O dia em que Rafael Bordalo Pinheiro regressou às Caldas da Rainha
Mais de 20 peças de cerâmica, algumas em tamanho gigante, espalhadas pela cidade, constituem a rota bordaliana que foi inaugurada no sábado
É um novo atractivo turístico das Caldas da Rainha. As peças de Bordalo não são gigantes, mas são agigantadas. Medem dois metros de altura e representam figuras populares como o Zé Povinho, a Maria da Paciência, a Ama das Caldas, a Saloia, o Polícia, o Padre, com que mordazmente Rafael Bordalo Pinheiro caricaturizava a sociedade do seu tempo. A estes juntam-se ainda as figuras da sua produção naturalista como os sardões, os caracóis, as rãs, as vespas, as andorinhas, os macacos e, como não podia deixar de ser, os famosos gatos que, nas ruas das Caldas aparecem em versão “gato a caçar” e “gato assanhado”.
A rota bordaliana custou 122 mil euros e foi comparticipada em 85% com fundos comunitários, no âmbito do projecto em curso de regeneração urbana das Caldas da Rainha. As peças, todas em cerâmica, foram executadas na própria Fábrica de Faianças Rafael Bordalo Pinheiro, respeitando moldes, cores, medidas e técnicas herdadas do século XIX.
Foi em 1884 que Bordalo fundou a fábrica nas Caldas. Após a sua morte, o seu filho, Manuel Gustavo (que também tem algumas das suas criações expostas na rota bordaliana) prosseguiu a obra do pai, mas foi a intervenção de um grupo de empresários caldenses, em conjunto com os próprios operários, que, em 1920, salvou a fábrica da falência. Em 2008 ocorreria uma nova situação de pré-falência, desta vez resolvida graças ao empenho directo do então primeiro-ministro José Sócrates, passando então a fábrica para o universo da Visabeira.
Lázaro de Sousa, administrador daquele grupo, disse que “o mestre foi uma fortíssima fonte de inspiração em todas as fases deste processo” e agradeceu à equipa de profissionais que trabalhou neste projecto o empenho e o rigor com que fizeram as peças. O gestor disse que a marca Bordalo Pinheiro é hoje indelével no país e tem, inclusive, ajudado à internacionalização da empresa. A verdade é que já nos finais do séc. XIX e inícios do séc. XX as peças do ceramista (e também caricaturista, jornalista, ilustrador e empresário) ganharam medalhas de ouro em Madrid, Antuérpia, Paris e St. Louis (Estados Unidos).
A identificação das Caldas da Rainha com o legado de Bordalo Pinheiro é enorme. Prova disso foi a inauguração da rota bordaliana, no passado sábado, realizada sob um autêntico temporal, mas acompanhada por cerca de 200 pessoas encharcadas que percorreram as ruas da cidade, procurando segurar os chapéus de chuva das fortes rajadas de vento, mas visitando, um a um, cada ponto onde se encontra exposta uma figura bordaliana.
O percurso, guiado pelo actor José Ramalho, que representou a figura de um Bordalo sempre vivo e irónico, iniciou-se na estação de caminhos-de-ferro, por onde o mestre chegava à então vila termal, vindo de Lisboa. Foi, aliás, na estação que se realizou a cerimónia com entidades oficiais que sublinharam a nova atracção turística da cidade, a parceria entre esta e a indústria local, e o facto de Caldas da Rainha querer recuperar como ícones os seus dois maiores recursos endógenos: a água e o barro.
A ideia desta rota surgiu, curiosamente, de uma aluna do 12º ano, Jéssica Gonçalves, da Escola Técnica Empresarial do Oeste. Na sua PAP (Prova de Aptidão Profissional), a finalista do curso de Turismo, sugeriu há três anos a criação deste percurso. Mas aquilo que era apenas um trabalho académico acabou por ser tornado realidade.
O projecto não é isento de riscos. O presidente da Câmara das Caldas, Tinta Ferreira, apelou à população e à PSP para que evitem a vandalização das peças. As mais emblemáticas estão expostas em habitáculos de vidro, mas muitas estão em espaços públicos e podem ser apreciadas e tocadas pelas pessoas. Algumas estão bem à vista, num diálogo fácil com quem passeia pela cidade. Outras não estão em sítios tão óbvios, como é o caso de uma enorme vespa em cima de um quiosque, ou do lobo no tecto de um acesso a um parque de estacionamento. A aldeia dos macacos (em cerâmica, claro) fica no parque, perto do lago, estando os bichos pendurados por cordas nas árvores. E um bando de andorinhas povoa as paredes do terminal rodoviário da cidade.
A colocação das obras procurou as ruas e locais frequentados por Bordalo Pinheiro quando este viveu nas Caldas da Rainha. A autarquia disponibiliza um folheto com a rota e uma breve explicação sobre as peças. O Polícia aparece junto à antiga esquadra da PSP da cidade. A Saloia está na Praça da Fruta, onde se realiza o mercado diário (o único em Portugal ao ar livre e que decorre sete dias por semana durante todo o ano) e o Padre nas traseiras da casa paroquial.
A emblemática figura do Zé Povinho fica em frente ao edifício dos Paços Concelho num local que no tempo do seu criador era periférico, mas que é hoje uma zona central da cidade. A imagem que representa o povo português - de ar alarve mas manhoso, vítima de todos os poderes mas capaz de se rir de si próprio e de troçar de quem o molesta, que faz um manguito insolente a quem o provoca – permanece agora, vigilante, junto aos poderes autárquicos da cidade.