A câmara estava lá quando o futuro desapareceu do horizonte

Testemunhos a quente de um mundo em mudança no programa DocAlliance do DocLisboa: o Iraque de Homeland, a Síria de Haunted, o Egipto de Je suis le peuple

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Homeland (Iraq Year Zero) de Abbas Fahdel dr
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Je suis le peuple dr

Esta é uma das mais ingratas de todas as peças que se possam escrever: como é que se explica a um espectador que algum do melhor cinema que está no Doclisboa este ano fala exactamente, em mais profundidade, das guerras, da violência, da pobreza, do mundo que nos rodeia e que nos entra pela casa todos os dias através dos noticiários, da televisão, da Internet? Como é que se explica que é importante ver este cinema “de urgência” (para citar uma outra secção do Doc) sem que as pessoas reajam com um fatigado “oh não, lá vem mais um filme sobre a Síria/Iraque/Primavera Árabe”?

O objecto desta longa introdução são três dos cinco filmes exibidos no programa DocAlliance - uma “aliança”, como o nome indica, de sete festivais documentais europeus (CPH:DOX da Dinamarca, DocLisboa, Docs Against Gravity da Polónia, Dok Leipzig da Alemanha FIDMarseille de França, Jihlava IDFF da República Checa e Visions du Réel da Suíça), acompanhada por uma plataforma legal de streaming (no site dafilms.com) que permite a espectadores de todo o mundo ver cinema documental online. A DocAlliance atribui anualmente um prémio, e o DocLisboa exibe este ano o vencedor, Homeland (Iraq Year Zero) de Abbas Fahdel (City Campo Pequeno, sábado 24 às 16h45), e quatro dos outros seis filmes nomeados num programa paralelo.

Os filmes de que aqui falamos não podem, nem devem, ser vistos apenas como testemunhos do quotidiano de países em guerra ou em crise. Embora também o sejam, procuram, acima de tudo, usar a linguagem do cinema documental para encontrar outros modos cinematográficos de comunicar as vivências de quem está, hoje, no olho do furacão, apanhado entre o fim do mundo que conhecia e a necessidade de encontrar espaço para continuar a vida no que se está a construir.

Nenhum deles o faz com mais candura e aperto no coração do que Homeland, onde Fahdel, iraquiano exilado em França, constrói um épico de intimidade à volta da própria experiência da sua família no momento da invasão americana do Iraque. É, literalmente, um diário da vida dos Fahdel antes e depois da invasão de Março de 2003, registo das coisas à medida que vão acontecendo, sem preocupações formais, sem uma narrativa coerente ou consistente – mas é também essa dimensão vérité, sem fachadas, que lhe dá a vida e a energia. É um filme literalmente “em bruto”, com o coração nas mãos, a fazer das fraquezas forças. E sim, é uma experiência de endurance: estamos a falar de seis horas de filme, mas a recepção que Homeland tem obtido por todos os festivais por onde tem sido exibido, não apenas por parte dos profissionais mas sobretudo por parte do público, explica claramente que este filme chega às pessoas de um modo que poucos outros conseguem.

Num primeiro tempo que termina em finais de 2002 – Before the Fall, correspondente à primeira parte do filme - vemos o dia-a-dia nervoso, ansioso, das semanas antes da invasão, os últimos dias do Iraque de Saddam, fechados na casa de Bagdade como se a aproximação da guerra não existisse. É uma espécie de “guerra esquisita” onde Saddam é uma figura distante, fora de campo, que recorda a espaços o Som ao Redor de Kleber Mendonça Filho no modo como se sente uma tensão surda no ar, mas onde tudo continua como se nada acontecesse.

Ao olhar dos adultos numa metrópole fervilhante, o segundo tempo – After the Battle, que arranca em Abril de 2003, poucas semanas depois da invasão americana – responde com o olhar dos sobrinhos adolescentes de Fahdel sobre uma cidade estranha, sinistramente silenciosa e vazia, onde acompanhamos a busca de uma normalidade impossível, tornada pungente pela morte do sobrinho de Fahdel, Haidar, de 12 anos. Foi, aliás, a consciência dessa morte que impediu o cineasta de terminar o filme, mantendo as imagens rodadas em limbo durante uma década antes de se decidir finalmente a revisitá-las – coisa que faz com enorme pudor, sem forçar a nota mas sem escamotear a sua ausência como “buraco negro” do filme. Haidar representava o futuro do Iraque, e a sua morte levanta uma enorme interrogação sobre o que virá a seguir. Que Homeland apenas tenha sido completado mais de dez anos depois, e que essa interrogação continue sem resposta, é sinal da urgência que o projecto de Abbas Fahdel não perdeu no tempo que passou entretanto.

À endurance do realizador iraquiano, a dramaturga e argumentista síria Liwaa Yazji responde com um objecto sofisticado mas não menos tocante. Haunted (City Campo Pequeno, esta sexta-feira às 19h) é uma meditação intimista sobre o desenraizamento, alinhando e entrecortando testemunhos e entrevistas de sírios sobre a sensação de perda de um país e de uma identidade, como se tivessem soltado amarras sem nunca poderem regressar ao porto de onde zarparam. Liwaa Yazji articula igualmente com elegância e alguma poesia o modo como a tecnologia permite fingir uma réstea de contacto com esse mundo que nunca mais vai voltar. Mas é essa sensação de perda – comum aliás a todos aqueles que passaram por uma experiência de guerra e deslocamento independentemente da sua nacionalidade – que a realizadora desenha com sensibilidade que torna Haunted um olhar sobre um futuro interrompido e difuso.

No oposto está Je suis le peuple (City Campo Pequeno, quarta-feira, 28, às 22h15), onde a franco-libanesa Anna Roussillon vê os eventos da Primavera Árabe e da praça Tahrir à distância que vai do Cairo a Luxor. Ao longo de três anos, Roussillon filmou o dia-a-dia de uma família de Luxor e acompanhou a sua aprendizagem da política no Egipto rural - é, de algum modo, equivalente a assistir à chegada do 25 de Abril ao Portugal profundo, uma espécie de “curso rápido intensivo” de democracia onde os Jalal, e os seus vizinhos, sentem na pele a transição de regimes sem que nada pareça mudar ou, sequer, melhorar. “A única coisa que acontece aqui é a pobreza”, como diz alguém às tantas, “e nós somos apenas pobres tontos.” Como se o futuro, na verdade, nunca passasse de uma ilusão.

O crítico fez parte do júri do prémio DocAlliance 2015

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