Os zombies da TV "são o Estado Islâmico, o ébola, as forças negras do planeta..."
Nas filmagens de The Walking Dead, procuramos o motivo pelo qual os seus vivos e os seus mortos-vivos são tão populares. Andrew Lincoln, Greg Nicotero e Tovah Feldshuh dão uma ajuda.
Em The Walking Dead, o inferno são os outros humanos, mas a ameaça primária são os zombies - e quando as câmaras se desligam, há um carinho grande pelos mortos-vivos. Andrew Lincoln, acabada uma cena de acção e ainda a pingar suor e água, ferida falsa no nariz e barba rala, elogia a sua beleza e o trabalho de caracterização e efeitos visuais. Mais tarde, Tovah Feldshuh, que interpreta Deanna Monroe, a líder da comunidade fictícia de Alexandria onde deixámos a série na quinta temporada, completa a ideia de que os zombies são nossos amigos: “Como actores devemos tudo aos walkers”, a gíria de Robert Kirkman, criador dos comics (2003) e produtor executivo da série televisiva (2010) que neles se baseia, para zombies ou mortos-vivos.
A cultura popular também os acolheu e um dos seus mais globais sintomas é esta série de televisão vista por mais de duas dezenas de milhões em todo o mundo – no último episódio bateu recordes, com cerca de 20 milhões de espectadores, entre visionamentos em directo e em diferido, só nos EUA, fora os 4,4 milhões que vêem a série nos canais Fox em todo o mundo e a incontornável pirataria.
As últimas horas de Setembro passam sobre a Geórgia. Vêem-se algumas coisas que não se podem contar - sigilo, que as gravações já vão adiantadas e só esta segunda-feira é que a série regressa aos canais internacionais da Fox, que leva a série do AMC a 126 países fora dos EUA. Os fãs são vorazes e até já drones usaram para tentar espreitar o que vem aí na sexta temporada da viagem dos sobreviventes, liderados pelo ex-polícia Rick Grimes, por uma América devastada por uma infecção que dizimou, com a ajuda dos extremos da fealdade moral humana, grande parte da população.
No spoilers, portanto. Rick Grimes luta com uns zombies, mas isso é business as usual em The Walking Dead. Mas tudo o resto é uma festa para os sentidos. A equipa trabalha em vários locais de filmagens e em várias parcelas de episódios mais ou menos adiantados desta temporada de 16 capítulos. Usam t-shirts com ilustrações gore alusivas ao seu trabalho nas anteriores temporadas, cintos com ferramentas múltiplas e carregam chapéus para criar sombras para o elenco, vivo ou morto-vivo. E avisam que esta será uma temporada de recordes - há mais zombies nos primeiros episódios do que no conjunto das primeiras cinco temporadas, por exemplo. Centenas, milhares. Morgan, personagem que acolheu Rick na primeira temporada, por lá anda e haverá também alguns jogos com o tempo.
O episódio que esta segunda-feira é transmitido na Fox às 22h15 é como “um filme de monstros” para Lincoln e ou, para o showrunner Scott Gimple, responsável operacional pela série, um trocar de voltas à eterna dualidade de Walking Dead. Quem nos conta a perspectiva de Gimple é Greg Nicotero, referência mundial de caracterização e efeitos visuais, produtor executivo da série e que terminará a temporada com o maior número de episódios realizados - 15, entre os quais o First Time Again desta segunda-feira. “Scott dá-nos um tema a cada temporada para sabermos o que esperar, resumido-o num par de frases que normalmente envolvem a referência ao facto de que ‘esta não é mesmo uma série de zombies, é uma série com grandes personagens e os zombies são pano de fundo’. Este ano, a frase era ‘esta é decididamente uma série de zombies’”, sorri Nicotero.
Os figurantes que fazem as vezes de walkers são sobretudo jovens, homens e mulheres. Os zombies preferem as calças - as saias parecem obstáculos proibitivos no apocalipse. São quatro as categorias de zombies, explica-nos um dos técnicos de efeitos visuais, e os “heróis”, os que surgem em primeiros planos, demoram cerca de 1h30 a criar com próteses moles e pinturas. Os intermédios são sobretudo maquilhados e os walkers de background usam máscaras. Fora de cena, eis os momentos alegremente normais da vida de um zombie à espera: fumam cigarros electrónicos à sombra, relaxam atrás de óculos escuros e alguns agarram uma caixinha transparente - lá dentro repousam os seus dentes apodrecidos.
“Não podemos evitar o medo”
Em 2007, um pequeno canal de televisão por subscrição que transmitia só cinema lançava-se na produção de séries - Mad Men, um ano depois Breaking Bad e em 2010 The Walking Dead. Uma série que parecia fadada ao nicho e que tocava cada vez mais público generalista - apesar de, temporada a temporada, ter sido irregular na qualidade. É “como um Cavalo de Tróia”, diz o britânico Andrew Lincoln no seu melhor sotaque americano e dentro das botas esburacadas que calçam a sua personagem desde 2010. “Chegámos como uma série de género e, se tudo correr bem, partimos o coração das pessoas”.
Um fã de horror desde criança - “conheci George Romero aos 12 anos” (e anos mais tarde viria a trabalhar com ele) - Greg Nicotero está na série desde o primeiro episódio como supervisor da caracterização. Agora é uma das figuras mais importantes do filão. Afasta a ideia de “nicho” e prefere falar da série como “uma óptima história num género que é popular desde que o cinema começou”, debitando exemplos: “Frankenstein, Drácula. As pessoas sempre adoraram ter medo, mistério, suspense, emoções e arrepios”. O colaborador regular de Tarantino ou Sam Raimi defende que esta é “uma história que nunca tinha sido contada na televisão”.
Alguma ficção é uma forma de processar medos, ansiedades, a inquietação do momento. Nas conversas e na reflexão sobre o tema invocam-se o psicólogo e teórico Bruno Bettelheim, autor de A Psicanálise dos Contos de Fadas, a geopolítica actual, o fantasma do nuclear no século XX ou as certezas de Stephen King: “A grande ficção de terror é quase sempre alegórica”. Ouvindo os protagonistas de The Walking Dead falar, a série é como um rim que filtra as impurezas do mundo, uma noite por semana, para depois prosseguirmos as nossas vidas de escritório e água engarrafada. “Por isso é que Walking Dead é útil para a psique humana a tão grande escala”, frisa a veterana actriz da Broadway Tovah Feldshuh.
Michael Cudlitz (o ruivo militar Abraham Ford na série) ajuda a responder à pergunta (normalmente acompanhada por uma careta) que um fã de The Walking Dead ouve tradicionalmente de quem não comunga do fenómeno: “Mas o que é que tem uma série de zombies?” “Dizer ‘as pessoas gostam porque é sobre zombies’ é idiota”. Sobre o que é que pensa que é? “Tem a ver com quem somos culturalmente e com os conflitos que decorrem em todo o mundo”.
Feldshuh, uma força da natureza declamadora, é enfática. “Se tivermos a sorte de a nossa mente visitar a metáfora, os walkers não são walkers. São o Estado Islâmico, são o ébola, a sida, o cancro terminal, o tribalismo, as pessoas que foram a África e trouxeram os negros para os escravizar. São as forças negras do planeta”, diz. O sucesso internacional crescente da série coincide com o “processar das armas de destruição maciça, do Irão, de uma guerra terrivelmente mal travada por George W. Bush”. Tovah Feldshuh, que chegou à série há pouco mais de um ano e como uma versão feminina de um papel que nos comics era de um homem, vê também nela a possibilidade de ver “quem, em combate, permanece um ser humano por inteiro, um adulto, e quem se transforma num animal. O rio da experiência humana comum é constantemente tocado nesta série e por isso é que acho que as pessoas a vêem”.
Andrew Lincoln está há seis anos na pele de Rick Grimes - “adora os seus adereços”, peças únicas que usa religiosamente, do relógio ao revólver e às tais botas gastas, como confidencia o prop master (aderecista) John Sanders - e defende que “a grande ficção científica e as histórias de nicho, de género, contam as melhores histórias sobre como é viver no planeta naquele dado momento. Philip K. Dick, William Golding... Penso nessas grandes obras, entre guerras, em que há paranóia e medo. E não podemos evitar o medo neste momento, o medo é-nos vendido todos os dias. Estamos a contar uma história muito assustadora, mas é sobre sobrevivência e, em última análise, esperança”.
Senoia, capital zombie
A série mais vista da televisão por subscrição norte-americana teve um importante papel no renovar do interesse do cinema, televisão, videojogos e da academia pelos zombies - em Princeton e em Stanford estudou-se nos últimos anos o fenómeno dos mortos-vivos para falar de neurociência ou as expressões pós-II Guerra da mentalidade survivalist, que pratica a preparação para perturbações políticas ou sociais que periguem a ordem pública. Até os Centers for Disease Control, a agência federal dos EUA encarregue da saúde pública, lançaram em 2011 uma campanha de Preparação para Zombies - que ainda está activa sob o objectivo confesso de aproveitar o fascínio popular para chegar “a novos públicos com mensagens sobre como estar preparado” para catástrofes naturais ou epidemias.
The Walking Dead é uma série cujos fãs “têm todas as idades. Não é o tipo de 19 anos do metal com a t-shirt dos Metallica, os braços tatuados e cabelo comprido - acabei de me descrever há 40 anos”, ri-se Nicotero, ciente da transversalidade da série. “Conseguimos transcender as fronteiras das mães e das avós. É uma estranha ligação familiar que adoro. É como Star Trek ou Twilight Zone, ou Ficheiros Secretos”, diz, que “mudaram a paisagem da televisão e a forma como as pessoas viam as séries. Estamos a fazer a mesma coisa e é o trabalho mais difícil que já tive”. Conhecida por, a par de Guerra dos Tronos, não hesitar em eliminar personagens queridas e exigir bastante dos seus espectadores, é povoada pela morte, pela violência, moralidade e pelo conceito de civilização. O que resta quando tudo colapsa?
É uma ideia que surge em Senoia, uma sonolenta cidadezinha do sul americano em cuja Main Street foi filmada parte da cidade de Woodbury na terceira e quarta temporadas. Nos últimos anos ali nasceu a Woodbury Shoppe, loja oficial da série que simboliza os visitantes e o dinheiro que os walkers trouxeram a Senoia. Até uma loja de antiguidades anuncia na montra que tem “zombie t-shirts” e “zombie souvenirs”.
No final da quinta temporada, em Março, o grupo de Rick, Daryl, Carol e Michonne debatia-se com a impreparação dos habitantes de uma cidade-oásis de nome intencionalmente carregado de significado histórico. Em Alexandria encontraram duches, flirts, bolachas e uma ex-congressista como líder. Ora Alexandria existe. Na Gin Property, o nome mundano de Alexandria, os relvados e os arbustos estão penteados. É uma propriedade junto à linha de comboio que atravessa Senoia (pronunciada bem à sul como “Senói”) onde vivem de facto pessoas, onde há casas à venda, vizinhos a passear o seu caniche, relvados aparados e arbustos penteados. Ainda assim e tal como na imaginação de Robert Kirkman, ganhara para a série uma vedação de chapa ondulada a toda a volta para manter o mundo lá fora.
Nas filmagens, não vimos Robert Kirkman, que “está ocupado a presidir ao mundo”, como brinca a co-produtora executiva Denise Huth, gerindo três séries (Fear The Walking Dead, The Walking Dead e a futura Outcast, já em rodagem) e o seu trabalho na BD. Colabora de perto com o showrunner e os argumentistas. É “flexível na adaptação do material” base que criou, diz Huth, embora tenha poder de veto - e foi muito específico com o casting e o aspecto da personagem Michonne, por exemplo, uma das favoritas do público a par de Daryl Dixon, a breakout star da série e que não existe nos comics. “É o mundo do Robert e nós só estamos cá”, ri-se Huth.
Esse mundo tem como centro Rick Grimes. “É o melhor papel que eu tive”, diz Andrew Lincoln, que passa os sete meses de trabalho na série em personagem e é elogiado pela equipa como uma espécie de líder.
“A minha viagem, na primeira metade da temporada, é sobre se estas pessoas nesta comunidade serão capazes de sobreviver, de aprender as competências que nós aprendemos. Sou bastante duro”, diz sobre as ameaças “mais assustadoras e maiores” de sempre na intriga que aí vêm. Um dia, aceitaria que também Rick pode desaparecer da história?, perguntam-lhe. Vê num futuro longínquo o fechar de ciclo para a sua personagem “para que a série possa avançar. Adoro este tipo, mas seria um grande episódio”.
O PÚBLICO viajou a convite da Fox International