Este é o livro

Cidade em Chamas tem como personagem a Nova Iorque da energia punk dos anos 70. É um dos acontecimentos do ano, um livro que antes de o ser já tinha valido dois milhões de dólares ao autor, Garth Risk Hallberg. Que nos conta, em entrevista, como tudo começou.

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O romance arranca em Nova Iorque em vésperas da passagem de ano de 1976 e termina com o black out de 13 de Junho de 1977. Garth Risk Hallberg nasceu em 1979, muito longe dali, na Carolina do Norte Mark Vessey

“Pessoa teria adorado o iPod. Imagino-o a andar por Lisboa no estado de encantamento que acontece sob o efeito da paisagem urbana com a intimidade da música. Ele, que era um homem da cidade, ia entender isso muito bem”. Garth Risk Hallberg pede um capuccino depois de escolher uma mesa que lhe permita ficar de frente para a escola onde andam os dois filhos. A conversa terá de acabar quando as crianças aparecerem no jardim, por volta das duas e meia. Há sete anos que vive naquele bairro de Brooklyn Heighs, Nova Iorque, e tenta que o que lhe está a acontecer altere o mínimo a sua rotina diária. Três dias antes, numa livraria perto dali, apresentou o seu primeiro romance apontado como um dos acontecimentos literários deste ano, depois da expectativa gerada em 2013 por um adiantamento recorde de direitos de dois milhões de dólares. Garth era então um crítico literário respeitado, que assinara apenas uns contos dispersos e, em 2007, uma novela gráfica meio marginal, A Field Guide to the North American Familiy. Quem era Garth Risk Hallberg? Que projecto inacabado poderia merecer a disputa de 12 editoras, envolver uma soma tão elevada e ter sido comprado para o cinema pelo produtor Scott Rudin (de As Horas e A Família Addams) no dia imediato a ele ter recebido o manuscrito? 

Os editores geriram o silêncio, Risk Hallberg mantinha-se longe e a informação ia sendo dada de modo a alimentar q.b. a expectativa. Anunciava-se um livro sobre Nova Iorque na década de 70, em pleno movimento punk, com a cidade a viver um período de decadência social e económica, aumento de violência, consumo de drogas e o início da epidemia pelo HIV. Neste contexto, havia um crime por resolver. Pouco mais se sabia, mas a escolha do tema parecia confirmar uma tendência. A segunda década do século XXI sofre de nostalgia face aos anos em que as fábricas do Soho ficaram vazias de operários e o espaço foi sendo ocupado por artistas que viam em Nova Iorque a oportunidade de romper com o instituído e ensaiar linguagens experimentais. Na música, na poesia, no cinema, nas artes plásticas.

“O final dos anos 70 correspondeu aos anos mais negros, mais sombrios da história de Nova Iorque. Então porque é que não conseguimos parar de falar neles?”, interrogava-se o escritor Edmund White, em Setembro passado no New York Times. Dava como exemplos, o romance Os Lança-Chamas (2013) de Rachel Kushner, duas novas sérias de televisão assinadas por Martin Scorsese e Baz Luhrman, a retrospectiva que o Whitney vai dedicar em 2016 ao artista David Wojnarowciz e… nada mais do que City on Fire, de Garth Risk Hallberg. Talvez essa nostalgia se explique de forma simples: uma cidade cada vez mais habitada por milionários e com uma classe média estrangulada sente como mais democráticos os tempos caóticos em que ricos e pobres repartiam uma cidade caótica, mas mais livre. Ou, como escreve White, uma cidade onde nem o dinheiro era capaz “de isolar” alguém. 

Comparado na dimensão, na ambição e no estilo ao romance A Fogueira das Vaidades (1987) de Tom Wolf, mas também ao muito mais experimental — e com menos cedências a entretenimento — Underworld, de Don DeLillo (1997), Cidade em Chamas aparece com um rótulo ingrato (não assumido): a two million dollars novel que gera expectativas ao nível, ou seja, tudo o que não for muito bom será mau para Garth Risk Hallberg e para os seus editores. Será?

“Essa expectativa não é minha, vem de fora. Eu tento preservar o meu anonimato”, diz o escritor de 36 anos, que afirma que este livro o tem ensinado a calar-se. “Não quero andar pelas ruas da cidade como se tudo o que estivesse a experimentar fosse eu próprio. Fernando Pessoa e Robert Walser são para mim não apenas exemplos de escrita mas de como estar nela. Enquanto autores viveram numa certa pequenez, e uso essa palavra sem nada de depreciativo, apenas no sentido de um modo de ser anónimo que estimo: não ser notado para poder continuar a observar. Não quero que perguntas sobre fama e fortuna se agigantem a ponto de não me deixar produzir”, diz, pouco depois de saber que o livro já está vendido para 18 países e a dias de começar um périplo de promoção internacional. 

O poder de uma silhueta
City on Fire chega às livrarias portuguesas no dia 10 com o título Cidade em Chamas e tem como grande personagem a cidade de Nova Iorque na década de 70. São mil páginas sobre um tempo descrito como de decadência e de possibilidade, contado com a partir de um leque de personagens que permite traçar um quadro complexo e ambicioso: o jovem aspirante a escritor recém-chegado à cidade, namorado do herdeiro rebelde de uma das famílias mais poderosas do Upper East Side que vive entre a música e a pintura, irmão da bonita e bulímica Regan, mulher traída de um consultor financeiro; um punk anarquista, um pré-universitário sub-urbano apaixonado por Bowie e Patti Smith que persegue a vida nova-iorquina como um sonho, a filha inteligente e bonita de um pirotécnico, um jornalista deprimido e um polícia a viver entre a amargura e a nostalgia de um território que lhe escapa. Simplificando muito, é sobre esta teia de relações que o escritor desenha o mosaico de um tempo e um lugar que sente como seu mas que nunca conheceu por experiência própria. Valeu-se da de outros. Sobretudo de referências literárias da época, como James Baldwin ou Susan Sontag, e outras em que a sua escrita se inspira, como Flaubert, Don DeLillo, Faulkner, W.H. Auden, Dickens, Proust, Stendhal e Walt Whitman acima de todas. Mas também referências musicais. Este é, aliás, um livro onde se escuta em permanência uma banda sonora feita de canções de Patti Smith, Lou Reed, David Bowie, Ramones ou Peter Frampton.

Disto isto, o romance arranca em Nova Iorque em vésperas da passagem de ano de 1976 e termina com o black out de 13 de Junho de 1977. Garth Risk Hallberg nasceu em 1979, muito longe dali.

“Cresci numa cidade muito pequena da Carolina do Norte. À minha volta tinha apenas campos de cultivo”, conta, voz grave, olhar franco, como se nesse princípio de tudo, muito distante da geografia urbana de que se sente mais próximo, estivesse não apenas a génese do livro, mas a sua. “Era um leitor voraz”, adianta. Encontrava o seu mundo alternativo nos livros de C.S. Lewis, J.R.R. Tolkien ou Sue Townsend. Nova Iorque chegava-lhe pelas conversas que ouvia dos pais enquanto discutiam música, cinema, arte, moda. “Tenho memórias longínquas. As referências culturais em 1981 no Sul rural dos Estados Unidos não eram muito diferentes das Nova Iorque de 1975. As coisas demoravam a chegar”, refere para justificar um sentimento de não estranheza face a um tempo que não viveu de facto mas se propôs recuperar num romance que não é histórico, como por exemplo os da britânica Hillary Mantel, que admira mas não tenta seguir no que têm de pormenor factual. O que persiste no livro é uma quase nebulosa como a que lhe permitiu fantasiar em criança. “Na minha cabeça, Nárnia e Nova Iorque faziam parte da mesma dimensão. Eram fantasias muito reais”, assume. 

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Nova Iorque era o seu ideal. Leu os poetas da Beat, leu Kerouac, Ginsberg. E leu a poesia de quem estava à frente do punk, Patti Smith, Lou Reed Vanessa Ng

Na adolescência a cidade foi ganhando contornos mais definidos. Começou a ser, para ele, o lugar para onde iriam todos os que se sentiam sem lugar. Esta tem sido uma das ideias mais sublinhadas por Risk Hallberg enquanto se descreve como um outsider, “alguém que chega de outro lado”, como Charlie, o pré-universitário do livro, que como ele sentiu desde muito cedo Nova Iorque como o seu sítio. Charlie, a partir sobretudo de Horses, o álbum de 1975, de Patti Smith. E Garth através dos livros. Eram o seu modo de se relacionar com o mundo. Filho único de um casal de professores, tinha amizades por correspondência, com rapazes e raparigas com quem discutia romances e poesia e com os quais foi aprendendo que a ficção era criada por pessoas como eles. “Quando percebi que eu podia criar universos paralelos como aqueles para onde me refugiava foi inesquecível. Eu, que sempre me achara estranho, tinha encontrado um sentido, seria escritor, poeta. E em Nova Iorque.”

A cidade era o seu ideal. Leu os poetas da geração Beat, leu Jack Kerouac, Allen Ginsberg; aos 14 anos dizia-se o beatnik de Greenville, a cidade onde vivia. E leu a poesia de quem estava à frente do punk, Patti Smith, Lou Reed. “Eles escreviam a cantavam Nova Iorque. Eu amava a ideia de cidade, a junção de muitas pessoas diferentes, e Nova Iorque era a cidade por excelência”, sublinha. Na adolescência, aproximou-se da cena punk que ganhava relevo em Washighton DC, a cidade mais perto e Greenville. “As viagens começaram a estender a Nova Iorque”, conta. Dá agora um gole no cappuccino que segura entre as mãos. “A primeira vez que aqui cheguei foi há 19 anos, feitos há uma semana”, sorri. Entrou por Nova Jérsia, vindo de Washington DC, e a sensação ao ver silhueta a partir do Turnpike, a auto-estrada que atravessa o rio Hudson vindo de Oeste, está descrita no livro e atribuída a uma personagem, Mercer, o jovem escritor de 24 anos que chega a Nova Iorque, vindo do Sul, com a vontade de escrever o Grande Romance Americano: “… ali estava ela, a cidade de Nova Iorque, brotando das monótonas milhas de água como um ramo de lírios de aço”, lê-se. “Ao ver o skyline e saber que estava quase lá, pensei que não queria estar outro lugar. As pessoas queriam estar na cidade e fazer coisas. Eu também”, diz por sua ver Garth Risk Hallberg. 

Voltaria todos os anos desde então. Como um visitante ao seu lugar do futuro, um estudante endividado como quase todos os universitários americanos que nunca saberão se vão ser capazes de pagar essa dívida, e pouco depois como profissional precário. Garth conta a sua vida antes do livro como se tudo tivesse sido um caminho até ele. Aquele dia no Verão de 2001, num escritório em Washington DC, foi apenas mais um passo para essa inevitabilidade. “Toda a gente sabe onde estava nesse dia e o meu relato não tem muito a acrescentar à historia colectiva, mas mudou a minha. Eu tinha arranjado um emprego bem pago a escrever artigos jornalísticos para um site na Internet. Nessa manhã recebo um mail do meu editor: ‘Viste o que está a acontecer em Nova Iorque?’ E mandou a imagem de um avião a bater conta um edifício.” Garth entra em pormenores, recupera a sensação, luto e a incerteza, “um pesadelo” que não se sabia como iria acabar nem quando. “O lugar com o qual sonhara e todos os valores em que acreditava estava a ruir e os sobreviventes pareciam compor uma comunidade muito frágil. Tudo parecia terrível e também tudo parecia possível. O meu mundo estava a ser abalado. Em DC tudo se tornou muito político muito rapidamente. O humor era péssimo, toda a gente estava zangada. Em Nova Iorque era mais o sentimento de um baile depois do funeral, as pessoas olhavam umas para as outras e partilhavam uma experiência de perda. Está-se apenas feliz por estar ali. Vim ver. Eu estava apenas a observar, a aprender não sei bem o quê, qualquer coisa sobre a vida. Em 2003 esse sentimento começou a deixar de se sentir, porque não se pode viver para sempre dessa forma.”

Mas foi em 2003, em mais uma viagem de autocarro para Nova Iorque, que surgiu a ideia de Cidade em Chamas. A imagem da silhueta da cidade à entrada do Turnpike evidenciava uma ausência: faltavam as torres. Isso assumiu um significado novo sob efeito de uma canção improvável que tocou no iPod de Garh, Miami, 2017, de Billy Joel. “Era a primeira vez que a ouvia, estava ali como outras, para ouvir um dia. Billy Joel não era um dos meus músicos”, conta. Escrita em 1976, a canção narra a cidade de Nova Iorque a partir do futuro. Alguém regressa de outro sítio — Miami — e de outro tempo — 2017 — para recuperar um cenário de destruição e loucura, “mas também de energia e o tal sentido de possibilidade”, nota. “Imaginei que o narrador da canção estaria de volta à Nova Iorque dos anos 70, numa busca do que foi perdido.” Quando saiu do autocarro, em vez de se encontrar com um amigo, como estava previsto, Garth sentou-se em Union Square e escreveu tudo o que a cabeça lhe ditava. “Um universo de relações estabeleceu-se no meu cérebro, um corpo que começou a ressoar. Este é o livro. Todas as questões se materializaram na cidade. Seriam 800 ou 900 páginas ou mil, muitas personagens…” Hallberg fala de uma visão composta por imagens, ideias, sons, acontecimentos, um enredo, personagens, tudo, como única substância, speed of life, concretiza. Escreveu a cena e quando chegou ao fim assustou-se. “Eu tinha 24 anos e não vivera para escrever aquilo. Era um compromisso gigantesco. Iria arruinar aquilo se continuasse, mas sabia que teria de o escrever. Fechei o bloco e decidi que o iria guardar por uns dez anos. Talvez um dia voltasse aquilo.” Teria algo dessa decisão a ver com o que Mercer descreve no livro como “a sua incapacidade para compreender a complexidade da vida”? Acho que sim”, responde Risk Hallberg.

Não demorou dez anos. Mudou-se com a mulher para Nova Iorque em 2006, e em 2007 começou a sentar-se todas madrugadas a escrever. Em 2013 o manuscrito tinha mais de mil páginas. “Voltei a ele depois de uma conversa com um amigo que trabalhava na bolsa. Alertava-me para a crise que aí vinha. Acho que foi uma reacção. Voltava a fazer sentido.” E a dimensão que lhe deu não era alheia a isso. Era, diz, “um modo de reagir também à aceleração”, à voragem. “Sempre gostei da ideia de contínuo, de demora, de lenta fruição que associei aos romances longos, os vitorianos e os de Dickens”, justifica. Não falou do projecto, “achava-o impublicável”, até que contou a um amigo que gostou da ideia e ele a levou a um editor. 

Foi a história que se conhece. O romance saiu depois do esboço trabalhado com Diana Miller, editora da Alfred A. Knopf. É um romance narrado na terceira pessoa. Isso permite recuperar alguns dos pressupostos narrativos do Novo Jornalismo e de Truman Capote — um dos temas do livro —, mas reclamando contágios com o o pós-modernismo de autores como DeLillo ou Foster Wallace. “É uma voz modernista. Este livro é sobre tensões dialéticas, não há respostas certas. Todas as personagens imaginam um ponto fixo a partir do qual se pode olhar o mundo e através dele chegar a um sentido. Através da religião, da arte, da política. Estou interessado na subjectividade e na objectividade, e na ideia de que a objectividade, cientificamente falando, é uma ficção completa. Quero que essa voz explore a totalidade destas nuances. A terceira pessoa permitiu-me encontrar um rumo”, continua, e acrescenta: “Sigo a convicção de DeLillo e de Wallace de que o grande romance pode continuar a dizer-nos algo sobre o modo como vivemos, mas gosto da ideia de que há certas tradições que não é preciso abandonar para fazer isso. Tento perseguir um certo sentido de verdade, ou de representar o mundo como o de George Elliot, Tolstoi ou Dickens o fizeram.”

Ouve-se uma campainha ao fundo e vozes de crianças. Garth pede desculpa, levanta-se, acena ao longe. O tempo da conversa chega ao fim sem que se fala do que se vai escrevendo sobre Cidade em Chamas. Diz apenas que não lê críticas. Na sua tentativa de criar o isolamento de que precisa, o computador em que escreve não tem browser e a pesquisa é feita fora do momento de escrita. Também não está em nenhuma rede social e usa um telemóvel sem acesso à Internet. Há os phones ligados ao iPod, como os que imagina que Pessoa teria. Assume a música como guia criativo, quase sempre ligada ao acto de caminhar, andar de bicicleta, viajar. E conta o modo como ocorrer a percepção de som, palavras e imagem, essa espécie de sinestesia que o ajudou na criação deste livro: “Se ouço A Perfect Day, de Lou Reed, vejo um dia de fim de Outubro no Central Park, às quatro ou cinco da tarde, quando a luz projecta sombras em tudo. 

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