Escrevi, no ano passado, que uma das maiores possibilidades para resistir ao exercício de poder sobre nós é a criação de discursos ocultos. Esses discursos podem ser músicas, artes plásticas, textos, peças de teatro, conversas de café, actividades em associações criadas e geridas por nós, entre outras formas de resistência. São ocultos porque não os podemos dizer ou fazer frente a quem tem autoridade sobre nós. Se o fizéssemos, seriamos despedidos do emprego, teríamos más notas na escola, seriamos reprimidos pela polícia, ou sofreríamos outro tipo de represálias. Assim, os discursos públicos reproduzem o discurso das classes dominantes, não porque os subordinados concordem com ele, mas porque não têm a possibilidade de o dizerem publicamente, tendo de fingir a sua deferência. Claro que há quem afirme o que pensa publicamente, mas ou é afastado delicadamente, tomado como louco ou tem de aprender a viver de uma horta e da criação de galinhas.
Os discursos ocultos têm três funções essenciais. Por um lado, garantem que não ficamos iguais aos que nos dominam. Uma grande parte da resistência ao discurso dominante é apenas não o reproduzir. Só por isso é, já em si, transformador. Por outro lado, garantem a coesão dos grupos dos submetidos, impedindo que se deslumbrem com o outro lado. Sendo valorizados aqui, nas associações ou pela arte que criam, sentem menos necessidade de procurar valorização social através do dinheiro, por exemplo. E por último, esses discursos são o adubo para a acção política, que, em determinadas condições, são trazidos para o espaço público, dando origem à inversão da ordem dominante. Ou seja, é este discurso, fermentado em privado, que é gritado em praça pública, nos dias das revoluções.
E é precisamente aqui que nasce a profunda crise da liberdade da sociedade actual. Antigamente, o Estado e as empresas não tinham acesso aos nossos tempos livres. O controlo era exercido enquanto trabalhávamos, nos hospitais, nas escolas, nas prisões, entre outros locais fechados. Desta forma, o discurso oculto era criado nos tempos livres, em espaços protegidos, onde quem exercia o poder sobre nós não nos ouvia.
Hoje, através da cultura de entretenimento e da tecnologia, as empresas também dominam os nossos espaços privados. Se dantes, não tinham acesso ao nosso tempo livre, agora, estão connosco em toda a nossa vida, através do Facebook, do Google, e dos produtos culturais, como filmes, livros, programas de televisão, videojogos, etc. As tais “indústrias criativas”, que nos entretêm no tempo que nos resta. Com isto, ganham três coisas: o lucro da venda desses produtos e serviços, o lucro das indústrias associadas (roupa, cosmética, eventos, etc.), e garantem que não andamos a ler, a ver ou a tocar coisas que não lhes dão lucro e até podem ser adubo para desobediências. Ou seja, conseguem controlar-nos e lucrar ininterruptamente. É esta a grande novidade do regime neoliberal, que se crê mais livre, mas que é ainda mais opressor do que o anterior regime liberal: não permite que surja resistência alguma frente ao sistema.
E a pergunta impõe-se: porque oferecemos tudo a estas empresas? A troco de quê oferecemos a nossa liberdade? De um "like".
Eles conhecem-nos bem. Chegam a fazer estudos neuronais para saberem como nos comportamos inconscientemente. O difícil não foi perceber os nossos instintos mas descobrir uma forma de os satisfazerem para nos tornar dependentes. Para nos dominar, utilizam técnicas de sedução, que é feita através da oferta de recompensas imediatas. O "like" do Facebook, ou o coração do Instagram, são exemplos disso.
Satisfazem-nos ao ponto de, para os obtermos, oferecermos cada vez mais informação sobre nós. Quanto mais dou, mais gostos tenho. Não há “não gosto”. A satisfação é instantânea. E a recompensa nunca é negativa. Assim, a troco de um "like", mostramos os nossos filhos, a nossa casa, o nosso corpo, toda a nossa vida. Vivemos sedentos de aprovação. E quem detém o poder sabe melhor isso do que ninguém. Toda a gente sabe que uma das primeiras técnicas de manipulação é conhecer o dominado melhor do que ele se conhece. Oferece-se o que ele deseja para que ele depois ofereça o que nós queremos. Neste caso, oferecem recompensas instantâneas, "likes", a troco de informações e dados, que depois vendem.
Eu sei que parece estranho oferecermos tanto por tão pouco. Mas que ninguém pense que não cai nesta história. Porque temos aqui uma coisa que é verdade. Não há ninguém que não procure reconhecimento. Toda a gente o procura. A única coisa que podemos escolher é como o obter, e o que oferecermos em troca.