Downton Abbey "não é de direita nem é de esquerda", nem "conservadora", e está a chegar ao fim
A saga dos Crawleys e de Downton entra esta terça-feira na recta final em Portugal. Em hora de balanço, autor, produtor e actores reconhecem que foi um sucesso inesperado e rejeitam que se lhe cole o rótulo de “conservadora”.
Há um sentido de fim nesta nova temporada de Downton Abbey e não é só porque sabemos que é a última. É do fim de uma época que se trata. Do fim de um mundo, mesmo que haja quem insista em contrariá-lo. Não é, por isso, de estranhar que no episódio que esta terça-feira estreia em Portugal (FoxLife, 22h20), e que inclui discussões à volta da fusão de dois hospitais, considerações sobre a ascensão da classe média e o leilão do recheio de uma grande propriedade no campo, se ouça o conde de Grantham dizer a Carson, o mordomo, qualquer coisa como: “Se pudesse parar a história parava...Mas nem tu nem eu podemos parar o tempo.”
Estreada em Outubro de 2010, esta produção que é esta terça-feira exibida em mais de 100 países, está já na recta final (no Reino Unido o último episódio irá para o ar no dia de Natal) e, para muitos, mudou a relação do mercado americano com a ficção britânica. Foi já a pensar num balanço que dezenas de jornalistas assistiram em Agosto à antestreia londrina do primeiro episódio desta sexta temporada, com o autor e o produtor executivo da série sentados na plateia e grande parte do elenco numa sala ao lado.
Aqui chegados – e depois de sete anos de trabalho, cinco deles com os actores - Gareth Neame, o produtor executivo, e Julian Fellowes, o autor que com Downton Abbey regressou à ficção numa época que já lhe valera um Óscar pelo argumento de Gosford Park (2001), não têm dúvidas de que está na hora de pôr um ponto final nesta história – ou histórias – que tem por centro uma grande propriedade agrícola da aristocracia no começo do século XX e as relações que se estabelecem entre a família dos donos, os Crawleys, e os seus empregados, uma legião de criadas de quarto, motoristas e camareiros, liderada por um mordomo reaccionário. “O ideal é saíres da festa quando toda a gente ainda tem pena que te vás embora”, diz Fellowes, 66 anos, o actor, escritor e membro da Câmara dos Lordes que, desde 2011, responde também pelo título de barão de West Stafford.
Sem revelar quaisquer pormenores sobre o destino das personagens nem da casa à volta da qual tudo gravita - Downton é, na realidade, o Castelo de Highclere, a 50 minutos de comboio de Londres -, Neame e Fellowes admitem que nunca esperaram que a série durasse tanto e que fosse um sucesso global de audiências. É feita na melhor tradição britânica, com cenários sumptuosos, um guarda-roupa primoroso e uma grande atenção em todos os detalhes de produção, mas ao contrário das que nascem de romances, cujo fim já é conhecido, Downton Abbey está toda nas mãos - e na cabeça - do seu autor.
Mas, para Fellowes, o segredo do sucesso da série não está na qualidade da sua produção, está na densidade da intriga, capaz de criar uma teia de histórias em que as audiências se envolvem. Os ingredientes do costume, garante o autor, estão todos lá, mas aqui e ali a linha narrativa é brindada com um “choque” – uma morte, uma violação, um homicídio – que vem lembrar que Downton não é apenas uma comédia de costumes.
“Com as tradicionais adaptações televisivas de clássicos de Jane Austen ou Charles Dickens o espectador ficava preso a uma narrativa. Agora, as narrativas são múltiplas, as histórias partem em muitas direcções”, explica Gareth Neame, o homem que desafiou Fellowes a criar os Crawleys. Na resposta ao repto do produtor executivo, o autor pegou numa ideia para aquilo que poderia vir a ser um drama tradicional e, segundo explicou aos jornalistas no Verão, deu-lhe uma estrutura mais dinâmica, próxima da ficção norte-americana para televisão. “A América reinventou a narrativa televisiva nos anos 80 e, desde aí, continuou a acrescentar novidade. A estrutura que procurámos é uma espécie de cruzamento entre Serviço de Urgência, Mad Men e Os Homens do Presidente. Há sempre coisas a acontecer, as histórias multiplicam-se, apoiadas em personagens que todos querem seguir.”
Muitas delas, como a criada de quarto de Lady Mary (Michelle Dockery), a aparentemente frágil Anna Bates (Joanne Frogatt), surpreenderam a dupla autor/produtor. “Sabíamos que Mary seria sempre uma protagonista, uma das linhas de força de Downton, mas Anna foi-se revelando a partir da prisão do marido [John Bates é acusado de matar a primeira mulher]. Ela passa a ser o centro de uma das linhas narrativas quando é violada – não é apenas a criada confidente e leal, ganha um lugar de destaque, impõe a discussão de uma série de temas”, explica o autor.
Nem de esquerda, nem de direita
No seu blazer escuro impecável e com uma gravata colorida, rodeado de jornalistas que o bombardeiam com perguntas, Fellowes está no seu ambiente e isso nota-se. Habituado a ser o centro das atenções, distribui comentários sarcásticos e responde muitas vezes aos desafios de forma a desconcertar quem os lançou. A auto-ironia, mesmo quando se trata de assumir que não ouve bem e que o melhor mesmo é que Neame funcione como seu “intérprete”, é algo que lhe é natural: “Como sou surdo, toda a gente sabe, e a sua pergunta não me interessa, vou fingir que não ouvi está bem?”.
A sexta temporada começa em 1925 – passaram 13 anos desde a de estreia – e produtor e autor prometem algumas situações inesperadas. O que não os surpreenderá, certamente, são as críticas que, desde 2012 os acompanham a par de um inequívoco sucesso de públicos no Reino Unido e noutros países, sobretudo nos Estados Unidos, onde é exibida pelo canal público PBS e onde as audiências chegaram aos quatro milhões logo na segunda temporada, ultrapassando em popularidade produções domésticas (e da televisão por subscrição) como Mad Men e A Guerra dos Tronos.
Apesar da aposta no rigor histórico, há quem lhe aponte falhas e, sobretudo, quem, como Viv Groskop, colunista do jornal The Guardian, a acuse de reduzir a sociedade britânica a um punhado de estereótipos para exportação. Também o historiador Simon Schama, professor na Universidade de Columbia, apontou a mira aos clichés de Downton e, embora reconhecesse que é um produto bem feito, capaz de agradar sobretudo nos Estados Unidos (o artigo era para a revista norte-americana Newsweek), fez questão de dizer que gostaria que fosse mais dura, mais perto da história, com uma Sibyl sufragista a sério e Matthew (marido de Lady Mary e herdeiro de Downton e do título de conde de Grantham) entre os 750 mil que morreram na Grande Guerra. Seria demasiado deprimente?, pergunta: “Talvez, mas é suposto a história ser deprimente e não um passeio pelo passado”, escreveu, admitindo que, tendo crescido nos anos 1950 e 60, desenvolveu aquilo a que chama uma “raiva jacobina pela arrogância decrépita dos aristocratazinhos”.
Fellowes rejeita, é claro, este olhar sobre a série, contestando os rótulos de “conservadora” que lhe vão sendo colados aqui e ali. “Downton não é de direita nem é de esquerda. Não é de coisa nenhuma. Não é por ter pessoas bem vestidas a interagir com os seus criados que é obrigatoriamente uma série conservadora. Mostramos os privilégios e as injustiças desse mundo e não temos uma agenda política – o que queremos é fazer boa televisão”, diz ao PÚBLICO, admitindo que a leitura que se faz deste drama de época depende sempre do lugar de onde cada um parte. “Para perceber Downton é preciso levar o mundo britânico para casa, perceber que relação temos com a história, que tradição é esta. Se me dizem que Downton não vende a Cool Britannia de que tanto gostava o Sr. [Tony] Blair, pois terei de concordar. E de acrescentar: ‘Ainda bem.’”
E para mostrar que há nas narrativas de Downton Abbey muitos temas e personagens que fogem a uma abordagem convencional lembra Thomas Barrow (Rob-James Collier), o segundo mordomo da casa, homossexual numa Inglaterra em que a homossexualidade é crime; a relação de Lady Rose (Lily James) com um cantor negro; a violação de Anna Bates; e, sobretudo, Charles Carson, o mordomo intransigentemente agarrado a todas as tradições por oposição a um patrão bem mais liberal, que vive entre uma mãe rígida e conservadora – a tantas vezes desconcertante condessa-viúva, interpretada por Maggie Smith, também ela dama do império britânico – e a sua mulher progressista, Cora, uma norte-americana com muito dinheiro. Pelo meio há até a filha mais nova dos Crawleys, Sybil (Jessica Brown Findlay), a casar com o motorista da família, Tom Branson (Allen Leech), “um liberal que já foi esquerda-esquerda”, e a do meio, Edith (Laura Carmichael), a ser mãe solteira e editora de um jornal.
Gareth Neame garante que a originalidade de Downton se baseia sobretudo no argumento e na relação, tantas vezes classificada como “irreal” e “romantizada” pelos detractores da série, entre a família e os seus empregados, que nesta última temporada são cada vez menos porque, como lembra o conde de Grantham, é preciso cortar nas despesas da propriedade.
“A série tem personagens conservadoras, é verdade, como Carson e a condessa-mãe, mas mesmo essas são capazes de surpreender”, diz o produtor executivo. E se é certo que há quem resista à mudança, mesmo que ela se apresente sob a forma de um gramofone, de um secador-de cabelo ou de um frigorífico, também é certo que há outras que são “absolutamente progressistas”. Isto porque, sublinha Fellowes, liberais há em toda a parte e em todos os tempos. “É verdade que consigo ser um snob, embora hoje seja muito menos do que já fui, mas isso não é o que me define. Todos os rótulos são perigosos – muitos críticos partem do princípio de que eu, como sou um tory [membro do partido conservador], não posso ter imaginação. Porquê? As pessoas de direita não têm imaginação?” Em Downton, como na vida real, o que é importante mistura-se com o que é trivial. “Não é porque agora falamos da ameaça da Rússia ou discutimos as posições do Sr. [David] Cameron sobre a nossa permanência na União Europeia que daqui a cinco minutos não posso estar a comentar a camisa nova que alguém traz. Entre os Crawleys passa-se o mesmo – a vida no começo do século também não era só feita de coisas sérias.”
Isto é uma ficção
Uma das “coisas sérias” que, para muitos, fica afastada deste drama, é a luta de classes, a outra é relativa às duras condições em que vivia todo o staff de uma casa como Downton no início do século XX.
“As pessoas têm de se lembrar que isto é ficção televisiva, não é documentário. Há toda uma liberdade para criar”, diz Michelle Dockery (Lady Mary), elogiando Fellowes por lhe ter oferecido a possibilidade de interpretar uma mulher complexa, cheia de contradições. “Percebo que Downton possa irritar alguns críticos e comentadores porque ela vende uma certa nostalgia de um passado que os incomoda, mas que existiu. E se o sucesso da série parece mostrar que muita gente ainda gosta de olhar para ele, isso diz muito mais sobre o presente do que sobre esse passado.”
Hugh Boneville também não aceita que se possa chamar “conservadora” a uma ficção televisiva, muito menos quando se trata de uma que, como Downton Abbey, tem uma casa por protagonista e vive num tempo atravessado pela mudança, em que toda a tradição está a ser posta em causa. “Não é porque humaniza os aristocratas que a série deixa de ter um olhar crítico sobre aquele mundo e isso vai ver-se bem nesta última temporada”, diz Elizabeth McGovern, a condessa de Grantham.
Penelope Wilton – Isobel Crawley, uma mulher de classe média, viúva de um médico e mãe de Matthew (Dan Stevens) – tem outra opinião. Personagem progressista no ecrã, com um profundo sentido de justiça, não tem dúvidas de que Downton é um produto conservador. “Foi Julian [Fellowes] quem a escreveu – não podia ser de outra maneira. Este é um meio que ele conhece bem. O seu meio”, defende a actriz. “Agora, uma série conservadora pode ser também muitas outras coisas, como uma boa história, baseada em personagens extraordinárias que saltam do guião como pessoas que podíamos ter conhecido antes ou depois da Grande Guerra.”
São também as personagens – e o que o elenco fez com elas – que mais interessam ao intransigente Carson. “Todas estas figuras são muito credíveis porque Julian e nós as fizemos assim, desafiando muitas vezes os planos que ele tinha para as personagens”, diz Jim Carter na sua voz grave. Quanto à luta de classes “branqueada” de que tantos falam, e que já mereceu até um artigo na prestigiada revista de relações internacionais Foreign Affairs, o actor diz apenas: “Ficção é ficção e, quando ela é muito boa, as pessoas ficam zangadas porque tudo aquilo, afinal, podia não ser bem assim. Downton Abbey não é a verdade, é só boa – muito boa – televisão.”
E deve-se em grande parte a Fellowes, o homem que escreveu cada episódio das seis temporadas, dispensando as equipas de argumentistas habituais da maior parte das séries. O homem que diz haver hoje menos mobilidade social do que havia na Inglaterra dos anos 1960 e que reconhece, sem esforço, que há muito do seu mundo neste argumento: “É claro que esta série há-de dizer coisas sobre mim, sobre quem eu sou, com o meu background privilegiado, as boas escolas, as boas companhias, os bons livros. Até sobre a minha tia-avó Isie, a quem fui buscar muito de Violet, que não fazia ideia do que era um fim-de-semana.”
Downton Abbey, defende, não foi escrita para mudar a vida das pessoas, mas se as divertir, se as puser a conversar, até sobre política, terá valido a pena. Pelo menos uma vida influenciou, a de Rob James Collier, o complexo Thomas, personagem que faz uma das maiores viagens emocionais da série. Depois de anos mergulhado no arranque do século XX, de tabuleiro na mão e a abrir portas, Downton já lhe alterou alguns hábitos domésticos. Agora o chá que se bebe na sua casa já não vem em saquetas. “Só folhas”, diz, “um coador cheio de folhinhas”.
O PÚBLICO viajou a convite da Fox