Viajar de ou para Beja de comboio transformou-se num calvário
Comunidade alentejana perdeu o acesso directo ao Intercidades e ganhou uma automotora “carrancuda” que soma avarias e acrescenta desconforto e incumprimento dos horários.
O Intercidades com destino a Évora e Beja partia às 19h. “Não havia um lugar vago”, recorda Gabriel Gaitinha. Com 20 minutos de atraso, a composição inicia a marcha. O ambiente lembrou ao passageiro vindo de Coimbra as quadras do “Comboio descendente” que Fernando Pessoa escreveu e José Afonso musicou. “(…) Vinha tudo à gargalhada/ Uns por verem rir os outros/E outros sem ser por nada.”
Gaitinha olhou de uma ponta à outra da carruagem e reparou que existia “alegria, gargalhadas, entusiasmo…” Era sexta-feira e, por este facto, o número de jovens que frequentam o ensino universitário e rumavam a casa no fim-de-semana, marcava o ambiente de boa disposição e de alguma ansiedade. As crianças, animadas, oram riam ora faziam birras, mas ninguém comentava o atraso de 20 minutos na partida.
Após cerca de hora e meia de viagem, a composição parou na estação de Casa Branca. “Faltavam 10 minutos para as 21h”, recorda Gabriel Gaitinha. Os passageiros com destino a Beja fazem aqui o transbordo para o comboio regional, uma contrariedade que acontece, desde 2011, altura em que a CP suspendeu o Intercidades directo para a capital do Baixo Alentejo.
António Marques Colaço, outro dos passageiros com destino a Beja, sublinhou as dificuldades das famílias com filhos “carregadas de malas, sacos e embrulhos”. Imagina o que será o transbordo nos dias de chuva ou sol intenso já que não há resguardo adequado na estação de Casa Branca.
Descreve o que aconteceu a seguir. “O comboio não pegava. Meteram-se debaixo da máquina e, porrada daqui, porrada dali, mesmo assim não o punham a andar”. Os passageiros começam a revelar alguma incomodidade. Até que sentem um puxão forte e o regional retomou a marcha. A calma regressa. Poucos quilómetros andados, a composição parou novamente no meio de nada.
Houve-se um assoprar forte, que pareceu de ar comprimido. Alguém comentou: “Isto ainda vai rebentar”. Uns riem, outros resmungam “e o revisor, coitado, que também faz de mecânico, atravessou o interior da carruagem desfraldado, limpando a cara dos sinais de esforço”, observou Marques Colaço.
Quando os sinais de impaciência já se começavam a revelar, a composição retoma a marcha, para voltar a parar mais adiante. Gabriel Gaitinha regressa a Fernando Pessoa. “Enquanto na primeira parte do poema existe boa disposição, alegria… a terceira estrofe denota o estado de alma de pessoas cansadas, resignadas: “Mas que grande reinação! /Uns dormindo, outros com sono/ E outros nem sim nem não”.
Com uma hora de atraso, o comboio regional entra finalmente na gare da estação de Beja. A mole humana bloqueia a porta de saída. O cansaço, revelador da tensão acabada de viver, é superado pelo reencontro familiar, os beijos e os abraços misturados com a pergunta quase unânime: “Então, o que é que aconteceu?”
O episódio retratado é apenas mais um entre muitos que acontecem desde 2011, data da suspensão do Intercidades directo de e para Beja. Em forma de compensação, a prometeu novas automotoras, “modernizadas”, com um conforto “equivalente” aos comboios Intercidades, prometendo até que a viagem entre Lisboa e Beja “irá durar menos quatro a cinco minutos”.
Acontece que os atrasos na partida e na chegada a Beja têm sido uma constante. Mas este não é o único problema a justificar os protestos crescentes da população: São vários os comboios que partem sem que a bilheteira esteja aberta, o que obriga os passageiros a comprar bilhete quando chegam à Estação Oriente, em Lisboa.
Florival Baioa, membro do movimento “Beja Merece” que reivindica o regresso do Intercidades e a electrificação da linha ferroviária entre Casa Branca e Beja, garante que “há passageiros a utilizar o Intercidades sem pagar bilhete porque não têm como poder fazê-lo”. E acusa a CP de, com este comportamento, ter um propósito: “Acabar com a ligação ferroviária”.
A empresa colocou em Beja uma automotora “carrancuda” que “avaria com frequência”, critica Baioa, destacando o enorme caudal de queixas que recebe das pessoas afectadas pelos atrasos “constantes” deste transporte.
Uma exposição apresentada em Maio de 2014 pela concelhia de Beja do PS à administração da CP referia que “as composições têm avarias frequentes, motivando atrasos de algum significado, não têm ar condicionado ou, tendo, o mesmo estará frequentemente avariado, notando-se a sua total ausência sobretudo nos tórridos períodos de Verão. As temperaturas no interior das composições que circulam, sobretudo da parte da tarde, são, frequentemente, próximo do insuportável.”
Na resposta, a CP assumiu que não existiam "condições a curto e a médio prazo para substituir ou melhorar o material circulante que liga Beja a Casa Branca e vice-versa”.
O PÚBLICO solicitou à empresa Infra-estruturas de Portugal esclarecimentos sobre o estado actual das ligações ferroviárias de e para Beja, mas esta entidade alegou que competiria à CP fazê-lo, mas esta escusou-se a responder às perguntas formuladas.