A contradição impossível

Com duas exposições em Lisboa, a obra de Carlos Nogueira confirma-se como uma das mais singulares da contemporaneidade

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A obra de Carlos Nogueira parece adequar-se menos à tradição racional do Ocidente e mais à forma oriental de encarar a criação, procurando nos opostos um significado para o mundo

Carlos Nogueira não costuma expor em galerias. As razões serão decerto variadas, mas há uma que é evidente: o seu trabalho escultórico imbrica-se na instalação de forma evidente, criando diálogos com o espaço arquitectónico a que nem sempre as dimensões obrigatoriamente restritas de uma galeria comercial podem responder. No Centro de Arte Moderna, por exemplo, onde apresentou uma antológica em 2012, a escala monumental da grande nave da instituição respondia exemplarmente a essa vocação arquitectónica que as disciplinas da escultura e do desenho (áreas de expressão artística que Nogueira elegeu primordialmente) nem sempre possuem.

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Nem o tempo passa, a sua primeira exposição na Galeria 3+1, surge assim como uma surpresa. Primeiro, porque o trabalho entre a escala da peça e a escala deste lugar particular — uma antiga loja pombalina estreita e comprida — obriga necessariamente à produção de obras de escala pequena ou média, pouco habituais na obra do escultor. Segundo, porque o modo como o artista resolveu essa questão, combinando-a além do mais com uma segunda exposição na Appleton Square, nos dá a oportunidade de observarmos as grandes questões que atravessam o seu pensar em diferentes locais, perpassadas pelas mesmas constantes: a imbricação entre um desenho que se torna invisibilidade sem nunca realmente desaparecer com uma escultura que parece renegar a matéria sólida que historicamente sempre a definiu em favor da ausência da gravidade.

No espaço da 3+1, tal como sucede na Appleton Square, encontramos peças feitas de materiais já há muito habituais na obra deste artista. O vidro, a madeira, o carvão, o metal, a parafina, a goma-laca, os diversos acrílicos e tintas brilhantes industriais concorrem para esse permanente ultrapassar dos limites físicos das coisas. A portada de uma janela antiga, por exemplo, encosta-se a uma parede entre vidros baços e foscos, de modo a adivinharmos que a janela já há muito deixou de constituir abertura para o mundo e resguardo contra os elementos para se tornar presença de vários materiais, todos eles dotados de propriedades físicas diferentes e opostas. O opaco e o transparente, o translúcido e mesmo a cor (da madeira, do vidro) desdobram-se em caixas miniaturais (casa comprida com cinco lugares, por exemplo) que recordam desenhos já com alguns anos feitos com cortantes de metal e tinta brilhante branca. Noutro lugar, é uma grelha aparentemente simples, coberta de carvão, que cria um desenho rigoroso e geométrico sobre o branco da parede. Contudo, bem no fundo, a simplicidade é isso mesmo, apenas aparente, já que a forma que se inscreve no fundo da parede desafia, tal como hoje em dia é habitual, todos os nossos conceitos relativos a cada disciplina artística.

Na Appleton Square, um espaço que arquitectonicamente tem a forma de dois quadrados sobrepostos, encontramos estas mesmas premissas e um “ar de família” entre as peças montadas no primeiro andar, uma por parede. Vidros, portadas de madeira, pequenas caixas já usadas, aqui recuperadas para uma percepção artística, e sobretudo, no andar inferior, peças novas onde esta qualidade fugidia, em desaparecimento, do desenho e da escultura — ou da escultura que também é desenho —, se acentua dramaticamente. Duas gaiolas de metal, por exemplo, estão iluminadas de tal forma que projectam sombras em leque na parede, incluídas aqui no desenho que o artista imaginou. Mais adiante, uma peça tem as suas arestas de tal forma delineadas a carvão que apenas reparamos nesta ingerência do traço manual através de um olhar mais atento. Ainda noutro local, há uma mínima distância entre obra e parede, ou entre obra e chão, que parece negar o peso. Dito de outra forma, que recusa a força inevitável da gravidade.

A obra de Carlos Nogueira parece adequar-se a leituras que pouco têm a ver com a nossa tradição ocidental e racional de encarar o mundo. Vejo-a sempre mais próxima de uma abordagem orientalizante da criação, a mesma que procura nas coisas e nos seus opostos um significado para o mundo. Ou então, o que talvez não seja contraditório — mas haverá possibilidade de contradição quando se fala da obra de Carlos Nogueira? —, da tentativa incessante de um Proust de aprisionar a memória do que passou, de a fixar numa chávena de chá onde se mergulha um bolinho, ou, o que vem a dar no mesmo, de a materializar na escrita infindável de uma procura. Os títulos escolhidos para as exposições, Nem o tempo passa e O peso das coisas. Leveza e claridade, talvez nos falem disso, ou do seu contrário, como sucede sempre na obra deste artista.

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