Rupturas e desconhecido
É de admitir que uma futura revisão constitucional venha a consagrar profundas mudanças no sistema político.
Quem olha para o que se passa na política portuguesa desde as eleições de 4 de Outubro pode ser levado num primeiro momento de análise a pensar que tudo se deve a um ataque de ganância de poder de António Costa que, a todo o custo, quer ser primeiro-ministro. Há mesmo quem argumente que há um comportamento padrão e que Costa está a fazer a Passos Coelho o que já fez a António José Seguro, se bem que com a diferença de que então Costa ganhou as primárias e agora perdeu as eleições. Mas os momentos inéditos que se vivem vão para além de uma mera birra pessoal de ambição de poder e de alguém querer ser primeiro-ministro a qualquer custo. E se Costa pode avançar por caminhos desconhecidos na política portuguesa, isso deve-se ao facto de que estão em curso mudanças profundas no sistema político e até mudanças de regime.
A mudança não é de hoje, mas a evolução está exposta com a polarização em dois campos opostos do sistema político-partidário. Durante quatro décadas vigorou em Portugal um sistema político organizado em torno dos consensos europeus, da integração na União Europeia e no euro. Os partidos do consenso europeu, PS e PSD, começaram por constituir o que se convencionou chamar “bloco central”, evoluindo depois para “arco da governação”, com a adesão do CDS aos ideais europeus no final do século XX. O desgaste do sistema de consensos europeus ficou explícito com os governos de José Sócrates, até porque o desenvolvimento económico e social permitido pelo projecto europeu começou então a derrapar.
Para fazer a diferenciação que lhe permitisse ganhar eleições, em 2010, Passos Coelho assumiu a liderança do PSD com um programa político que apresentou previamente no livro Mudar e que se centralizava numa refundação do regime que passava por uma proposta de revisão constitucional. Puxando o PSD à direita e aderindo a teses de governação neoliberais, Passos é primeiro-ministro com um atitude de clara radicalização política, bem longe do tom cordato e conciliador que foi adquirindo quando se aproximou de novo de eleições. A radicalização que Costa hoje faz mais não é do que o contraponto dessa anterior radicalização de Passos, que foi agravada pelo facto de, entretanto, o atoleiro orçamental em que o país estava afundado no final dos governos Sócrates ter levado a uma intervenção liderada pela Comissão Europeia. A intervenção dos credores acabou por ter como efeito social a erosão da classe média, precisamente o eleitorado que suportava o consenso do “arco da governação” e oferecia maiorias absolutas.
Assim como Passos aproximou o PSD de domínios ideológicos e políticos que o PSD nunca experimentara, o PS prepara-se para trilhar um caminho desconhecido, aparentemente sem ver outra alternativa. O centro implodiu. Se o PS se aliar ao PSD e ao CDS e reconstruir o “arco da governação”, será muito provavelmente engolido ideológica e eleitoralmente pelo PSD de um lado e o BE do outro. A defesa de uma política alternativa à de Passos durante os anos da troika conduziu o PS de Costa para a esquerda. Tendo como pano de fundo a indefinição do que é hoje a social-democracia e o socialismo democrático quer em termos ideológicos, quer programáticos, o líder do PS percebeu que o seu caminho teria de ser feito longe do PSD e em demarcação da direita. E mostrou-o logo quando se candidatou contra Seguro. Nos vários documentos programáticos que foi apresentando lá estava a estratégia de obter uma maioria absoluta para abrir o PS e trazer o PCP e o BE para a esfera da governação. Esta opção estratégica é explícita desde as primárias contra Seguro, apesar de o projecto de Costa conter contradições, como a que existe em ter uma estratégia de diálogo à esquerda e um programa que a nível de proposta económica era o mais à direita do PS.
Nada garante que o caminho agora iniciado pelo PS levará a bom porto. São imensas e potencialmente explosivas as contradições entre o que é a social-democracia e o projecto federalista europeu original do PS e o que é a proposta de construção de uma sociedade socialista defendida pelo PCP ou o projecto radical – ainda que nalguns pontos próximos da social-democracia – que o BE preconiza. Mas uma coisa parece clara. É impossível o regresso ao passado do consenso europeu que caracterizou o regime político português durante quatro décadas. Cavaco percebeu isso, daí querer evitar a todo o custo que o PS prossiga o caminho do qual já não terá volta.
Mesmo sendo impossível de prever o futuro do sistema político, é de admitir que o que sobreviver quer do PSD, quer do PS será diferente do que foi o consenso do “bloco central”. Ainda que os actuais líderes se mantenham à frente dos actuais partidos, nada será como dantes. E é de admitir que uma futura revisão constitucional venha a consagrar profundas mudanças no sistema político. Neste devir da política portuguesa há um momento que se torna essencial, o da eleição do próximo Presidente da República.