Stan Douglas regressa ao PREC

Na versão de Stan Douglas, o problema do 25 de Abril de 1974 foi ser um momento único ao qual se impôs uma solução standard: uma democracia capitalista. Em O Agente Secreto, que filmou em Portugal, o artista canadiano propõe outras possibilidades

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Em Checkpoint, uma das imagens da série Disco Angola, Stan Douglas reencenou um controlo rodoviário que viu numa fotografia de 1975 Miguel Manso
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Em Êxodo, da série Disco Angola, Stan Douglas reencenou uma imagem de 1974 retratando a fuga dos portugueses das antigas colónias ultramarinas Miguel Manso
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Em Kung-Fu Fighting, Stan Douglas evoca a forma como as artes marciais entraram na dança dos anos 1970 de contestação social dos negros norte-americanos Miguel Manso
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Em Capoeira, Stan Douglas devolve a África uma forma de luta disfarçada de dança Miguel Manso

Stan Douglas (n. Vancouver 1960) não é um bom entrevistado. Não é que seja antipático. Nem sequer é frio ou arrogante como outros artistas do seu estatuto. Pelo contrário. É afável, disponível e prestável. Ao primeiro contacto, atende-nos o telefone na sua galeria de Nova Iorque com um “olá” acolhedor. E o sorriso é caloroso quando, quatro dias depois, já em Lisboa, nos recebe no Museu Berardo para uma primeira visita a Interregnum, a sua segunda exposição em Portugal, depois de Der Sandmann, no Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado (MNAC-MC).

Der Sandmann (1995), uma instalação de dupla projecção baseada no conto homónimo de E.T. A. Hoffmann, esteve no Chiado em 2000. Não parece, mas foi há 15 anos. E, na altura, Pedro Lapa era o director do MNAC-MC. Algum tempo depois, como consultor da Fundação Ellipse, começou a seduzir o artista para a ideia de um projecto de fôlego para Portugal.

Foi em 2008. Entretanto, a Fundação Ellipse capitulou, acompanhando a queda do Banco Privado Português. E Stan Douglas abraçou outros projectos – entre eles a aventura multimédia da peça de teatro Helen Lawrence, uma ficção sobre o bairro negro de Hogan Alley, na Vancouver de finais da década de 1940. Pelo caminho, porém, os contactos com Lisboa não morreram.

Pedro Lapa está agora à frente do Museu Berardo. E o projecto com Stan Douglas acabou por tomar a forma da peça-âncora de Interregnum: o filme-instalação The Secret Agent/O Agente Secreto, uma adaptação ao Verão quente de 1975 do livro homónimo de Joseph Conrad, o autor do celebrado O Coração das Trevas.

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Miguel Manso

No original de Conrad, a narrativa de O Agente Secreto decorre na Londres de 1886. Verloc, o personagem principal, é um agente secreto e provocateur cuja profissão de fachada é a gestão de uma loja de material pornográfico. Está infiltrado numa célula anarquista quando lhe é atribuída a missão de fazer explodir o Observatório de Greenwich. No guião de Stan Douglas, Verloc vive – e actua – na Lisboa do “momento magnífico” do PREC. E é no “momento magnífico” do PREC que faz explodir a sua bomba.

Presença mutante
O Agente Secreto foi rodado em Março em Lisboa com uma equipa maioritariamente portuguesa, ainda que a falar inglês – Miguel Guilherme, Beatriz Batarda, Gonçalo Waddington, Marcello Urgeghe, Filipe Vargas, Carloto Cotta e Simão Cayatte entre os actores; Leonardo Simões na fotografia, Vasco Pimentel no som… Financiado pela galeria David Zwirner, com o apoio de uma série de instituições internacionais – o Carré d’Art (Nimes), a Haus der Kunst (Munique), o Kunsthal Charlottenburg (Copenhaga), a Fruitmarket Gallery (Edimburgo) e o Irish Museum of Modern Art (Dublin), para além do Museu Berardo – teve produção a cargo da O Som e a Fúria, de Luís Urbano (a mesma produtora de realizadores como Manoel de Oliveira, Miguel Gomes, Sandro Aguilar ou Salomé Lamas).

Filmado em espaços como o antigo cinema Nimas, o Palácio Foz e o Bairro dos Anjos, tem o tempo de uma média (quase longa) metragem – pouco menos de uma hora –, e um ambicioso e complexo dispositivo de apresentação: um amplo corredor com seis ecrãs intermitentes pelos quais a narrativa vai correndo em diversos planos simultâneos.

Porquê transportar uma narrativa de finais do século XIX para a Lisboa de ‘70 e o que fascinou Stan Douglas no Portugal revolucionário? “O que me interessou originalmente neste trabalho foi a ideia do que é o terrorismo e de como o terrorismo foi uma presença mutante ao longo dos tempos”, diz o artista. “Basicamente, o terrorismo é uma técnica. Não é uma ideologia. É uma técnica que pode ser posta ao serviço de uma ideologia com uma grande variedade de objectivos. Pode ser usado para interromper a actividade de alguém que se acredita nociva. Pode ser usado para amedrontar a população na direcção de determinado sentido de voto num processo eleitoral, por exemplo. E, claro, pode ser usado como parte de uma estratégia de guerra, como hoje se vê. Em O Agente Secreto, Joseph Conrad inspirou-se nos actos terroristas de finais do século XIX e depois da revolução portuguesa houve muitas acções terroristas, tanto vindas de movimentos de direita como de movimentos de esquerda. Nesse período, muitas pessoas temiam que o Partido Comunista se tornasse na maior força política organizada em Portugal e tomasse o poder. Muitos dos atentados à bomba e raptos foram uma forma de protesto contra essa possibilidade. Claro que, hoje, temos um conceito de terrorismo muito diferente. O que me interessava, neste filme, era condensar todas essas ideias num só lugar.”    

É aqui que Stan Douglas faz silêncio. Um silêncio com qualquer coisa de definitivo. As palavras do artista não começam por anunciar uma conclusão – morrem repentinamente, como que cortadas à faca. Um golpe seco e lacónico, do qual demoramos a recuperar.

É como se não houvesse lastro a que dar continuidade, apenas vazio, um precipício de que custa voltarmos a erguer-nos. Esgaravatamos o ar: o que é que ele quer dizer exactamente, perguntamos à falta de melhor. “É ambíguo”, responde o artista. “No filme há diferentes personagens com diferentes pontos de vista. Há quem ache que os actos terroristas são uma forma de comunicar, há uma personagem que acha que são uma forma de mostrar como a classe média continua vendada, há um embaixador que quer usar o terrorismo como forma de eleger um governo especifico... Ou seja, há diferentes abordagens ao terrorismo como manifestação.”

Os paralelismos com a actualidade internacional – e, até, de forma metafórica, com a actualidade portuguesa – são incontornáveis. Por detrás do filme, Stan Douglas tem uma posição pessoal? “Não exactamente. Interessa-me levar-me a mim e ao público a reconsiderar o que estas coisas querem dizer, dado que há cada vez mais um enfoque numa única versão do terrorismo.”

Isto por um lado. Por outro, Stan Douglas acaba por explicar que “uma revolução é um momento em suspenso, em que o passado já não serve e o futuro ainda não chegou”: “É o momento em que muitos futuros podem ser possíveis.”

Em termos abstractos, a ideia desta suspensão a partir da qual vários caminhos podem potencialmente ser traçados enforma quase toda a obra de Stan Douglas. Depois, dá-se o caso de a revolução portuguesa ter sido “especial” exactamente nesse sentido, “com diferentes potenciais não inteiramente realizados”.

“Parte do problema da revolução portuguesa”, diz Stan Douglas, “teve a ver com pessoas a usar soluções antigas para lidar com novos eventos”: “A revolução portuguesa foi um evento muito único. Depois, impôs-se-lhe uma solução ‘standard’: uma democracia capitalista. Em O Agente Secreto, há pessoas a tentar todo o tipo de soluções. Futuros potenciais.”

Fora dos eixos
No texto que escreveu para o catálogo da exposição, Pedro Lapa começa por falar numa série de “irrupções de um desejo de radical alteração do estado das coisas” durante esse “momento fora dos eixos da história” que foi o PREC num país “claramente dessincronizado”. Lapa explica como os vários trabalhos apresentados por Stan Douglas na sua exposição de Lisboa se situam “num momento que pôs fim a uma catástrofe – tarefa da revolução”, vivendo “a euforia de um tempo suspenso”.

No Museu Berardo, para além de O Agente Secreto, apresentam-se a vídeo-projecção Luanda-Kinshasa (20013) e a série fotográfica Disco Angola (20013) – ambas feitas enquanto o projecto de O Agente Secreto não avançava. No primeiro destes trabalhos Stan Douglas filma um conjunto de músicos a tocar num estúdio de gravação, no segundo encena uma série de imagens evocativas do mesmo momento histórico, entre as quais uma, intitulada Êxodo, retratando o momento em que os nacionais portugueses a viverem no Ultramar começaram a abandonar em bloco as antigas colónias portuguesas.

Na vídeo-projecção Luanda-Kinshasa Stan Douglas inspirou-se na forma como Godard filmou Simpathy for the Devil, o documentário originalmente lançado sob o título One Plus One e no qual, em 1968, ficaram registadas as sessões de gravação do álbum homónimo dos Rolling Stones.

Às imagens dos Stones, Godard justapôs uma banda-sonora alheia à banda – entre outros, dos Black Panthers. Entreteceu também as imagens de estúdio com imagens de exterior, evocativas do ambiente de profunda contestação e mudança social que se vivia no pós-Maio de 1968. Já Stan Douglas não abandona o estúdio: pega apenas na constante horizontalidade dos movimentos da câmara de Godard, focando-se nos seus músicos, que são tanto personagens reais (porque são de facto músicos) como personagens ficcionais (antes de mais porque nunca existiram ou gravaram nessa década de 1970 encenada apenas pelas roupas que vestem, os instrumentos musicais que usam e o tratamento de imagem feito por Stan Douglas).

As imagens de Disco Angola têm outras tantas camadas de composição e leitura. Cada uma parte de uma imagem documental que Stan Douglas reencenou por partes e que no fim juntou em puzzle numa grande imagem – uma imagem compósita mas de superfície lustrosa.

Em Êxodo, por exemplo, vêm-se vários homens, mulheres e crianças sentados em torno das pilhas de caixotes de madeira que acabariam por se tornar símbolo da desestruturação que representou o retorno à metrópole na vida dos portugueses de África. No canto superior da imagem, por exemplo, estão duas mulheres abrigadas do sol sob um guarda-chuva enquanto ouvem um homem, que lhes fala. Ao centro do plano, um homem jovem fixa o olhar no horizonte distante enquanto, ao lado, uma mulher também jovem joga às cartas com uma criança. Stan Douglas fotografou cada uma destas pequenas narrativas individualmente, compondo o plano geral apenas no fim, como montagem. Noutras imagens, como aquela em que uma mulher negra vestida de verde se apoia contra uma parede pintada com um grande mural do MPLA, o artista alterou protagonistas – na imagem original era um homem branco que se fazia retratar na mesma posição.

Luanda-Kinshasa liga-se “a uma ideia mais generalizada dos movimentos de libertação dos anos 1970 em que a música desempenhou um papel fundamental”, diz Stan Douglas. Mas tanto nesse trabalho como em Disco Angola surgem “formações de utopias potenciais influenciadas por forças externas”, refere o artista.

No texto que escreveu para o catálogo da exposição Pedro Lapa cita Jacques Rancière – “fingir não é fabricar ilusões, mas elaborar estruturas inteligíveis” – para explicar que a questão de “Interregnum” e de cada um dos trabalhos que compõem esta exposição “não assenta na distinção entre ficção e falsidade, mas na indistinção ‘entre os modos de intelegibilidade característicos das histórias e dos modos de intelegibilidade dos fenómenos históricos’”. É que, se “o real deve ser ficcionado para ser pensado”, por outro lado, “não se trata de afirmar que tudo é ficção; ao contrário, urge perceber as formas como a arte reorganiza os signos e as imagens das suas formações discursivas”.

“Esta indistinção fundamental entre arte e história, em que a ficção se move com grande à-vontade”, escreve o curador, “surge no trabalho de Stan Douglas com as mais diversas configurações.”

Os diferentes trabalhos de Interregnum são “exemplos diferenciados”.

“Contrariamente à simulação, capaz de repor um sujeito histórico confinado à eterna repetição do mesmo”, as reencenações que estes três projectos convocam em relação ao período histórico para que remetem “procuram fazer sair das suas dobradiças a própria massa documental, que encerra simultaneamente imagens de felicidade e sombras de um tempo, projectando-as como ficção para outra vida”, escreve ainda Pedro Lapa. 

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