Perito identifica dois quadros falsos de Albers em Portugal
Como é que se identifica uma pintura falsa atribuída a Josef Albers? Procurando a magia e descobrindo que ela não está lá. Que magia? A que transforma cores em “milagres”, a de um homem que pinta para mudar o mundo.
"Apesar do esforço feito para que parecessem originais, não precisei de olhar para as pinturas mais do que alguns minutos para as catalogar como falsas", diz ao PÚBLICO, sem avançar quaisquer pormenores que permitam identificar o coleccionador ou o negociante a quem foram compradas. O “esforço” a que se refere passa, explica, por forjar emails em que o próprio Weber garantia que uma das obras faria parte do catálogo raisonné que a fundação está a preparar e selos de galerias por onde teriam passado – colocados no verso das obras -, tudo com o objectivo de aumentar a credibilidade das falsificações. Sem sucesso.
Sempre que lhe pedem que analise uma obra, os olhos experientes do director da fundação, cuja principal missão é conservar e dar a conhecer o trabalho dos dois artistas da Bauhaus, escola alemã do começo do século XX associada ao modernismo que combinava a arquitectura, o design, a arte e o saber fazer artesanal, prendem-se às tintas, mais precisamente à forma como são aplicadas sobre a madeira (placas de aglomerado cobertas por camadas de gesso, cuidadosamente preparadas pelo jardineiro e assistente do artista). “Josef sempre me disse que pintava da mesma maneira que espalhava manteiga no pão e isso nota-se. Pintava directamente sobre a superfície branca e nunca punha uma cor sobre outra, nunca misturava. A forma como aplicava as tintas é muito característica e é por isso que é na superfície que identifico logo um falso.”
Para além desta análise material, Nicholas Weber equaciona o “efeito” que a pintura é capaz de criar, um dado bastante mais subjectivo, que conta com a sensibilidade de quem olha, com o conhecimento que tem da obra do pintor e com a experiência de convívio com Albers originais.
“Um Albers verdadeiro está cheio de ilusão, de pequenos milagres. Os quadrados parecem destacar-se à medida que nos aproximamos ou afastamos, num movimento permanente. As cores planas parecem ter variações delicadas e mudam segundo o contexto, consoante as outras cores que têm ao lado [três ou quatro num painel, sempre com uma moldura branca, a cor da base]. O mesmo vermelho que brilha de uma maneira nesta pintura pode parecer totalmente diferente noutra.”
Em arte, como dizia o pintor alemão que, com a mulher Anni, se radicou nos Estados Unidos em 1933, quando os nazis encerraram a Bauhaus depois de perseguirem os artistas e professores a ela ligados, 1+1+1 tinha de ser mais do que 3. Nas pinturas que viu em Lisboa, Weber garante que 1+1+1 era apenas e só igual a 3. “Falta-lhes magia”, falta-lhes aquele poder de encantamento que, conta, manteve Colm Tóibín, o escritor irlandês que foi ao Connecticut visitar a sede da fundação que este historiador de arte e biógrafo de pintores dirige há 35 anos, numa sala com oito pinturas de Albers durante cinco horas seguidas, sem sequer se levantar para ir à casa de banhou ou para beber água. “Um Albers verdadeiro pode manter-nos hipnotizados durante anos. Tóibín sentiu aquela presença que só um original tem e deixou-se ficar. Conversámos muito sobre essa dimensão metafísica da sua pintura.”
Vocabulário mínimo
Homenagem ao Quadrado é, à primeira vista, uma série repetitiva (pintou mais de 2000), mecânica, de cores planas e de grande racionalidade. Josef Albers (1888-1976) usa, em cada um dos painéis, três ou quatro cores a óleo, tinta que lhe permite dar a sensação de transparência, essencial à criação de todas as ilusões que transformam estas pinturas em territórios sofisticados de experiências infinitas. Experiências que jogam, por exemplo, com a proporção e o posicionamento dos quadrados no plano, sugerindo volume, profundidade, movimento. E atraindo, sobretudo, pela intensidade das cores, que na relação umas com as outras e com a moldura branca que nunca falta parecem incandescentes. Tudo somado, explica Nicholas Weber, cria o tal “efeito máximo com o mínimo de meios”, capacidade tantas vezes associada ao seu trabalho e ao de Anni (1899-1994), que se dedicava sobretudo ao desenho para têxteis, sendo também uma “tecedeira incrível”.
“Ambos abraçam um vocabulário mínimo, a ideia de que, vivendo com simplicidade, se pode encontrar a verdadeira beleza, de que usando poucas palavras se pode criar expressões poderosas, de que apenas com algumas cores ou só uma linha se pode criar algo milagroso.” Uma atitude que partilham na arte e na vida e que orienta hoje boa parte do trabalho humanitário que a fundação faz em aldeias remotas do Senegal, onde já construiu uma maternidade e um centro para as artes – o Thread (palavra em inglês que tanto significa linha como fio, evocando ao mesmo tempo o universo de Josef e de Anni) , que foi inaugurado em Março, é um projecto da arquitecta japonesa Toshiko Mori, construído com materiais e técnicas locais, por homens da comunidade -, e para onde planeia uma escola que muito teria agradado ao pintor alemão.
Josef Albers, garantem os que com ele conviveram e o muito que escreveu, via na educação uma continuidade natural da sua arte (e vice-versa). Ensinar a ver, dizia, fazia parte da sua maneira de estar desde que começara a dar aulas numa escola primária na cidade onde nasceu, Bottrop. Na Bauhaus e, mais tarde, na Black Mountain College, faculdade que abriu no ano em que os Albers chegaram aos Estados Unidos e que teve um papel importante na arte americana do século XX (por lá passaram nomes como Robert Rauschenberg e Cy Twombly), manteve a mesma atitude.
Havia nos Albers uma ética que atravessava todo o seu universo pessoal e profissional. Da Bauhaus trouxeram o rigor das formas e uma dedicação ao trabalho manual que está presente em tudo o que fazem. Esta ética levava-os a acreditar, diz Weber, que a arte podia mudar o mundo, transformar a vida das pessoas, contando que se esforçassem por fazer tudo o que lhes competia “correctamente”. É por isso, defende este historiador de 67 anos que muito tem escrito sobre figuras como o arquitecto Le Corbusier e o pintor Balthus e que está a preparar uma biografia do modernista Piet Mondrian, que é muito provável que Josef Albers gostasse de ter conhecido o coleccionador lisboeta que comprou os dois falsos.
“Não creio que o homem que conheci, genuinamente encantador, tenha comprado as duas pinturas a pensar no dinheiro que podiam render-lhe no futuro. Acho que o fez porque gostou delas. Mas o mais surpreendente para mim que passo a vida a encontrar pessoas pouco escrupulosas quando se trata de autenticar obras, é que este coleccionador lidou com a notícia que lhe dei, e que ninguém quer receber, de forma graciosa, procurando fazer a coisa certa”, explica o historiador, que já muitas vezes foi chamado para escrutinar painéis atribuídos ao artista alemão, cruzando-se muitas vezes com galeristas, coleccionadores e intermediários. Não é raro, exemplifica, meter-se num avião de propósito para viajar dos EUA para a Europa e, chegado à galeria que tem o suposto Albers para vender, descobrir que a pintura acaba de sair pela porta das traseiras sem que tenha podido olhar para ela.
Pelo contrário, acredita Weber, o coleccionador de Lisboa tudo fará para que os falsos que comprou saiam do mercado e para que o que lhe aconteceu a ele não volte a repetir-se, pelo menos com as mesmas pinturas. Tentará reaver o seu dinheiro junto da pessoa que lhas vendeu e de quem deverá ser, segundo o director da fundação, um “bom cliente”.
Nicholas Weber vai acompanhar o processo e procurar garantir que as pinturas sejam entregues à fundação ou destruídas na presença de um dos seus representantes, como já aconteceu no passado. “Removendo os falsos do mercado removemos também as dúvidas. Não quero ver a obra de Josef associada a algo que não tenha o seu poder, a sua subtileza, a sua magia. E nestas duas pinturas de Lisboa ele não está lá.”
65 falsos
Este historiador de arte que conheceu os Albers quando tinha apenas 22 anos e estudava na Universidade de Yale, identificou falsificações em galerias tão prestigiadas como a Christie’s e em museus como o de Bonna, na Alemanha. Uma das que denunciou, lembra, estava à venda numa feira de arte por 1,2 milhões de dólares (mais de um milhão de euros), um “preço habitual” para muitas das pinturas da série Homenagem ao Quadrado, que o artista começou quando tinha já 62 anos.
No caso de Bona, recorda, Weber avisou o museu de que tinha na parede uma pintura falsa, mas o seu director optou por omitir esta informação do privado que a emprestara para a exposição, simplesmente porque tinha sido a sua namorada, galerista, a vendê-la ao coleccionador que, mais tarde e de boa fé, a devolveu ao mercado. Na maioria das vezes, diz, as histórias que rodeiam os falsos não são a preto e branco, são incrivelmente pessoais.
Neste momento, e pelas contas da fundação, existem 65 falsos de Albers, muitos ainda a circular. No início dos anos 1990, houve uma exposição em Bolzano, Itália, que reuniu muitos deles. “É claro que algumas falsificações são mais sofisticadas do que outras, mas quando há dúvidas, basta pôr a pintura ao lado de uma que sabemos ser verdadeira. De repente, uma resulta e a outra não. Mas as situações em que há dúvidas são poucas. Eu conhecia-o bem, vi-o trabalhar muitas vezes, sei que luzes usava, o peso dos seus painéis, conheço a sua mão.”
Weber e os Albers eram amigos. Desde que entrou na sua casa, em 1970, até hoje, diz, mantém o “fascínio” por este casal de artistas – “uma seita de apenas duas pessoas”, descreve-o assim – e pela sua obra. Recorda muitas vezes a austeridade de Anni e a capacidade que tinha de falar de forma apaixonada sobre qualquer assunto, recorda as longas conversas que tinha com Josef sobre artistas como Klee, Kandisky, Mondrian ou Cézanne, para ele “o verdadeiro deus”, e de como preferia a exuberância do barroco e do rococó, em todas as suas demonstrações de excelência manual, aos rigores do gótico.
“Era uma casa simples, branca, com apenas quatro pinturas nas paredes, onde encontrei duas pessoas de cabelos grisalhos que viviam para fazer arte e que acreditavam no seu poder transformador”, diz, garantindo que não havia espaço para brincadeira alguma. “Eles não faziam jogos, não tinham vida social, não queriam conhecer nenhuma das pessoas famosas que não se importariam nada de lhes bater à porta...”, como Jacqueline Onassis, que visitou Anni depois da morte de Josef e que, garante Weber, de tão entusiasmada, entrou em modo “rapariguinha de liceu” e chegou a dizer àquela que era a última sobrevivente da Bauhaus: “Sabe, sra. Albers, eu também já vivi numa casa toda branca.”
As viagens ao México – fizeram 14, a primeira em 1935 –, a produção intensa nos respectivos estúdios, sempre sem que um interferisse na esfera do outro, a curiosidade e a experimentação incessantes deixaram marcas na sua arte. E o trabalho teórico de Josef, o ensino nas universidades de Yale ou de Harvard, alimentou gerações. “Quando vejo uma obra falsa atribuída a Josef sinto que alguém o traiu. Ele teria detestado toda esta conversa que mistura arte com dinheiro, que confunde dinheiro e valores.” Ele preferiria passar uma tarde a falar de um pintor medieval como Duccio ou do prazer puro que sentia sempre que Nicholas Weber, regressado de uma viagem qualquer, lhe levava presunto de Vestefália e pão de centeio.