Dirigente do PSD acusada de falsificação pede indemnização de 20 mil euros ao Ministério da Saúde
Candidata a bastonária dos enfermeiros e membro do Conselho Nacional do PSD diz-se perseguida por ter sido suspensa de funções. Levou o assunto àquele órgão partidário. Passos Coelho interessou-se, mas a suspensão foi confirmada. Caso está nos tribunais. Enfermeira pede 20 mil euros de indemnização.
Um membro do Conselho Nacional do PSD, a enfermeira Ana Rita Cavaco, actual candidata a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, apresentou no ano passado uma queixa-crime contra o presidente da Administração Regional de Saúde (ARS) de Lisboa e Vale do Tejo, o médico Luis Cunha Ribeiro. A queixa surgiu na sequência de um processo disciplinar instaurado à enfermeira pela ARS, o qual levou à sua condenação a um mês de suspensão por alegada falsificação da folha de ponto do centro de saúde em que trabalhava.
A acção em que são investigadas as acusações de denegação de justiça, prevaricação e abuso de poder, está a correr no Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa. Duas das testemunhas indicadas pela dirigente do PSD e já ouvidas nos autos não confirmam, todavia, a actuação imputada ao denunciado. Por outro lado, o recurso hierárquico da pena disciplinar aplicada pela ARS, dirigido ao ministro da Saúde, foi entretanto indeferido, tendo a enfermeira, de 39 anos, recorrido em Abril deste ano para tribunal e pedido uma indemnização de 20 mil euros ao Ministério da Saúde.
Para fundamentar a sua queixa contra o presidente da ARS, subscrita pelo advogado Ricardo Sá Fernandes, Ana Rita Cavaco alega que o médico fez saber a vários amigos comuns, em Outubro de 2013, que estava disposto a arquivar o processo disciplinar que contra ela corria, desde que ela deixasse de o criticar nas reuniões do Conselho Nacional do PSD.
Ana Rita Cavaco foi adjunta de Carlos Martins, secretário de Estado da Saúde entre 2002 e 2004, no Governo de Durão Barroso, e apresentou na semana passada a sua candidatura a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, nas eleições que se realizam em Dezembro.
Na origem do processo disciplinar que lhe foi instaurado no Verão de 2013 encontra-se uma participação de uma colega, que justificou a sua denúncia com “princípios éticos e deontológicos”. De acordo com a participação, Ana Rita, então colocada no Centro de Saúde da Graça, esteve ausente do serviço durante três semanas, em Junho desse ano, “tendo assinado a respectiva folha de ponto” quando regressou, tal como se tivesse estado a trabalhar.
Notificada em Setembro da instauração do processo, nomeou advogado, foi ouvida, contestou por escrito e apresentou testemunhas. Rejeitando por completo a acusação, justificou parte das suas ausências, alegadamente sem autorização, com aquilo que seria uma prática corrente no centro de saúde: o pessoal tinha direito, embora isso não estivesse previsto nos regulamentos, a não comparecer certos dias, como forma de compensação das horas de serviço que prestava a mais e que não eram pagas. Nos outros dias em que não se apresentou teria estado a trabalhar num inquérito, devidamente autorizado, sobre “o valor das vacinas”, no âmbito de um curso de mestrado em que estava inscrita.
Suspensão de um mês
No final do processo, a respectiva instrutora rejeitou todas justificações da arguida, considerou provada a acusação e propôs uma suspensão de 30 dias. Além disso, propôs a participação ao Ministério Público (MP) do alegado crime de falsificação, correspondente à assinatura da folha de ponto nos dias em que a enfermeira faltou. A coordenadora do gabinete jurídico da ARS concordou com a proposta e o Conselho Directivo deste organismo determinou, em Julho de 2014, a aplicação da pena proposta e a efectivação da participação ao MP.
Em resposta, a arguida recorreu para o ministro da Saúde. Ao abrigo da delegação de competências ministerial, a secretária-geral do ministério, já em Janeiro deste ano, negou provimento ao recurso e confirmou a pena.
Inconformada, a enfermeira avançou com uma “acção administrativa especial” em que requere a anulação da decisão do Ministério da Saúde, ao qual pede uma indemnização de 20 mil euros por danos não patrimoniais. Na petição entregue em Abril deste ano no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, a autora alega que se encontra de baixa desde Julho de 2014 — situação em que se manteve até Junho deste ano —, uma vez que “adoeceu gravemente”, em consequência do “incompreensível processo disciplinar” que lhe foi movido.
O articulado remete para uma queixa-crime contra Cunha Ribeiro, que Ana Rita entregara no DIAP de Lisboa um ano antes, em Março de 2014, na qual fica claro o seu entendimento quanto à natureza do processo e da sanção que lhe foi aplicada. Subscrita pelo advogado Ricardo Sá Fernandes, a participação sustenta que a queixosa está a ser vítima de uma perseguição pessoal e política por parte do denunciado.
No essencial, defende que o processo disciplinar, ou pelo menos o seu desfecho, tem a mão do presidente da ARS e se deve exclusivamente ao facto de este querer assim convencê-la a parar as acusações que lhe dirigia havia meses no Conselho Nacional do PSD. Na primeira dessas intervenções, em Abril de 2013, perante Pedro Passos Coelho e os seus pares, acusou Cunha Ribeiro de esbanjar dinheiros públicos em almoços semanais, com três dezenas de dirigentes dos seus serviços, que custariam perto de 90 euros por cabeça.
Outra das queixas, prendia-se com alegadas relações perigosas entre o seu superior hierárquico e o patrão da empresa farmacêutica Octapharma, a favor de quem teria decidido grandes concursos públicos de aquisição de plasma sanguíneo ao longo dos anos. Conforme se lê na participação, Ana Rita afirmou também nessa reunião, que, segundo constava, Cunha Ribeiro residia num apartamento do mesmo empresário — que é arguido no processo Operação Marquês e contratou José Sócrates como consultor em 2013 — sem contrato de arrendamento registado nas Finanças.
Passos e os assessores
Na sua intervenção final nesta reunião partidária, o primeiro-ministro afirmou, diz a queixa, referindo-se à questão dos almoços, que a situação “era inadmissível, devendo acabar”. Terminado o encontro, lê-se no documento, o adjunto económico de Passos Coelho, Rudolfo Rebelo, pediu à enfermeira “detalhes sobre o assunto”, contactando-a posteriormente para obter mais pormenores.
Semanas depois, João Montenegro, também adjunto do primeiro-ministro, telefonou-lhe dizendo que Passos Coelho “pedia com urgência cópia da [sua] intervenção no Conselho Nacional e um ‘memo’ sobre a situação descrita”.
Nos termos da participação, em Outubro desse ano, depois de uma nova reunião da direcção do PSD em que Ana Rita retomou o caso, Cunha Ribeiro ter-lhe-á feito saber, através de dois amigos comuns, que “arquivaria o processo disciplinar na semana seguinte”, em troca de ela deixar de falar dele no partido. Tal facto constituiria um indício da prática do crime de denegação de justiça e prevaricação, havendo também indícios do crime de abuso de poder.
Uma das pessoas de quem Cunha Ribeiro se terá servido para propor a Ana Rita a compra do seu silêncio garantiu porém ao PÚBLICO, pedindo para não ser identificado, que a versão da sua amiga não corresponde à verdade. Isso mesmo, adiantou, foi por si declarado nos autos da inquérito agora a cargo da Polícia Judiciária. A outra, um dirigente local do PSD no Algarve, José Damásio, respondeu por escrito que foi ele quem sugeriu “intermediar um encontro” entre a amiga e o médico. Questionado sobre se “poderia haver bases para arquivar” o processo disciplinar, este respondeu-lhe, diz Damásio, que “havia disponibilidade para sarar algum mal entendido”.
Presidente da ARS nega
O presidente da ARS, por seu lado, nega em absoluto que alguma vez se tenha disponibilizado a arquivar o processo em troca do silêncio da queixosa. “É totalmente falso que alguma vez tenha proferido tal afirmação a qual, aliás, seria de insusceptível execução, porquanto toda e qualquer queixa apresentada é analisada directamente pelo Gabinete Jurídico, que envia uma proposta de actuação largamente fundamentada ao conselho directivo e que este segue”, afirmou em resposta enviada ao PÚBLICO.
“É inimaginável que se possa neste âmbito ordenar seja o que for, porque as decisões disciplinares são propostas pelo instrutor [do processo] depois de muitas diligências efectuadas, apreciadas e confirmadas pelo coordenador do Gabinete Jurídico e só depois submetidas a deliberação do conselho directivo (...), um órgão colegial com quatro membros”, acrescentou.
Sobre os almoços com os responsáveis pelos centros de saúde, Cunha Ribeiro limitou-se a enviar ao PÚBLICO nove cópias de facturas emitidas pela empresa de catering Maria Papoila e relativas a outras tantas refeições volantes servidas a cerca de 30 pessoas cada uma, entre 26 de Março e 16 de Abril, e entre 1 de Outubro e 5 de Novembro. O custo facturado à ARS foi sempre de 10 euros por cabeça.
Cunha Ribeiro rejeita também as acusações de ligação aos negócios da Octapharma e diz nunca ter sido confrontado pelo ministro da Saúde com as acusações de Ana Rita Cavaco, cujo motivo garante não compreender. As datas das facturas, confirmam, no entanto, que os almoços foram interrompidos logo a seguir à primeira queixa por ela apresentada diante de Passos Coelho no PSD.
Quanto ao apartamento em que residiu durante vários anos no mesmo prédio em que morava José Sócrates, na Rua Castilho, em Lisboa, Cunha Ribeiro diz que já esclareceu o assunto.
O caso foi revelado pelo Correio da Manhã em Março de 2013 e suscitou numerosas críticas ao responsável pela ARS, na medida em que este confirmava residir numa casa do patrão da Octapharma em Portugal, Paulo Lalanda de Castro — um empresário que já este ano foi constituído arguido no processo que envolve José Sócrates. A Octapharma era a principal fornecedora de derivados de sangue ao Serviço Nacional de Saúde.
Cunha Ribeiro, que tinha presidido ao INEM entre 2003 e 2008 e que, de 2008 a 2011, foi consultor do Ministério da Saúde, afirmou então que tinha arrendado o apartamento do Heron Castilho a uma empresa que tinha como gestor uma pessoa de quem era amigo havia 30 anos e que se tratava de facto de Lalanda de Castro. O médico sustentou que não via qualquer conflito de interesses no caso, mas não revelou o valor da renda que pagava.
Ana Rita Cavaco esteve de baixa quase um ano, até oito de Junho passado, altura em que deixou a ARS de Lisboa e Vale do Tejo. Depois disso cumpriu os 30 dias de suspensão e foi colocada na Autoridade Antidopagem de Portugal, no regime de mobilidade. Ao PÚBLICO reafirmou sempre a veracidade do que consta da queixa-crime e repetiu todas as justificações que apresentou no decurso do processo disciplinar, facultando cópias das principais peças do processo.
Um memorando para Passos Coelho
O memorando sobre Cunha Ribeiro que, segundo a queixa entregue no DIAP, Passos Coelho pediu a Ana Cavaco no final da primeira reunião do Conselho Nacional do PSD, em que a enfermeira falou sobre o presidente da ARS, foi-lhe enviado ainda em Abril de 2013 através de João Montenegro, adjunto do primeiro-ministro.
O documento nota logo nas primeiras linhas, a propósito do apartamento em que Cunha Ribeiro então residia, propriedade do patrão da Octapharma, que a informação por ela referida de que não havia qualquer contrato de arrendamento do mesmo depositado nas Finanças “foi confirmada pelo Rudolfo Rebelo, adjunto do primeiro-ministro actual”.
Ana Rita alarga-se nas quatro páginas do texto, que ela própria facultou ao PÚBLICO, sobre as alegadas ligações de Cunha Ribeiro aos negócios da Octapharma e termina escrevendo: “Fonte directa do PM garantiu-me que era Miguel Macedo quem contava a Cunha Ribeiro as minhas intervenções no Conselho Nacional do PSD.”
Na reunião seguinte daquele órgão partidário, em Outubro de 2013, a conselheira leu uma intervenção, que também facultou ao PÚBLICO, na qual volta a falar do presidente da ARS, afirmando que ele cessara durante algum tempo os almoços “servidos por um dos caterings mais caros de Lisboa”. No entanto, acusou-o de os ter retomado naquele mesmo dia, “em clara violação às orientações do sr. primeiro-ministro”. E acrescentou: “Os almoços acabaram na altura, mas a minha denúncia valeu-me um processo disciplinar. Esse processo, poderei demonstrá-lo, é um processo de perseguição política, de retaliação pelo que aqui denunciei.”
O PÚBLICO pediu à assessoria de imprensa de Passos Coelho um comentário sobre este assunto. “O gabinete do primeiro-ministro não comenta o que possa ou não ter-se passado numa reunião partidária”, foi a resposta obtida. Rudolfo Rebelo, por seu lado, disse que não quer fazer qualquer comentário sobre o assunto e João Montenegro não respondeu ao email que lhe foi enviado na sexta-feira.