nos amores e nas andanças da vida e cedo se tornou figura de referência na Lisboa boémia e nocturna devido à certeira e inspirada qualidade dos seus versos e à forma como o seu repentismo político, social e literário o levou a entrar num anedotário que nunca lhe fez justiça e prejudicou o seu reconhecimento como homem de letras, por estar muito acima e além dele.
As passagens que fez pelo Rio de Janeiro, por Moçambique e pela Índia levaram-no a tentar identificar o seu destino pessoal e literário com o do grande Luís Vaz de Camões, tema que de resto glosou poeticamente num dos seus melhores poemas.
Rebelde, desalinhado, provocador e sempre ágil na provocação e na certeira resposta, foi preso pela Inquisição e nesse período de privação leu escreveu e esteve em paz, tendo traduzido poetas franceses e latinos. Aderiu à Academia das Belas Letras ou Nova Arcádia, tendo visto a primeira edição das “Rimas” ser publicada em 1791.Por ser, segundo os acusadores, “desordenado nos costumes”, conheceu a solidão do cárcere, aproveitando esse tempo para repensar a sua vida, o seu destino e até a sua obra literária.
Nestes 250 anos do seu nascimento, com um bem estruturado programa comemorativo concebido pela Câmara Municipal de Setúbal, sua cidade natal, Manuel Maria Barbosa du Bocage continua a ter páginas incertas na sua biografia, por ter sido poeta e cidadão de muitas errâncias, zangas e tormentos, desalinhado com os poderes do seu tempo e sofrendo a sina amarga da carência e do desamparo. Viveu com reconhecidas dificuldades, na companhia da irmã, no nº 25 da Travessa André Valente, no Bairro Alto, onde morreu vítima de aneurisma, no dia 21 de Dezembro de 1805, minguado de forças para sair à rua e travar os seus combates em que o verso e o dito repentista ajudavam a construir o retrato do homem em ruptura com o seu tempo e com os cânones morais e religiosos que o condicionavam.
A comemoração destes dois séculos e meio de existência deveria ser um projecto nacional envolvendo as escolas e disciplinas artísticas que contribuíssem para a sua redescoberta e da sua vida e obra, na linha do que, em tempos, fizeram dramaturgos como Luzia Maria Martins com a peça “Bocage Alma Sem Mundo” e Sinde Filipe como o seu “Bocage”. Há poemas seus que devem ser musicados e mais bem conhecidos, para além dos sonetos brilhantes e obrigatórios. A sua figura, num mais favorável contexto cultural e artístico, podia dar origem a um inspirado espectáculo musical. Nunca é tarde.
Cumprindo o destino de instabilidade e ruptura que tão dolorosamente marcou outras vidas e obras de escritores portugueses, Bocage nunca se esgotou no anedotário que o popularizou e diminuiu, porque, não não se sabendo se as situações ficcionadas foram ou não por ele vividas, tem-se como certo que foi literária e politicamente maior e mais profundo que as espuma dos dias e das noites em que afundou o talento e a saúde, bebendo muito mais do que devia, sempre com os amores sonhados e mitificados passando ao largo da sua vida incerta e frágil.
Por ter sido um símbolo da liberdade e da diferença, da inovação e da revolta social e cultural, Manuel Maria Barbosa du Bocage, pode e deve ser assumido como um símbolo perene de um tempo que se projecta neste tempo e que mostra que os grandes autores são avessos às sínteses simplificadoras e tantas vezes mesquinhas. Morreu sem forças para criar e para se manter vivo, numa Lisboa que o admirava mas não o levava a sério, já reconciliado com o padre José Agostinho de Macedo, seu adversário acirrado durante muitos anos que, no final, o quis ajudar a preservar a dignidade e o imenso talento que o levaram a escrever “Eis Bocage, em quem luz algum talento/. Saíram dele mesmo estas verdades, num dia em que se achou mais pachorrento”.
É tempo de reler, reencontrar Bocage, voz livre que o tempo não derrotou mas que uma vida desregrada e de sempre renovado sacrifício não poupou e foi capaz de manter vivo.
Autor maior de um tempo de mudança estética e social, Bocage é hoje, para muitos portugueses que pouco sabem da nossa tradição lírica, sinónimo natural de poesia, como acontece com Ary dos Santos, Nicolau Tolentino e outros de verso luminoso e sempre pronto a disparar sobre a vida, a mediocridade e o medo. Só por isso, merece ter sempre iluminada a estátua que o celebra em Setúbal, como se, não dizendo que “Já Bocage não sou”, quisesse dizer a Portugal que a cultura e o talento nos dão sempre mais do que tantas vezes fazemos por merecer.
Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores