Mia Couto: “Quem é que não tem um pouco de realismo mágico?”
Em Mulheres de Cinza, I volume da trilogia As Areias do Imperador, Gungunhana ainda não é o protagonista. É mais uma presença ameaçadora que todos temem e ninguém viu. “Não quero fazer um romance histórico”, diz Mia Couto. Talvez esteja a tentar reinventar o género ao jeito africano.
Mia Couto está em Portugal a lançar Mulheres de Cinza, volume inaugural de uma anunciada trilogia centrada nos últimos anos do Estado de Gaza, o império que Ngungunyane - conhecido em Portugal como Gungunhana - liderou no sul de Moçambique no final do século XIX. Neste primeiro romance, o mítico chefe africano aprisionado por Mouzinho de Albuquerque, e desterrado nos Açores, é várias vezes referido, mas nunca aparece. O autor qui-lo mesmo assim, como presença fantasmagórica e ameaçadora, mas promete aos apreciadores de romances históricos mais convencionais que no próximo volume já terão o imperador em carne e osso e em discurso directo.
Num momento de acelerada consagração internacional - nos últimos anos venceu os prémios Camões e Neustadt, e está agora entre os finalistas do prémio de carreira Man Book International -, o romancista moçambicano impôs a si próprio aquele que é o mais ambicioso projecto ficcional de uma carreira que começou a tornar-se notada há já mais de 20 anos, com a publicação de Terra Sonâmbula. Num registo que surpreenderá os leitores mais fiéis pela ausência quase total das suas habituais invenções vocabulares - “quis desafiar-me a mim mesmo, deixar de ser classificado dessa forma” -, cruza neste livro o olhar de um sargento português com o de uma rapariga africana de 15 anos, Imani. Pelo futuro ficcional do sargento não responde, mas garante desde já que Imani “irá contar a história até ao fim”. Até porque se sente sempre “mais à vontade se as vozes que [lhe] ditam a história são femininas”, diz nesta conversa em que assume como dever pessoal, enquanto escritor, combater as dimensões mais retrógradas da sociedade moçambicana, da subalternização da mulher à homofobia.
Neste primeiro volume da trilogia As Areias do Imperador, Ngungunyane não é uma personagem, e o próprio Estado de Gaza é apenas visto de fora. Está a acercar-se cautelosamente do seu protagonista?
É verdade, mas no segundo volume ele vai aparecer. E vai ser uma figura central. Mas neste primeiro livro quis que ele fosse uma sombra, que surgisse como uma entidade fantasmagórica. Até porque não me interessa assim tanto contar a história de Ngungunyane, ela já foi contada de tantas maneiras. O verdadeiro personagem desta história é o tempo, num sentido plural, porque os passados são construções, são escritos e reescritos. Temos essa ideia de que o passado é uma coisa de uma só dimensão, e que corresponde à verdade, mas ele é construído com tanta ficção como a deste livro que estou a escrever. Ou quase tanta, já que essa narrativa tem uma parte verídica, mas também é feita para servir momentos históricos, para servir interesses. E normalmente é escrita pela mão dos vencedores.
E como é que se ficciona uma figura tão ficcionada pela própria historiografia como Gungunhana, para usar o errado nome pelo qual ficou conhecido em Portugal?
A questão coloca-se dos dois lados, porque o Mouzinho de Albuquerque também é, ele próprio, um grande personagem, um personagem literário. O que podia ser uma ajuda ou uma atrapalhação. Mas eu também não quero fazer um romance histórico. Desde a primeira página que estou a dizer ao leitor que a História tem importância, sim, mas como uma referência, e que ela não me conduz assim tanto. Escrevo em diálogo com essas várias versões e personagens.
Este romance entrelaça um relato mais factual, racionalizado, cronológico, que vai sendo exposto nas cartas - todas elas datadas - do sargento português, e um outro que lança sobre as mesmas circunstâncias um olhar mais poético, mais atento a sinais do que a acontecimentos públicos ou datas. Esse contraste entre o olhar do português e o dos chopes é também o contraste entre um romance histórico tal como o entende a tradição literária ocidental e aquilo que poderia ser um romance histórico genuinamente moçambicano?
Percebo a pergunta e acho que sim, ainda que essa não tenha sido uma intenção clara e deliberada desde o início. Mas sabia que tinha de sugerir que há caminhos diferentes. Um deles é o moçambicano, menos preocupado com o documento e a memória escrita, e o outro é o português, mais fundamentado na escrita. Mas também é preciso ver que não há um só registo moçambicano, há vários, porque também entre eles há vencidos e vencedores.
Insistindo um pouco na mesma ideia, como é que um autor moçambicano escreve um romance histórico sobre o Estado de Gaza quando os testemunhos escritos dos que participaram nos acontecimentos se resumem, no essencial, à versão dos colonizadores?
Fiz muitas entrevistas, foram horas e horas de infinitas conversas em Inhambane, onde esta história se passa. E a dado momento percebi que havia lá um interlocutor privilegiado, a quem dedico também este livro, Afonso Dambila.
Era alguém que funcionava como uma espécie de fiel depositário da tradição oral?
Eram os próprios chopes que me diziam que havia um homem mais velho que me podia ajudar, e eu pensei que fosse por esse mecanismo tradicional. Mas o Afonso Dambila, sendo alguém que congrega de facto essa legitimação tradicional - será de uma linhagem que tem esse legado histórico -, é também uma pessoa muito preparada de um ponto de vista académico. Investiga, conhece bem os dois lados, já publicou um livro. E é muito permissivo. Às vezes, perguntava-me: “Mas por que é que está tão preocupado em conhecer a verdade em todo o rigor? Você é escritor, está a escrever um romance,
Por que é que escolheu dois narradores - o sargento português e a jovem VaChopi - que são ambos, por razões diferentes, inimigos do Estado de Gaza, e nenhum que nos mostrasse o império de Gungunhana a partir de dentro?
De facto, todas essas vozes são de estranheza em relação ao império, à corte e a Ngungunyane. Mas, como já disse, o imperador vai ter voz própria num segundo momento, e veremos a razão desse império na sua perspectiva. E na de outra gente que ainda vai aparecer na história.
Não sei se o quer revelar, mas é difícil não nos perguntarmos se os dois protagonistas deste primeiro livro irão reaparecer no segundo?
O que posso dizer é que pelo menos esta mulher que conta a história a vai contar até ao fim.
Depois de toda a investigação que fez, que imagem tem hoje de Ngungunyane e do seu improvável percurso, de líder de um grande império a exilado numa pequena ilha distante, como um Napoleão africano desterrado na sua Santa Helena?
Acho que acabo por gostar mais dele agora do que gostava antes, porque olhando para aquela vida, encontro ali um sentido trágico. Fizeram dele o que nunca foi, atribuíram-lhe intenções que não eram as dele. Falamos hoje do Estado de Gaza, mas ele nunca chamou assim àquele seu território, nem lhe chamou império.
Era um chefe…
…Sim, era um chefe à maneira africana. Mesmo os seus soldados não eram um exército permanente. Tinha um pequeno núcleo de pessoas das quais se poderia dizer que eram militares, mas o resto eram camponeses que em determinadas alturas faziam aquele serviço. Temos a ideia geral de que o passado só existe por via dessas grandezas, que só existe nos reis, nos imperadores, nas guerras, mas o passado é feito de pequenas coisas, de pequenos nomes, e se calhar Ngungunyane, sendo realmente um homem de grande poder, tinha também o seu lado mais comum, mais humano, que não foi reconhecido nem por um lado nem pelo outro. De um lado, transformaram-no num herói, acima dos humanos, e do outro fizeram dele um tirano e um criminoso.
E do ponto de vista do que hoje é Moçambique, ele próprio era um invasor?
Descende de gente que vem de fora, é neto de um primeiro invasor, se se pode dizer assim, porque para aquelas pessoas as fronteiras eram outras. Tudo isto é muito fluido, e por isso tão rico para um escritor. A invasão existe, de acordo com a percepção que havia das linhas de fronteira, mas não a invasão de Moçambique, porque essa entidade só existia na cabeça dos portugueses. Para quem lá vivia no final do século XIX, aquilo era eram vários estados, e até alguns territórios sem estado.
Ficando-me pelo início do livro, cito três passagens: “Haverá saudade que não seja infinita?”; “Apenas a Vida nos defende do viver; “É para isso que servem as fardas: para afastar o soldado da sua humanidade”. É um escritor de vocação aforística, ou essa marca da sua escrita decorre da sua fidelidade ao imaginário e à tradição oral moçambicana?
Acho que ninguém tem uma vocação por razões genéticas, digamos assim. Esse é o modo como gosto de escrever, é o lado que vem da poesia, essa abordagem metafórica do mundo é o que me seduz. Mas também acho que não faria isso da mesma maneira se não fosse filho daquele lugar. É uma grande felicidade viver num território em que essa lógica poética ainda é dominante.
O livro abre com uma epígrafe em que diz que a estrada é uma espada que “rasga o corpo da terra”. Pode dizer-se que a terra é, neste e noutros livros seus, uma espécie de subentendido narrador, que avalia as acções humanas segundo a sua própria perspectiva?
É verdade. E isso acontece porque acho que onde prevalece hoje uma visão realmente ecológica, no sentido de colocar o homem como parte integrante desse todo mais vasto, é em África. Nas línguas de Moçambique nem sequer existe uma palavra para dizer natureza. Não há uma coisa chamada sociedade ou cultura separada da natureza. Há uma visão holística. Quando penso, por exemplo, no meu trabalho como biólogo, também não existe uma coisa chamada árvore que só possa ser entendida de um ponto de vista botânico: uma árvore é muito mais do que isso.
Por falar na Biologia, já disse mais do que uma vez que a sua profissão o ajudou a conhecer melhor Moçambique.
Sem dúvida. Deu-me pretexto para circular por todo o país, mesmo pelos lugares mais íntimos. Embora não exista nenhum sítio que não esteja de algum modo contaminado pela língua portuguesa, pela escrita, por um outro tipo de racionalidade. A África virgem não existe, ou só existe na cabeça dos que mistificam a própria realidade africana. Mas a coabitação desses vários níveis permite um exercício sincrético muito rico.
Há neste livro um sargento que faz perguntas de mais para um militar, como o mesmo reconhece, e uma rapariga cujo nome quer dizer “Quem é?”, um nome que é ele próprio uma pergunta. Pode dizer-se que há uma espécie de fraternidade entre o sargento e Imani, no sentido em que ambos sentem que estão a afastar-se irremediavelmente das suas raízes?
A resposta é sim. Interessava-me - acho que a um escritor interessa sempre - ter alguém que está em busca de si mesmo, porque o seu alheamento e incerteza ajudam a desvendar a história. Mas também Imani, se fala a partir daquilo que seria a razão VaChopi, ao mesmo tempo não lhe pertence completamente, tem um pé dentro e outro fora. E o mesmo acontece com o sargento, que não é alguém que pudesse ser apresentado como porta-voz do olhar português dominante.
Ele está perdido da sua própria missão, sente-se alienado daquilo que era suposto representar.
Muitas das personagens dos seus romances e contos são mulheres, e o mesmo acontece neste livro. É uma coisa inteiramente natural ou há nisso também o propósito de contribuir para a mudança de mentalidades na sociedade moçambicana? A mesma questão talvez se pudesse também aplicar à relação homossexual em que o avô de Imani se envolve quando se torna mineiro.
Novamente, as duas coisas são verdadeiras. Sinto-me mais à vontade se as vozes que me ditam a história são femininas. É a minha mãe, são as mulheres que construíram a minha infância.
Mas algumas dessas coisas que estão no livro, como a revelação da homossexualidade entre os mineiros, que era bastante comum, também têm a intenção de provocar uma sociedade que é muito homofóbica. Não sei se é um dever geral do escritor, mas sinto pelo menos como um dever meu fazer alguma coisa, provocar, tentar sacudir esse peso, que é terrível.
Já tem a noção, grosso modo, do que vão ser o segundo e terceiro volumes? Prevê, por exemplo, acompanhar o desterro açoriano de Ngungunyane? Seria de esperar que sim, até pelas óbvias possibilidades ficcionais.
Sim, o romance vai acompanhar o exílio nos Açores. E eu venho com ele: estou a planear ficar uns tempos na ilha Terceira, onde sei que há memórias desses tempos, para ver se alguma coisa me inspira.
Vai abordar também o filho do imperador que o acompanhou no exílio, Godide, que segundo a imprensa da época terá entusiasmado bastante as damas da sociedade portuguesa do tempo? E o régulo Zixaxa, que acabou por se casar com uma açoriana, deixando descendência em Angra do Heroísmo?
Zixaxa era um régulo que Ngungunyane teve de delatar. Era um líder rebelde e Portugal queria que o imperador o entregasse.
E daí a animosidade entre ambos no exílio?
Sentiu-se traído e ficou essa marca, mas acho que o imperador, coitado, não teve outra hipótese.
Além dos descendentes de Zixaxa, admite-se que o próprio Ngungunyane tenha deixado descendência em Portugal. Sabe se isto tem algum fundamento?
Num qualquer momento, o Governo português promoveu uma cerimónia - vi fotografias disso - em que duas senhoras que eram netas de Ngungunyane participaram juntamente com familiares do Mouzinho de Albuquerque. Foi uma coisa simbólica, a sugerir um reencontro dos dois militares, agora em clima de amizade.
Seriam filhas de Godide?
Não sei. É possível que descendam de uma das sete mulheres que o imperador trouxe com ele.
Mas não as separaram dele?
Sim, mas isso foi mais tarde. Algumas ainda ficaram aqui bastante tempo, e o seu regresso organizado a África só aconteceu com o advento da República, em 1910, depois de uma grande campanha moralista e puritana. [Gungunhana e as suas mulheres tinham chegado a Lisboa em Março de 1896]. Nenhuma das mulheres foi depois com ele para os Açores, mas é possível que alguma já tivesse chegado grávida a Portugal.
Voltando à sua escrita: quem lê os seus livros pode pensar em García Márquez, pelo lado da irrupção do maravilhoso no quotidiano, ou em Borges, pelas intrincadas relações entre sonho e realidade e pelas questões da identidade, ou me Guimarães Rosa, na invenção lexical. São influências reais, ou o que parece vir destes autores chega-lhe através da cultura moçambicana?
São as duas coisas. O caso do Borges é um pouco diferente, porque a Argentina é mais europeia, mas no caso do brasileiro e do colombiano, são de países muito eclécticos, que têm muito de África. Ou se calhar têm apenas o que nós todos temos, porque também há uma grande pressa em classificar: isto é africano, é terceiro mundo, é realismo mágico. Quem é que não tem um pouco de realismo mágico?
Embora os seus temas de sempre estejam presentes neste livro, e a prosa não deixe de ter a dimensão poética que associamos à sua escrita, dir-se-ia que a sua proverbial compulsão para criar novos vocábulos está aqui bastante atenuada, pese embora algum “nuvisco” ocasional. Foi deliberado?
Houve uma certa deliberação, sim. Não estive propriamente a coibir-me, mas acho que quis desafiar-me, deixar de ser classificado dessa forma. Quero ter uma relação com a escrita que me surpreenda. Não quer dizer que não volte a esse trabalho sobre a linguagem, ou que não o faça a outros níveis, mas agora interessa-me que a história flua melhor.
Uma pergunta que não têm directamente a ver com a sua obra. Que impacto está a ter em Moçambique a greve de fome de Luaty Beirão?
Está a ter algum nas camadas urbanas, nos intelectuais e na gente de cultura. Mas há uma certa resistência por causa daquela ideia dos partidos irmãos e dos povos irmãos. Se alguém se ergue em defesa de Luaty, sabe que não está a falar de Luanda, está a falar de Moçambique, que a mensagem será interpretada assim.
Regresso ao seu livro para uma última pergunta. No final de Mulheres de Cinza, Imani diz: “Nesse relato vou contando a história dos que não têm escrita”. É o que o Mia Couto faz?
Acho que sim, que sou um pouco essa Imani. E no fundo também estou a inventar a minha própria história, no limite do que é a palavra escrita e a oralidade.