De que se ri Passos Coelho?
É bom que Costa continue a recusar maiorias negativas e seria excelente que Passos reduzisse um pouco a sua boa disposição.
A posição mais difícil é a de António Costa, não apenas porque saiu fragilizado destas eleições (a sua missão era ganhar) mas porque tem nas mãos o desfecho político das negociações para um governo que seja estável (se isso ainda for possível) e que não traia as escolhas dos eleitores, que deram a vitória à coligação. Duas condições recomendáveis, porque o futuro não se apresenta risonho. Convém lembrar o enquadramento europeu e mundial em que vivemos. Todos os dias há novos dados sobre a desaceleração da economia mundial, juntando ao fraco crescimento (ou à recessão) das grandes economias emergentes as perspectivas pouco animadoras das economias europeias. Mas não é este o único sinal de preocupação. A escalada de guerra na Síria, com o envolvimento militar directo da Rússia, não augura nada de bom e exige à Europa e aos EUA (ou seja, à NATO) uma nova estratégia de contenção do aventureirismo de Putin. Portugal não se pode colocar à margem. O anel de fogo, citando Carl Bildt, que rodeia hoje a União Europeia terá necessariamente um impacto económico. A segurança tem sempre um preço elevado, que os EUA já não estão dispostos a pagar sozinhos. Nem o PS nem a coligação podem deixar de lado esta realidade, quando se sentam à mesa para negociar.
2. Ora, duas reuniões bastaram para mostrar até que ponto esta negociação é difícil para o Partido Socialista e perigosa para o país. A primeira surpresa veio do PCP, com a sua súbita mudança de 180 graus em relação ao PS, que está disposto a apoiar em qualquer circunstância. À primeira vista, seria um corte radical com uma história que já leva 40 anos, ao longo da qual os socialistas foram sempre o “inimigo” principal. O facto, como sabemos, tem a sua origem na génese da nossa democracia. Ninguém tem culpa que o PCP tenha decidido manter-se fiel à velha ideologia comunista, rejeitando qualquer aggiornamento como aconteceu aos outros partidos comunistas europeus depois da queda do Muro. Pode admitir-se que o PCP precise de demonstrar às suas bases que a “luta pelo povo” que proclama não está sistematicamente destinada ao fracasso. A sua capacidade de mobilização (incluindo a CGTP) já não é o que era. Seja como for, a sua oferta, demasiado descarada, parece mais uma armadilha do que uma mudança. Aliás, bastaram dois dias para que Jerónimo de Sousa acusasse os socialistas de não quererem formar um “governo de esquerda” que lhes foi gentilmente oferecido pelo PCP. Alguns socialistas apressaram-se a saudar a mudança, justificando-a com o facto de o Muro já ter caído há 25 anos. Outros argumentam que os comunistas não levaram para a mesa das negociações nem o euro, nem a Europa, como se isso fosse possível. O euro e a Europa são o pão nosso de cada dia da vida dos seus Estados-membros. Foi este o caminho que o país escolheu, sufragado por todas as eleições que apoiaram maioritariamente os dois partidos europeus do regime.
3. O Bloco é uma realidade diferente, que também está a medir o que lhe convêm mais: ser o Syriza Parte I, que conseguiu ocupar o espaço político do Pasok; ou ser o Syriza Parte II, que aceitou realisticamente as regras de Bruxelas, mesmo correndo o risco de se transformar num partido social-democrata. Como a Grécia prova, vivemos momentos de uma tal incerteza que o que era impossível ontem pode ser normal amanhã. Mas não convém exagerar nas comparações. A parte mais surpreendente do Bloco versão Catarina foi que roubou mais eleitores da coligação do que o PS. A parte infeliz é que, entre os seus cinco companheiros de direcção (criada para impedir que se partisse ao meio), estão pessoas sem a menor disponibilidade para abdicar da sua agenda “leninista” e radical. E convém lembrar também que o somatório dos deputados do PS e do Bloco não dá maioria. Dito isto, seria demasiado arriscado para o PS constituir um governo apoiado por ambos, PCP e Bloco, porque nunca saberia o dia e a hora em que lhe retirariam o tapete, abrindo espaço para novas eleições que dividiriam ainda mais os socialistas. O problema é que, do outro lado, Costa parece encontrar a mesma táctica para obter precisamente o mesmo resultado.
4. O encontro de sexta-feira na sede do PSD e as declarações de Passos Coelho no final também não auguram anda de bom. O líder socialista disse-se “muito desiludido” com o encontro, sem fechar a porta a outros. O primeiro-ministro mostrou-se divertido e bem-disposto, quando tem pela frente a tarefa exigente de constituir um governo minimamente estável de que o incumbiu o Presidente. É ele, e não António Costa, quem tem de garantir os compromissos necessários para abrir caminho a essa solução. Onde quer chegar com esta aparente displicência? Passos ganhou as eleições em circunstâncias excepcionais, tem todo o direito a governar, por mais que muita gente insista que há uma “maioria” contra ele. Como disse Costa, é uma “maioria negativa” que não se apresentou aos eleitores e, sobretudo, que não existe politicamente falando. Aceitá-la seria trair a vontade da maioria dos eleitores que voltaram a escolher os partidos que têm em comum a mesma ideia do que é uma democracia liberal e qual é a opção estratégica do país.
Passos sabe isso e resolveu, porventura, travar um braço-de-ferro com Costa? Qual é o seu cálculo? Não aceitar constrangimentos para aplicar a sua agenda política (claramente de direita), esperando tranquilamente que o PS o faça cair no Parlamento, libertando-o para novas eleições que penalizariam os socialistas e abririam nova oportunidade à maioria absoluta? Foi essa a estratégica de Cavaco em 1985-87. Com um pequeno senão: nem o país nem a Europa viviam o grau de incerteza e as dificuldades que hoje vivemos. Mário Soares tratara de endireitar as contas públicas e a Europa preparava-se para nos inundar de fundos. O nosso drama é precisamente que os compromissos são mais necessários do que nunca mas também mais improváveis do que nunca.
5. António Costa foi para a campanha com uma alternativa que coubesse no quadro do euro. Por mais que o acusem de ter-se deixado enredar por ela, guinar à esquerda seria suicídio. A única alternativa, mesmo que extremamente exigente, é manter-se no centro-esquerda (que é o lugar do PS) e resistir aos cantos de sereia do PCP e do Bloco. Terá de deixar passar um governo da coligação e preservar a sua autonomia no Parlamento, substituindo a “guerra” ao governo por uma “guerrilha” (no bom sentido da palavra) em volta de algumas coisas que sejam essenciais. O resto compete à coligação: perceber que perdeu a maioria e agir em conformidade nas negociações parlamentares mais importantes. Isto seria o ideal, preservando aquilo que é comum aos dois maiores partidos: a Europa.
Entretanto, em Belém, persiste uma enorme ambiguidade. Quando falou na segunda-feira, Cavaco descartou os dois partidos da esquerda radical, lembrando os compromissos internacionais do país. Mas, ao mesmo tempo, dois dos seus assessores publicavam no Expresso um artigo que, bem lido, parece ir em sentido contrário: há países europeus em que o partido que ganhou não foi para o governo (vide Dinamarca), e outros que resultam de compromissos de cinco ou seis partidos para garantir algumas coisas básicas no médio e longo prazo (o caso da Suécia). Nesses dois países há forças populistas e antieuropeias que suportam, ou não, os respectivos governos. Em que é que ficamos, para além da constatação de que não somos nem nórdicos, nem ricos, fazemos parte do euro e não temos a vasta cultura do compromisso que sempre os caracterizou?
Fica apenas uma conclusão: é bom que Costa continue a recusar maiorias negativas e seria excelente que Passos reduzisse um pouco a sua boa disposição.