Um romance que começa e acaba com uma finta

O brasileiro Sérgio Rodrigues lança em Portugal O Drible, um romance que traz o futebol para o universo da literatura. É uma história bem contada, cheia de fintas e de referências à época áurea do “jogo bonito” do Brasil. Uma aposta certeira que lhe valeu o Grande Prémio Portugal Telecom.

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Como muitos meninos brasileiros, Sérgio sonhou ser jogador de futebol. Faltava-lhe talento mas ficou essa paixão, que vivia lado-a-lado com outra, menos habitual nessas idades - a literatura NUNO FERREIRA SANTOS

O golo é o objectivo principal no futebol. É isso que determina quem ganha e quem perde, independentemente da nota artística. Mas há outro momento especial neste jogo seguido por milhões de pessoas: a finta. O escritor uruguaio Eduardo Galeano definiu-a como o “puro prazer do corpo que se lança na proibida aventura da liberdade.” E foi esse momento libertário o escolhido pelo jornalista e escritor brasileiro Sérgio Rodrigues para um romance com muito futebol, O Drible (Companhia das Letras), que venceu o Grande Prémio Portugal Telecom no ano passado e acaba de ser lançado no mercado português.

O Drible — finta em inglês — começa com um lance de Pelé no Mundial de 1970, aquele onde foi consagrada a melhor selecção brasileira de sempre. Sérgio Rodrigues podia ter escolhido um dos quase 1300 golos de Pelé ou um dos remates certeiros de Rivelino, Tostão ou Jairizinho. Mas preferiu recuperar uma famosa finta de Pelé ao guarda-redes do Uruguai, que acabou por não ser transformada em golo. Uma escolha com uma dupla originalidade. Não só há uma preferência da finta face ao golo, como também é original vermos Pelé, um vencedor-nato, ser narrado como um perdedor. “Pelé desafiou Deus e perdeu. Imagine se não perdesse. Se não perdesse, nunca mais a humanidade dormia descansada”, diz Murilo Filho, o cronista desportivo, numa das frases mais bem conseguidas deste romance.

Drama familiar
A história deste livro é, na essência, um drama familiar: um pai que está doente e que tenta reaproximar-se do filho após décadas de afastamento. “Esse pai é um velho cronista esportivo e nessa reaproximação a linguagem comum que ele encontra com esse filho é o futebol e as suas memórias futebolísticas”, explicou o escritor numa entrevista ao Ípsilon em Portugal, onde esteve para o lançamento do livro, publicado há dois anos no Brasil.

Como muitos meninos brasileiros, Sérgio Rodrigues sonhou “nos delírios infantis” ser jogador de futebol. Faltava-lhe talento mas ficou essa paixão, que vivia lado-a-lado com outra, bem menos habitual nessas idades — a literatura. Filho de um bancário que mudava muitas vezes de local de trabalho, habituou-se a ter os livros como “os fiéis amigos” que nunca o abandonavam, mesmo quando era hora de partir para uma nova cidade.

Agora, aos 53 anos, Sérgio Rodrigues juntou futebol e literatura. E embora conteste a ideia que O Drible seja um romance de futebol — “Todo o romance é um feixe de histórias e nenhum é sobre uma coisa só” — admite a intenção de homenagear o futebol, “a grande contribuição da cultura brasileira ao mundo, junto com a música popular”: “Nenhuma outra manifestação artística brasileira — e acho que a gente pode chamar o futebol de arte — atingiu o grau de projecção internacional que o futebol e a música atingiram. Então esse livro tenta ser o romance que a literatura brasileira deve, ou devia, ao futebol brasileiro, um campo pouco explorado na ficção.” — na verdade, e como bem disse Luís Fernando Veríssimo, o futebol é uma personagem deste livro, uma vez que o acompanha do início ao fim.

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O peso de juntar futebol e literatura — muitas vezes vistos como incompatíveis — foi uma das razões para este livro ter demorado 18 anos de trabalho (não contínuo). Tudo começou com um conto sobre Peralvo, um jogador com poderes sobrenaturais que teria sido melhor do que Pelé, a maior figura do futebol brasileiro, não fosse um trágico acontecimento. Sérgio Rodrigues esteve quase para publicar essa história no seu primeiro livro de contos (O Homem que Matou o Escritor), mas em cima da hora decidiu retirá-la. Aquele conto merecia mais e acabou por ser o livro dentro deste livro. Mas só 18 anos depois, em 2013, foi possível a Sérgio Rodrigues desfazer este nó. É certo que publicou seis livros nesse período, mas precisou de quase 20 anos para encontrar a fórmula certa para saltar da linguagem jornalística para o registo literário.

“Essa foi a dificuldades central. O que me tomou 18 anos pode ser resumido nessa busca por uma abordagem literária do futebol”, conta o jornalista, que cobriu, por exemplo, o Mundial de futebol de 1986 e campeonatos de Fórmula 1. “O futebol é narrado em excesso, no rádio, na TV, na Internet, no jornal do dia seguinte, na revista semanal. A linguagem que se vai construindo em redor dele fica muito cristalizada e cheia de lugares comuns”, diz Sérgio Rodrigues, que abre este livro com um belo exemplo de como se pode desconstruir esses lugares comuns.

É difícil ficar indiferente à transformação daqueles 12 segundos da finta de Pelé (disponíveis no YouTube) em seis páginas. Sérgio Rodrigues explica como trabalhou esse capítulo inicial, um dos mais aclamados pela crítica brasileira: “Ao esticar o tempo, o que o livro faz é quebrar a linguagem cristalizada e tentar encontrar alguma coisa de mais autêntico. É desacostumar o olhar. É o equivalente a um cineasta filmar algo muito banal e muito visto de um ângulo inédito para desabituar o olhar e deixar você voltar a olhar o que você já não via de tanto ver.”

A surpresa
As duas personagens principais do livro são Murilo Filho, um cronista desportivo, famoso e agressivo, e o filho Neto, revisor de livros de auto-ajuda, um homem amargo e obcecado pela cultura pop. Sérgio Rodrigues foi buscar a si próprio características destas personagens. “Não diria que são referências autobiográficas, mas são memórias que você acaba usando, queira não, para contar as suas histórias”, explica o escritor.

“O filho é da minha geração. É torcedor do Flamengo, tinha uma banda de rock na juventude. Digamos que é uma versão mais pateta de mim”, diz o jornalista, que já foi correspondente do Jornal do Brasil em Londres e editor da Veja e do Segundo Caderno do jornal O Globo. “Viveu o Rio que eu vivi, tem uma série de referências de cultura pop que são minhas, embora não com esse grau de reverência que ele tem pela cultura pop” — além das passagens futebolísticas e algumas ligações literárias (como o Dom Casmurro, de Machado de Assis), também abundam no livro referências à cultura pop americana, de Michael Jackson a Regresso ao Futuro. “Essas são as referências da minha geração numa época em que o Brasil era bombardeado muito pesadamente pela cultura americana. A ditadura esvaziou todas as outras formas de manifestação cultural nacionais e o que vinha de fora ocupou um espaço talvez maior do que seria natural.”

Na construção da personagem Murilo Filho também há algo de Sérgio Rodrigues — trata-se de um jornalista desportivo e de alguém que foi de Minas Gerais para o Rio de Janeiro. Mas o traço mais evidente de Murilo, no entanto, é a forma como os diálogos com o filho remetem para os grandes cronistas desportivos do Brasil, como os irmãos Nelson Rodrigues e Mário Filho (o homem que deu nome ao mítico Estádio Maracanã): “Esses caras estão para o jornalismo esportivo como o Pelé estava para o futebol”, defende Sérgio Rodrigues, que não tem qualquer parentesco (“a não ser espiritual”) com Nelson Rodrigues: “Eles estavam escrevendo a grande era do jornalismo esportivo brasileiro, que se pode chamar de período romântico da crónica esportiva, em que havia espaço para um certo romantismo e até para a aproximação à literatura, que foi desaparecendo.” É curioso, aliás, recuperar uma das frases do romance, quando Murilo diz que o futebol brasileiro “virou o que é em grande parte por causa do esforço sobre-humano que os jogadores tiveram de fazer para ficar à altura das mentiras que os radialistas contavam”.

Passagens como esta serão naturalmente mais bem apreciadas por leitores que gostem de futebol. Mas este romance está longe de ser desaconselhado a quem não percebe (ou não gosta) deste desporto. Sérgio Rodrigues conta que tem recebido boas reacções de leitores que não apreciam o pontapé na bola. E, ironicamente, talvez uma das razões para esse sucesso seja a própria estrutura “futebolística” do romance. A finta é a arte de enganar, de fazer um adversário pensar que se vai para um lado e afinal ir para outro. E é precisamente isso que Sérgio Rodrigues faz neste livro, ao reproduzir, como o próprio assume, “o encanto maior de uma partida de futebol, que é aquela partida que se decide no último minuto e com um gol que muda tudo.”: “Queria um livro que tivesse uma jogada no último minuto que subvertesse toda a expectativa do leitor. Por isso, O Drible, entre outras leituras, é o drible que o livro aplica no leitor.”

Viva a Língua Brasileira
O sucesso de O Drible — já publicado em espanhol, francês e com tradução dinamarquesa a caminho — deixa a fasquia alta para Sérgio Rodrigues, que já começou um novo romance mas não quer desvendar nada sobre o tema. Futebol não é certamente.

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O autor sabe que a “expectativa é alta”, mas como pouco mudou desde que recebeu o Grande Prémio Portugal Telecom (“gosto mais de fazer ficção mas o que me dá mais dinheiro é a não ficção”) o próximo livro de Sérgio Rodrigues é sobre a língua portuguesa. Chama-se Viva a Língua Brasileira e reunirá o material acumulado ao longo de 15 anos em crónicas sobre a língua e em consultórios gramaticais, outra das actividades deste jornalista e crítico literário, autor do blogue Todo Prosa e do site Melhor Dizendo.

Não se pense, porém, que o título do novo livro é uma declaração de independência do Português do Brasil. “Viva a Língua Brasileira é, em alguma medida, uma homenagem ao romance clássico de João Ubaldo Ribeiro [Viva o Povo Brasileiro] mas não tem, como parece, carácter autonomista”, esclarece Sérgio Rodrigues, que é tão crítico do “sentimento independentista de quem diz: ‘vamos decretar a independência do Português do Brasil’” como da “mentalidade subserviente, que considera que bom é o Português de Portugal”: “São duas visões equivocadas sobre a língua”, argumenta.

Este escritor que hoje se sente “mais carioca do que mineiro” é também um defensor do novo acordo ortográfico. “Acho que a ideia da unificação é perfeita, embora não ache que o acordo a que se chegou seja o melhor”, diz Sérgio Rodrigues, para quem a dupla ortografia “é fruto de uma velha picuinha [mania] de académicos”. O autor diz que “o grande erro da língua portuguesa foi começar a interferir na ortografia por meio de lei”: “Foi isso que foi feito a partir de 1911 e aí começou a bagunça. Portugal fez uma reforma ortográfica e o Brasil se recusou a seguir. E quando Brasil seguiu, não foi exactamente igual e nunca mais nos acertámos.” O jornalista defende que agora “a única forma de corrigir o erro cometido lá atrás é cometer mais um erro e baixar mais uma lei, pelo menos com a ideia de que seja o último dos erros e que a partir de agora a gente deixar a língua em paz. Sou a favor dessa reforma para acabar com todas as reformas.”

É também por causa desta visão da língua que a edição de O Drible agora publicada em Portugal pela Companhia das Letras é exactamente igual à brasileira, excepção feita à capa. E nem por um momento passou pela cabeça de Sérgio Rodrigues fazer uma adaptação. “Tecnicamente, é muito difícil você saber qual é o limite dessa adaptação, se é meramente ortográfica, se é também gramatical. E aí chega um momento em que você está reescrevendo e traindo o autor, porque parte do que ele está dizendo é o modo como ele usa a língua. Grande parte da graça de ler um autor da sua língua, que, no entanto, não é do seu país, é justamente apreciar o que aquilo tem de ligeiramente diferente. Isso é parte do encanto de se ler Saramago no Brasil. E gostaria que isso fosse parte do encanto de ler brasileiros em Portugal, mas infelizmente me parece que existe uma certa resistência do público português à literatura brasileira contemporânea.”

Mais do que o comportamento em relação aos seus dois livros anteriores publicados no mercado português (What Língua is esta, da Gradiva, e Elza, a Garota, da Quetzal), o escritor diz que fala do que tem sido a experiência em Portugal da generalidade dos escritores brasileiros contemporâneos. Mas será que tem alguma explicação para esse insucesso?

“É possível que exista aqui um certo sentimento de posse em relação à língua portuguesa e que se pense: ‘esses escritores não sabem escrever direito, porque não escrevem como nós’”, argumenta o autor, para de seguida acrescentar, meio a sério, meio a brincar: “Os portugueses devem pensar: ‘tudo bem ouvir a música deles, porque eles são bons de ritmo; tudo bem ver as telenovelas, porque eles são bons de drama, mas essa coisa de literatura não vem que não tem.’” Um desabafo amargo de alguém que escreveu um livro com qualidade para fintar esse habitual destino dos escritores brasileiros em Portugal.

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