Acórdão do Supremo sobre bens e casamento pode gerar mais litígios?

Colocámos as dúvidas dos leitores do PÚBLICO a três especialistas em Direito da Família, sobre a jurisprudência que passará a ser seguida pelos tribunais quando decidem em casos de divisão de bens, num divórcio. Em causa, um acórdão que foi conhecido esta semana. O que é comum e o que não é?

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Miguel Madeira

O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), relacionado com o regime de comunhão de adquiridos no casamento, noticiado na segunda-feira, suscitou várias dúvidas: “Se o pagamento da casa é sempre feito pelo marido (falando dum empréstimo) com o dinheiro da sua conta, se a esposa nunca faz qualquer pagamento, mas é ela quem paga todas as restantes despesas da casa, comida, roupa, etc.... Depois de a casa paga, esta passa a poder pertencer apenas ao ex-marido, caso ele consiga provar que o dinheiro com o qual a pagou era dele?” A dúvida é de um leitor do PÚBLICO, mas reflecte o espírito de várias outras deixadas nas caixas de comentários do site e da página de Facebook do jornal.

Questionámos três especialistas em Direito da Família — duas advogadas e uma professora —, colocando-lhes algumas das dúvidas dos leitores. Muitas delas revelam receios que se fundam no desconhecimento da lei, explicam. Mas, ainda assim, Arménia Coimbra, advogada, acha que o acórdão do STJ, que fixa jurisprudência, “cria insegurança jurídica e vai levar mais conflitos aos tribunais”.

Opinião diferente tem Anabela Quintanilha, também advogada. “O acórdão vem clarificar os comportamentos dos tribunais e uniformizá-los.” E até pode ter um efeito positivo: tornar mais claro para as pessoas o que podem fazer para evitar conflitos, numa eventual divisão de bens. “Porque hoje gostamos muito um do outro e estamos bem, mas e amanhã?”

Mas antes de se prosseguir, responda-se à questão do leitor do PÚBLICO que arranca este texto. Analisado a situação relatada, diz Rita Lobo Xavier, professora da Escola de Direito do Porto da Universidade Católica: “Resulta do acórdão que, nesse caso, se o marido conseguir provar que foi ele que pagou todas as prestações do empréstimo com os seus bens próprios, a casa é bem próprio dele.”

E diz também Arménia Coimbra: “Agora pode-se sempre fazer a prova, por qualquer meio de prova, até testemunhal, de que se adquiriu, na constância do casamento, um determinado bem com dinheiro que se trouxe para o casamento, que já se tinha antes do casamento ou que se recebeu gratuitamente após o casamento.”

O que muda afinal?
Comecemos pelo início. O STJ descreve no seu acórdão o caso de Teresa e João. Uma vez casados, compraram uma casa. Na escritura, João aparecia como comprador. Quando o casamento acabou, Teresa conseguiu provar que o dinheiro da compra lhe pertencia a ela e não a ele — apresentando para isso provas de venda de património que havia herdado e de amortização de um empréstimo contraído para pagar a parte da casa que não foi paga logo de início. Depois de diferentes decisões de tribunais sobre o assunto, o STJ concluiu: a casa era de Teresa.

João e Teresa podiam ter evitado o conflito se, quando assinaram a escritura do imóvel, tivessem deixado logo expresso que o dinheiro usado para a compra era apenas dela. A casa seria então considerada bem próprio de Teresa. É o que já há muito estabelece o Código Civil (no seu artigo 1723). Não se falava mais nisso. Mas como não o fizeram — e não é comum que os casais o façam em situações parecidas, como nota Anabela Quintanilha, “sobretudo por desconhecimento” —, não foi assim. Com o acórdão divulgado na segunda-feira, que deverá passar a ser seguido pelos juízes dos diferentes tribunais, pondo fim a “decisões judiciais divergentes”, fica esclarecido: “Já não é preciso” uma menção expressa na escritura, diz Arménia Coimbra.

Prossegue Rita Lobo Xavier: “Se eu herdar milhares de euros e os deixar no banco são bens próprios sempre. A questão do acórdão do STJ apenas se coloca quando eu compro uma casa com aquele dinheiro. A lei assume que a casa integra o património comum, pois foi adquirido a título oneroso na constância do casamento. Para que a casa fique a substituir como bem próprio os milhares de euros que eu gastei, eu teria de ter levado o meu marido à escritura e ter ficado no documento: ‘E pelos outorgantes foi dito que o preço do imóvel foi pago com o dinheiro que a outorgante herdou pelo falecimento do seu pai...’. O acórdão diz que agora, mesmo que não se tenha feito isto, pode mais tarde provar-se a proveniência dos bens...” E isso é positivo?

“O Supremo Tribunal interpretou uma norma do Código Civil contra o seu sentido escrito”, defende Arménia Coimbra. E ultrapassou “exigências formais impostas pelo legislador [o tal artigo 1723 do Código Civil] considerando que se poderá sempre fazer a prova da natureza dos dinheiros aplicados”. Para Arménia Coimbra, “as exigências formais surgem para dar segurança jurídica e quando se prescinde delas, os litígios aumentam…”

A principal questão de Rita Lobo Xavier é outra: sendo certo que o acórdão só se aplica quando estão em causa “apenas os interesses dos cônjuges, que não os de terceiros”, a professora de Direito admite que ele possa “dar mais ocasião a fraudes contra os credores”, quando há dívidas para pagar. Exemplo do que se pode passar: “B” é casada com “C”, tem dívidas e, para não as pagar, alegando que não tem como o fazer, divorcia-se e arranja maneira de provar que o suposto património comum do casal é na verdade só do marido. “Numa partilha não podemos afirmar que estão apenas em causa os interesses dos cônjuges e [o acórdão] pode permitir esquemas desses”, diz Lobo Xavier.

O que são bens comuns?
“Uma mulher que fique longos anos ao lado do homem, e que decida ser doméstica para tratar dos filhos, da casa e do marido fica sem nada?” — foi outra questão levantada por outro leitor do PÚBLICO.

“O regime de comunhão de adquiridos vai por água abaixo”, sentenciou outro.

Voltámos a colocar as questões dos leitores aos especialistas. Arménia Coimbra responde: “No regime de comunhão de adquiridos tudo o que o casal adquire, na constância do casamento, proveniente do trabalho, mesmo que só do trabalho de um dos cônjuges, é comum; sempre assim foi e continuará a ser mesmo após a prolação deste acórdão.”

Rita Lobo Xavier sublinha: “Se a casa foi paga com salários do marido ou outros bens comuns a casa é bem comum, isso não está em causa.”

O que são bens comuns? Exemplos de Arménia Coimbra: “Se recebo uma herança, ou se recebo uma indemnização de um seguro, esse dinheiro é meu, se o uso na compra de uma casa, a casa é minha. Mas se tenho um salário de 1000 euros e o meu marido de dez euros, são 1010 euros que são de ambos. Se recebo 100 mil euros da minha empresa e compro um barco, o barco é comum... Os rendimentos do trabalho são sempre bens comuns.”

Assim, conclui Arménia Coimbra, “se o dinheiro de uma conta poupança for proveniente de rendimentos comuns do casal, isto é, do produto do trabalho do marido, por exemplo, ou de lucros de uma actividade liberal do marido, ele não pode fundamentar o pedido de que uma casa comprada com esse dinheiro é bem próprio dele.”

Alguns leitores do PÚBLICO levantaram mais questões. “Se um dos membros do casal ganha mais será justo ajudar mais”, escreveu uma leitora. Mas essa é outra questão. “Desde 2008 que estão previstas compensações”, diz Anabela Quintanilha. “Se eu me divorciar amanhã e provar que contribuí com muito mais do que o meu marido para o agregado familiar posso pedir compensação. E dos bens comuns tem de sair uma quantia para quem levou mais dinheiro para a comunhão. Isso já existe. E continua a existir.”

E prossegue: “Há uns anos tive um caso: uma senhora tinha dez mil euros, dela. Quando, com o marido, foram comprar a casa, ela deu-os como entrada e fez constar da escritura que a compra era feita pelo valor ‘x’, sendo 10 mil euros património exclusivo dela e o resto resultado de um empréstimo dos dois. Quando se separaram, a casa não era 50% para cada um. Ela tinha 10 mil euros mais do que o marido. Disse-lhes na altura: ‘Foram bastante cautelosos.’”

Com este acórdão do STJ, “que chama a atenção para algumas questões de que as pessoas não têm conhecimento”, Quintanilha acredita que as pessoas vão ficar “mais despertas, mais atentas para certas situações”. E seguir o exemplo da sua antiga cliente “cautelosa”.

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