Com o precipício debaixo dos pés
Durante anos, o jornalista Javier Ayuso (Madrid, 1956), hoje director adjunto do El País, escreveu sobre assuntos económicos. Esta semana, a seguir à confusão que foram as eleições na Catalunha, escreveu sobre um pormenor notado por toda a Espanha: a cara tensa com que Artur Mas apareceu para o discurso de vitória. Ayuso chamou-lhe “sorriso congelado” e, num esforço para o tentar descodificar, contou esta história: “Na banca, dizem que quando estás numa reunião de fusão de empresas e não vês o punhal em cima da mesa é porque já o tens espetado nas costas. Deve ser o que Mas tem sentido nas últimas horas.”
Nesta fotografia, Lluis Gene captou parte desse instante. Se não soubermos o que é, diríamos que este homem está a celebrar uma vitória? Não tem o famoso “sorriso Duchenne”, que expressa a felicidade genuína, e parece até mostrar algum desprezo. Artur Mas está no palco e acabou de dizer: “Temos a maioria de que precisávamos para fazer o que queríamos.” Mas olhando ninguém acredita que ele acredita. Atrás está Raul Romeva, cuja linguagem corporal também foi amplamente comentada. Não me lembro de nenhuma eleição que tenha suscitado tamanha análise corporal. É mais uma originalidade que a política catalã nos oferece. E não é difícil perceber porquê.
Todo o processo independentista tem sido bizarro. Artur Mas, de direita, juntou-se à CUP, de uma esquerda radical que faz o Podemos parecer um partido democrata-cristão. Juntos conseguiram a maioria absoluta no Parlamento. Tiveram no entanto menos de 48% dos votos. Ou seja, menos de metade dos catalães quer separar-se da Espanha. Ganharam, mas perderam.
Para aumentar a confusão, a CUP nunca quis Mas à frente da Catalunha. Em Portugal, conhecemos histórias de complexas alianças. Aqui, o requinte catalão é particular: no exacto momento em que Mas declarava a “vitória” do plebiscito, a CUP declarava a “derrota” do plebiscito e dizia que o próximo presidente “não pode estar associado a cortes, privatizações e corrupção”. Com amigos destes, Artur Mas não precisa saber o que dizem dele os seus inimigos.
Resiliente — e incapaz de ler a realidade —, Mas não desistiu. Está num equilíbrio delicado, a meio da corda bamba, com o precipício lá em baixo. Em plena negociação pós-eleitoral à procura de uma solução governativa, foi indiciado pelo Supremo Tribunal de Justiça do crime de desobediência, pelo qual pode vir a ser inibido de exercer cargos públicos e ir para a prisão. Resultado: a CUP não o descartou à velocidade prevista. Propôs, em vez disso, reduzi-lo a nada em câmara lenta. O futuro Governo da Catalunha terá não um, mas “três ou quatro presidentes”. Artur Mas será um deles. Amanhã, cenas dos próximos capítulos.