Boogarins: "viver virou sonhar"
A Goiânia dos Boogarins é agora ampla, vastíssima. Viajaram muito e acolhem mais mundo nas suas canções, mas é o sonho que continua a comandar as canções de Manual, o segundo álbum. O guitarrista e vocalista Dinho fala do que mudou na vida do grupo que passa por Portugal em Novembro
Há dois anos, pouco depois de termos tido a sorte de encontrar, maravilhas da tecnologia moderna, essa canção em estado de graça chamada Lucifernandis, ligámos para Goiânia, estado de Goiás, Brasil, para saber de onde tinha vindo aquela brisa reconfortante, canção sonho que fazia companhia a outras canções sonho, as de As Plantas Que Curam, primeiro álbum dos Boogarins. Logo a início, Benke Ferraz, que fundara a banda com Fernando Almeida, Dinho como nome de guerra, dir-nos-ia as seguintes palavras: “Quando a gente começou a gravar, não era com o intuito de ser banda”. Reuniam ideias e canções na casa de Benke, gravavam directamente para o computador e depois, enquanto Dinho apanhava vários autocarros e viajava outras tantas horas para regressar a casa, o som ficava a fermentar enquanto o duo decidia o que iria sair dali.
Dois anos depois, muito mudou. Desta vez é Dinho, guitarrista e vocalista, que nos atende o telefone do outro lado do Atlântico. Não está em Goiânia, mas em São Paulo, paragem para mais um concertos dos muitos, em ritmo semanal, que dão no seu país. Após a edição de As Plantas Que Curam, andaram seis meses a percorrer os Estados Unidos e a Europa em digressão e viram as suas criações de um psicadelismo múltiplo e fértil ganhar novos ouvintes e um interesse crescente – são banda rock e há ali sinais do Brasil musical que ficou atrás de si, mas também Beatles, Syd Barrett, Kinks, Tame Impala ou Real Estate. Quando, no final do ano, foram destacados pelo mainstream brasileiro (a Rolling Stone Brasil ou a Globo TV) enquanto “Melhor Novo Artista”, era certo que a banda que, seis meses antes, não sabia se o era, se transformara.
Com secção rítmica já integrada (o baixista Raphael Vaz e o baterista Hans Castro, entretanto substituído por Ynaiã Benthroldo), vimo-los passar pelo festival Milhões de Festa, em Barcelos, durante a sua primeira digressão europeia. Vimos, como escrevemos então na reportagem dedicada ao festival, músicos “tão hábeis na gentileza psicadélica quase sussurrada, quanto no abandono às maravilhas do rock’n’roll sem rédeas”. Acrescentámos: “Os Boogarins querem o infinito. Nós vamos com eles nessa demanda. Todos saem a ganhar”.
Manual é o título abreviado do segundo álbum dos Boogarins. Título completo, Manual – ou Guia Livre de Dissolução dos Sonhos. É o disco de uma banda que, como testemunhámos no concerto português supracitado, e como testemunharemos quando cá regressar em Novembro (dia 14 no Musicbox, em Lisboa; dia 15 no Maus Hábitos, no Porto), “retira um prazer evidente das longas digressões cósmicas, qual banda em modo jam flutuando a não sabemos quantos metros de altitude”.
Gravado em Espanha, em Gijon, aprimorado em casa, em Goiânia, Manual é reflexo daquela experiência de palco. “A gente tocou muito ao vivo e trouxe muito do que estava fazendo no palco, conseguiu mexer muito com dinâmicas, exactamente o que aprendemos nos shows”, explica Dinho. O novo álbum nasce da reunião dessa liberdade instrumental, deixando que as guitarras dialoguem livremente, que as vozes se dupliquem, naquela doçura de sorriso aberto que é tão deles, com a vontade de experimentar aquilo que um estúdio tem para oferecer em termos de manipulação sonora. “É um passo dentro de muitos passos que a gente quer dar em várias direcções. Porque dá para fazer muito mais”. Isto que é o óptimo segundo álbum dos Boogarins, é, portanto, apenas o início de uma história que Dinho deseja longa.
Praia, bares, moças bonitas: estava tudo certo
O título completo do álbum é, recapitulemos, Manual – ou Guia Livre de Dissolução dos Sonhos, o que pode parecer um contra-senso. Falamos, afinal, uma banda que parece planar sobre o mundo, oferecendo-nos banda-sonora perfeita para sobrevoar as suas misérias – sonhando, claro, ou não fossem eles que cantam, em Tempo, “vou-me libertar do tempo dos homens / só vou te encontrar / enquanto eles dormem”. A leitura errada, porém, é nossa.
O segredo está noutra canção, Falsa folha de rosto: “viver virou sonhar”, cantam eles nela. Está no que diz Dinho. “[O título do álbum] vem de pensar no prazer do sonho e de passar para o pensamento consciente, e vê-lo diluído até se misturarem os dois num pensamento mais inteiro. Algumas músicas são muito nessa ideia de desconstruir, de mudar e criar de novo”. Ecoam as primeiras palavras que ouvimos em Manual, as de Avalanche, o primeiro single. “A maior demonstração de propagação do ser é o eco / com ele, meu grito tem força para derrubar todos os prédios / que não me deixam ver o sol” – “é mais uma coisa para derrubar o que é sólido, o que não muda, o que enterra”, explica Dinho.
O novo álbum dos Boogarins foi gravado em grande parte em Gijon, nos estúdios de Jorge Explosion, dos Dr Explosion, veteranos do garage-rock espanhol. Regime descontraído. “A cidade tem uma praia bacana”, recorda Dinho. “Estava um pouco frio, mas a gente saiu sozinho para ir curtir a praia. E a casa do Jorge tinha vários discos de bandas maravilhosas dos anos 1960. Às vezes a gente dava umas voltas de bicicleta. Os discos, a prainha, tanto barzinho, umas moças bonitas. Estava tudo certo”. Ouvimos o disco, que seria finalizado no estúdio caseiro de Benke em Goiânia, e concluímos que sim, estava tudo certo.
Sobressai, principalmente, e para além da maior limpidez sonora, da forma como a visão das escotilhas da nave dos momentos space-rock se tornam mais nítidas e luminosas (conferir, por exemplo, a segunda metade de 6000 dias), uma respiração mais consistente e uma complexificação da composição que não se intromete na fluidez da música. Em Avalanche, dançamos ao ritmo quente do bombo que mantém a celebração em andamento: “algumas músicas têm como que um mantra, uma repetição que incita um estado de espírito, uma repetição que sugere um certo ambiente”. E canções como Tempo e Mário de Andrade – Selvagem (referência bem humorada ao poeta, escritor modernista e musicólogo brasileiro) parecem conter duas ou mais dentro, mas há uma naturalidade na forma como as vozes nos encaminham no seu interior e na forma como são cosidas as diferentes secções, que impedem que desviemos a atenção do que interessa, ou seja, da forma como o som nos envolve (fruição total), para o acessório, ou seja, a análise das estruturas que sustentam as canções (exercício entediante neste contexto).
Acima de tudo, e apesar de um primeiro momento como foi As Plantas Que Curam, livre de quaisquer expectativas, puro nesse sentido, ser irrepetível, Manual surge como um álbum mais rico, que habita mais mundo – ouvimos Cuerdo e encontramo-los no mesmo espaço mental etéreo dos Real Estate, ouvimos 6000 dias e ansiamos por ver uma digressão conjunta dos Boogarins com os australianos Pond. Talvez por isso Dinho e restante banda, quando, perante a imprensa estrangeira, se vêem a responder à enésima pergunta sobre a Tropicália de Mutantes, Caetano Veloso, Tom Zé, Gilberto Gil ou Novos Baianos, tentem mostrar que há muito mais que esses pais fundadores na música que fazem. “É engraçado porque existe essa associação directa com a Tropicália, mas depois o pessoal não ouviu o mangue-beat de Pernambuco, por exemplo, não ouviu muitas coisas que aconteceram aqui e que vieram antes de nós. A gente meio que tem que explicar o que está fazendo”. E, enquanto explicam, divulgam nomes (os Carne Doce, os Supercordas, Ava Rocha) de músicos amigos que admiram e que contribuem para a “muita coisa que está acontecendo” neste momento em Goiânia e no resto do Brasil.
Desde a edição de As Plantas Que Curam, os Boogarins partiram mundo fora e transformaram-se definitivamente numa banda. Manual é resultado desse processo. Os Boogarins são, agora, mais. A viagem acabou de começar e tudo corre maravilha. Quando o cansaço chega, há sempre um porto seguro. “Parece que quando a gente volta para casa, fica tudo mais tranquilo, mais normal. [Estar na banda] É um trabalho, mas eu lembro que qualquer outro trabalho que a gente já teve foi pior que esse”.
Sendo que o nosso trabalho seria também mais pobre antes de nos chegarem os Boogarins, porque não teríamos Lucifernandis, Despreocupar, Falsa folha de rosto ou Avalanche, saímos todos a ganhar. O Manual é para ler as vezes que foram necessárias. Bacana mesmo.