A China está a mudar o mercado da arte – outra vez
A desaceleração da economia chinesa espelha-se no mercado da arte: no primeiro semestre deste ano o colosso asiático desceu para segundo lugar entre os maiores compradores mundiais; os Estado Unidos reconquistaram o papel principal.
Esta segunda-feira os resultados da bolsa chinesa voltaram a descer, em alguns casos em 10% – consequência das multas de cerca de 285 milhões de euros impostas pela Comissão Reguladora em 12 casos de manipulação de mercado, incluindo o das chamadas “acções duvidosas”. Novo acto da campanha anticorrupção que o país atravessa, uma movimentação de fundo conduzida pelo presidente Xi Jinping e cujos reflexos se espelham não apenas no mercado bolsista – estão em todos os sectores do mercado chinês, entre eles o da arte.
Depois da inesperada queda de 4,5% da moeda nacional face ao dólar em apenas três dias, em Agosto, e de a China ter registado no terceiro trimestre deste ano a sua pior taxa de crescimento dos últimos seis anos – 6,9% –, não há sinais de o yuan vir a reconquistar em breve a aura dourada de antes do Verão. Assim, não se vêem também sinais de os coleccionadores chineses virem a assumir nos tempos mais próximos o papel previsto no mercado internacional da arte, nomeadamente o leiloeiro.
Foi em 2011 que a China destronou os Estados Unidos do lugar que estes ocupavam há mais de meio século – o de maior comprador mundial de arte. Ao mesmo tempo, o Reino Unido via-se relegado para o terceiro lugar desse pódio. E a corrida foi rápida: apenas cinco anos desde que, em 2007, a China chegou ao terceiro lugar, empurrando a França para as sombras da quarta posição.
O ritmo constante do sprint chinês e a promessa de new money com apetência para as grandes obras e os grandes nomes deixou os negociantes ocidentais expectantes. Sobretudo num momento em que os mercados ocidentais ameaçavam entrar em falência. No entanto, ainda antes das movimentações bolsistas desta semana na China, os dados do primeiro semestre deste ano faziam já avolumar dúvidas: num mercado global leiloeiro que movimentou cerca de 6,8 mil milhões de euros entre Janeiro e Junho, os Estados Unidos contribuíram com cerca 2,6 mil milhões de euros para o bolo geral, a China com muito menos: 1,8 mil milhões.
Segundo dados da Artprice, a grande analista do mercado da arte, no primeiro semestre de 2015 os Estados Unidos reconquistaram com os seus valores o lugar cimeiro como compradores. E o Reino Unido, que contribuiu apenas com menos 90 milhões de euros do que a China, acabou por não ficar longe do seu antigo segundo lugar. Já a retracção chinesa terá gerado uma parte substancial da quebra de 5% dos resultados de leilões a nível mundial e também da queda de 17% no número de lotes vendidos.
“Na ausência de definições legais estritas, praticamente todos os cidadãos ricos da República Popular da China estão temporariamente a abster-se de fazer aquisições extravagantes”, diz um relatório de Julho da Artprice. A tendência deverá agora acentuar-se ou, pelo menos, prolongar-se. O que atira um véu de incerteza sobre apostas de risco em curso. Como a que a Sotheby’s assumiu há meses perante os herdeiros do coleccionador norte-americano Alfred Taubman.
Em quatro noites, a partir de 4 de Novembro e até 27 de Janeiro, a Sotheby’s vende os 500 trabalhos de grandes mestres, tanto antigos quanto contemporâneos, que Taubaman reuniu até à sua morte, em Abril. Entre o que se imagina seja o conjunto mais valioso de sempre de um único coleccionador a chegar em bloco ao mercado estão obras de Dürer e Rafael, Picasso e Rothko, Degas, Modigliani, De Kooning, Egon Schiele, Frank Stella, Winslow Homer, Charles Burchfield... Para dia 4 a Sotheby’s tem prevista a venda das grandes obras-primas da colecção, para dia 5 a secção de arte moderna e contemporânea, para dia 18 os norte-americanos e para 27 de Janeiro os mestres antigos. Aconteça o que acontecer entretanto, sejam quais forem os resultados sob o martelo, a leiloeira garantiu a William e Gayle Taubman que lhes pagará sempre, no mínimo, 500 milhões de dólares (453 milhões de euros).
É o maior risco alguma vez assumido por uma casa com 271 anos de história para trás, dizem vários analistas. E o que pode, de facto, falhar é que a aposta teve assumidamente os coleccionadores chineses em vista. “Se eu fosse accionista da Sotheby’s quereria saber o que acontece aos cálculos por detrás da garantia se o yuan sofre outra desvalorização antes da venda”, disse ao The Times David Kusin, economista especializado no mercado da arte.
Essas declarações foram feitas há semanas, muito antes das movimentações bolsistas de segunda-feira. Na altura, a Sotheby’s não comentou a concentração de risco. Admitiu apenas que a crise internacional poderia “afectar negativamente” os seus negócios e clientes.
Mas há visões optimistas sobre o quadro geral, nomeadamente no que toca à participação chinesa. Algumas delas pendentes do plano quinquenal a sair do plenário do Governo do Partido Comunista que encerra esta quinta-feira após quatro dias de discussão.
Uma das perspectivas mais solares faz crer que o sector dos serviços, que constitui metade de toda a actividade económica chinesa, pode absorver prejuízos de outros sectores. E, de facto, nos primeiros nove meses de 2015 as indústrias terciárias representaram 54,1% do PIB chinês. Mais: no terceiro trimestre cresceram 8,4% – ou seja, mais 1,5% do que a economia geral. E na Cultura há também um indicador positivo: a venda de bilhetes de cinema, a crescer a uma taxa de quase 50%.
Dados concretos também quanto ao mercado da arte: em termos internos, depois de entre 2009 e 2014 ter crescido 214%, o mercado da arte chinês teve nos mesmos primeiros seis meses deste ano uma quebra abrupta e drástica: 39%. Por outro lado, a China tem, sozinha, quase metade das 10 cidades do mundo que mais milhões movimentam no mercado internacional da arte.
Nos primeiros seis meses do ano Nova Iorque encabeçou a lista dessas 10 cidades com movimentos no valor de 2,5 mil milhões de euros. Londres esteve em segundo lugar com 1,7 mil milhões. Pequim esteve em terceiro com 406 milhões. Na mesma lista seguiam-se Paris – com 181 milhões –, Xangai, Cantão, Milão, Viena e Munique – esta última com 32,6 milhões.
“A arte tornou-se uma importante arena de rivalidade internacional”, afirma a Artprice. Um combate, diz a analista, que não se trava apenas no mercado de vendas primário e secundário. Trava-se também naquilo a que passou a chamar-se “indústria museológica”.
Face a mais de 700 museus a abrir todos os anos, “no século XXI, a indústria museológica tornou-se numa realidade económica global”, explica a mesma Artprice. Que afirma que entre 2000 e 2014 se construíram mais museus do que nos 200 anos anteriores. E que explica também que “o apetite desta nova indústria por trabalhos de qualidade" é hoje um dos sustentáculos chave do mercado da arte.
Também nessa realidade a China desempenha um papel fundamental. Segundo a The Economist, em 1949, quando o Partido Comunista assumiu o poder, a China tinha apenas 25 museus. Desses, muitos foram ainda incendiados entre 1966 e 1976, durante a Revolução Cultural. Agora, cada cidade chinesa parece estar a construir um museu público. Com um coleccionador privado a fazer crescer o seu próprio logo ao lado.
Como recorda a The Economist, para cumprir o plano quinquenal que tem em curso até Dezembro, a China deveria ter 3500 museus no fim de 2015. Esse plano ficou cumprido há três anos - em 2012. Na verdade, esse plano foi ultrapassado: no final de 2012 a China tinha 3886 museus abertos ao público. A The Economist dá como termo de comparação os Estados Unidos, onde se construíram, em média, 20 a 40 museus por ano na década que antecedeu o crash de 2008.
A Cultura é “a alma da nação”, diz o plano quinquenal que acaba em Dezembro e que esclarece que a Cultura deverá tornar-se uma “indústria pilar” da China.
Os museus são parte integrante dessa visão.