As quotas para mulheres continuam a ser uma necessidade
Debate sobre direitos e igualdade de género juntou deputadas, juíza e socióloga.
As quotas que fazem com que 35% do Parlamento português seja feminino continuam a ser necessárias para que as mulheres tenham acesso ao poder? Isabel Moreira e Teresa Leal Coelho, embora estejam sentadas em bancadas diferentes, a primeira na do PS e a segunda na do PSD, concordam: sim. A ante-estreia do filme As sufragistas foi o mote para convidar quatro mulheres – duas deputadas, uma socióloga e uma juíza conselheira – para falar sobre direitos e igualdade de género, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, na noite de terça-feira.
“Se fossem suspensas [as quotas], o número de mulheres diminuiria no Parlamento”, responde Teresa Leal Coelho que reconhece que os partidos, quando elaboram as listas, "estão abertos a tratar melhor as mulheres". “Gostava de suspender as quotas, por um bocadinho, só para ver como os partidos se comportariam… Estou convencido de que regrediríamos”, diz, por seu lado, Isabel Moreira.
Também Maria Clara Sottomayor, juíza conselheira do Supremo Tribunal de Justiça, concorda que embora as mulheres possam chegar aos lugares de poder ou ao topo da carreira por mérito, as quotas são necessárias. Aliás, sem elas “diminuiria imediatamente o número de mulheres deputadas”, prevê.
“Sem quotas as coisas não avançam”, é peremptória Anália Torres, socióloga e coordenadora do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, que dá um exemplo concreto, o da constituição da equipa reitoral resultante da fusão da Universidade de Lisboa com a Universidade Técnica de Lisboa: todos homens. Tal aconteceu porque as mulheres não se movimentam nos mesmos corredores, reflecte. “Há redes de interconhecimento, as coisas aparecem como naturais para os homens, e estas redes não são mistas”, justifica a socióloga. “Os lugares de poder são escassos” e, por isso, são distribuídos pelos que “são próximos”, acrescenta ainda. Mas nada disto se faz por conspiração – “os homens não se põem num canto a conspirar contra as mulheres. As coisas aparecem-lhes como naturais e, por isso, nomeiam-se uns aos outros”, continua a investigadora. Acontece porque é o funcionamento da sociedade, mas esse “tem de ser quebrado” e as quotas “quebram essas redes naturais”. “A questão da igualdade tem de estar nas cabeças dos homens”, declara.
Teresa Leal Coelho lembra a iniciativa da anterior secretária de Estado dos Assuntos Parlamentares e da Igualdade e agora ministra da Cultura, Igualdade e Cidadania, Teresa Morais, quando em Junho deste ano assinou um compromisso com 13 empresas para promover a igualdade de género nas administrações. Em declarações à TSF, a ministra que também esteve presente na sessão defendeu que o caminho pelos direitos das mulheres ainda "é feito de pedra" porque ainda há "muita resistência"
Para Isabel Moreira é importante que as mulheres estejam no topo das empresas, “mas é muito mais importante a aposta no Estado Social”. “Enquanto feminista, a grande condição de libertação das mulheres é o Estado Social”, afirma, lembrando que falta ainda muito para que a igualdade de géneros seja efectiva, dando como exemplo o impedimento de uma mulher solteira submeter-se a tratamentos de procriação medicamente assistida porque “não tem um homem”. “Se estamos a falar de uma questao que liberta a mulher da tutela de um homem, não entendo porque o Estado é bipolar”, confessa, arrebatando uma salva de palmas da plateia. Embalada pelo apoio sentido, a deputada socialista fala da luta LGBT e evoca ainda as alterações à lei da interrupção voluntária da gravidez para dizer que faz o Estado campanhas contra o bullying, mas é o próprio Estado que “faz bullying quando diz que não podes casar, não podes adoptar” e fica à espera do consenso social para decidir.
"Persistência de desigualdade"
A Assembleia da República trata bem as mulheres deputadas, pergunta Maria Flor Pedroso, jornalista da Antena 1 e moderadora da mesa. Nem por isso, afinal “o Parlamento é um lugar reflexo da sociedade em que vivemos” e continua a ser “patriarcal”, responde Isabel Moreira, dando um exemplo: “um homem se é contundente, é efusivo; uma mulher se é contundente, é histérica”. É mais difícil ser levado a sério quando se é do sexo feminino, confessa.
É importante o voto das mulheres, assim como é importante que estas tenham poder e estejam no centro de decisão, afirma Isabel Moreira. Teresa Leal Coelho concorda e apela ao voto das mulheres, para que o façam “efectivamente”. “Se as mulheres portuguesas fossem em esmagadora maioria às urnas, a questão das quotas deixaria de se colocar”, declara a deputada social-democrata.
Anália Torres sai do hemiciclo para a sociedade, para dizer que existem “dificuldades que são transversais a todas as mulheres. Porque têm condições sociais diferentes e as condições para o exercício do direito não são iguais para todas as mulheres”. Clara Sottomayor lembra que antes de 1974 as mulheres não podiam aceder à carreira de magistrado. A investigadora frisa que “há uma persistência de desigualdade” que começa nos salários – “as mães portuguesas são as que mais horas trabalham na Europa”. Isabel Moreira acrescenta a violência doméstica: “Vivemos num clima de guerra civil quando mais de 40 mulheres morrem [por ano] vítimas de violência doméstica.”
E quanto ao filme, que é sobre a luta das mulheres britânicas pelo direito ao voto, no início do século XX? “As sufragistas têm a percepção de que o direito ao voto é muito mais do que isso, é o direito a uma voz”, é a possibilidade de acesso a direitos sociais, diz Isabel Moreira. É o direito à educação, acrescenta Teresa Leal Coelho. “No direito ao voto está tudo e era o veículo para tudo. Para uma igualdade salarial, para uma vida melhor e para que as filhas das sufragistas não tivessem a mesma vida que as mães”, resume Clara Sottomayor.
Chegada das mulheres ao voto
Apesar da luta das britânicas, as sufragistas, o voto chegou em 1918, com várias restrições e só em 1928 o voto é pleno. Por cá, a Carolina Beatriz Ângelo, médica, conseguiu votar em 1911 por haver um buraco na lei que previa o voto ao chefe de família, o que era o seu caso uma vez que era viúva. Esta foi corrigida em 1913, para esclarecer que os chefes tinham de ser do sexo masculino.
Teresa Leal Coelho recorda que embora o Partido Republicano fosse apoiante da luta das sufragistas no resto da Europa, em Portugal não quis alargar o voto às mulheres porque considerava que estavam demasiado condicionadas pela Igreja Católica, uma força conservadora.
É com o Estado Novo que algumas mulheres podem votar, a partir de 1945, aquelas que tinham curso secundário ou superior. Em 1946 é alargado a mais algumas mulheres, aquelas que pagassem ao Estado 100 escudos por impostos directos, assim como as emancipadas e as casadas com propriedades. A deputada social-democrata lembra que, mais uma vez, a Igreja Católica teve peso na decisão de Salazar, desta vez para dar o voto às mulheres, e não foi uma conquista feminina. Só em 1974 o voto se torna universal.