A Zona J quer sair da redoma
Faz parte de Lisboa, mas ao mesmo tempo parece estar fora de tudo, como uma ilha cortada da cidade. Este sábado há uma razão para ir a Chelas: o festival Zona Não Vigiada quer transformar um bairro condenado à margem num novo centro.
Tarde de um dia de semana de forte calor no Condado, na Zona J de Chelas, em Lisboa, um daqueles bairros que são parte integrante da cidade, mas que ao mesmo tempo parecem estar à margem, numa redoma, como uma ilha. É um local aonde quem é de fora não vai por acaso ou de passagem. Tem de existir uma motivação.
Este sábado ela existe. Chama-se Zona Não Vigiada, e é festival para se desenrolar entre as 15h e as 21h no ringue de futebol da Zona J, com entrada gratuita, contando com portugueses como Norberto Lobo, Iguanas, Pega Monstro, DJ Lilocox & DJ Maboku e DJ Firmeza, e com os ingleses Newham Generals e Jammz & Logan Sama. O inglês Skepta, que esteve programado, foi cancelado.
A iniciativa partiu da Casa Conveniente/Zona Não Vigiada, a estrutura teatral, ali sediada, da encenadora Mónica Calle. Com ela colabora neste festival a associação Filho Único, que, através da actividade de programação musical, ou da editora Príncipe, tem desencadeado o mesmo tipo de movimentos que nos levam a interrogar o papel das margens e do centro na produção cultural contemporânea.
No caso de Mónica Calle, o objectivo é mesmo agir a partir da margem, sobre a margem, e daí questionar e reposicionar o centro. Nos últimos dois anos, ali tem feito espectáculos teatrais e outras acções que vão nessa direcção. O festival deste fim-de-semana pretende reforçar a criação de percursos dentro do bairro e como fomentar um movimento do centro para a margem, trazendo pessoas para a Zona J que normalmente não viriam, ao mesmo tempo que tenta captar públicos do interior do bairro para acções a que estes normalmente não têm acesso.
“A vivência aqui é muito à base da música, nada é tão forte como ela no sentido de criar relações”, afirma Mónica Calle, “e a ideia para o festival começa um pouco aí. Por um lado interessa-nos apelar à participação das comunidades dos diferentes bairros da periferia, e é ao mesmo tempo também uma tentativa de aproximar o bairro da cidade, dando-lhe centralidade, trazendo pessoas de fora que de outra forma nunca viriam e tentando criar fluxos nos dois sentidos”.
Por agora, a nova casa da companhia ainda é um lugar algo inóspito, misto de escombros e entulho, estando para breve a requalificação total. Ao lado vive Dona Sanha, 70 anos, os últimos 30 vividos ali, vinda da Guiné Bissau; fomos encontrá-la a estender a roupa.
“Desde que o teatro veio para aqui que isto ganhou outra animação, e o festival é também bom porque é dessas coisas que sentimos falta”, diz. “É bom para o bairro, para pararem de dizer mal dele. Gosto muito de viver aqui. Nunca tive problemas. Às vezes dizem que há assaltos. Não sei. Deixo muitas vezes a porta aberta e se o faço é porque tenho confiança. O que existe, isso sim, é boa vizinhança.”
Descobrir-se
Circula-se com a encenadora pela zona e percebe-se que já deixou marca, com manifestações de afecto constantes. O restaurante perto do recinto onde se desenrolará o festival fornecerá refeições ao artistas. Ali não muito longe, numa associação, funcionará o camarim.
Todos querem participar de uma forma ou de outra, acreditando no trabalho que está a ser desencadeado. É o caso de Daniela, Keil e Ilda, entre os 12 e 15 anos, que também querem ajudar. “É fantástico termos aqui o festival porque precisamos de mais actividade deste género aqui, dando mais visibilidade aos nossos talentos”, diz Ilda. "Ao mesmo tempo é bom porque não temos de nos deslocar ao centro de Lisboa para ver este tipo de iniciativas.”
Na memória das três está inscrita ainda a participação num dos mais recentes trabalhos de companhia, Drive-In, realizado ao ar livre, no parque de estacionamento em frente ao espaço Casa Conveniente, incluindo uma equipa mista de actores profissionais e amadores. “Moramos mesmo aqui ao lado e a Mónica acabou por nos convidar”, conta Daniela. “Foi uma óptima experiência, nunca tinha feito algo parecido e agora gostava de continuar.” Keil refere que o mais difícil “foi decorar o texto” e confrontar-se com os seus próprios medos, por ir representar para amigos e familiares, enquanto Ilda fala de um processo de revelação: “Foi como se estivesse a descobrir-me pela primeira vez, a sentir um novo eu, e isso é qualquer coisa de fantástico. Nunca tinha experimentado nada de semelhante.”
O objectivo de ir para a Zona J remonta a 2010, em consequência do impacto, artístico e pessoal, de um trabalho que Mónica Calle desenvolveu com reclusos do Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus. “Dentro desse grupo de teatro havia pessoas daqui, que foram as primeiras a terminar as penas de prisão, e quando isso aconteceu começaram a trabalhar connosco na Casa Conveniente, no âmbito de um espectáculo sobre o Heiner Müller.”
Em 1991, no Cais do Sodré, a actriz e encenadora havia ocupado uma loja abandonada e, mais tarde, o desactivado Bar Luso, numa zona então conhecida pelos lugares de má fama e pelo ambiente marialva. Ali se manteve até há dois anos. A partir do momento em que anteviu que o local se iria transformar num dos centros da nova Lisboa boémia e turística, desejou sair. Agora, aos 48 anos, está a recomeçar tudo de novo.
Poderia ter ido para o Intendente, o Martim Moniz, a Almirante Reis, Santa Apolónia, Cabo Ruivo ou Alcântara, enfim, zonas da cidade onde é relativamente fácil discernir movimentos de regeneração. Mas não. A sua aposta foi mais radical, seguindo os actores que havia conhecido em Vale de Judeus até Chelas. “Foram eles que me convenceram, dizendo-me que havia aqui imensas qualidades e talentos que apenas pecavam por não circularem muito fora daqui. E vim a confirmar isso, descobrindo imensos músicos, bailarinos, pessoas que fizeram workshops de teatro e até gente da moda.”
O gesto que a levou ao Cais do Sodré, repetiu-o no sentido de Chelas. “Não me interessa ter aqui um circuito fechado, mas pensar como fazer tráficos nos dois sentidos, interrogando o que é central e periférico. Esta não foi uma escolha casual. A vinda para cá correspondeu ao facto de o Cais do Sodré ter deixado de ser um sitio de margem e de fluxos. Era necessário recomeçar outra vez.”
Fala-se com ela, deambula-se pelo bairro, e os seus olhos brilham, contando-nos que a ideia inicial era criar um festival em cinco espaços diferenciados, de forma a que o público circulasse, tomando conhecimento dos vários pontos do território. Mas não houve verba para tanto. Talvez para o ano. Para já aí está a primeira edição do Zona Não Vigiada, criado também para abalar preconceitos e estigmas. Seja do centro para a margem, como o contrário.
Coabitação
O Bairro de Chelas foi um projecto do arquitecto Tomás Taveira e, diz Mónica Calle, “é um dos seus trabalhos mais interessantes em termos de escala, de proporção, de harmonia e de lugares públicos". Não é, explica, um lugar "desumanizado", pelo contrário: houve "um cuidado estético interessante nestes bairros construídos para retornados de todas as camadas sociais”.
É final de tarde, homens jogam às cartas na rua e quando nos aproximamos dizem-nos que são ex-guardas prisionais, com um deles a ter um desabafo curioso: “Reformei-me e vivo aqui há dois anos e nunca aqui tive problemas. Daqui já ninguém me tira. Este é o bairro que conheço onde sinto que existe maior sentido de pertença.”
Não muito longe, no singular altar da igreja São Maximiliano Kolbe – todo envidraçado, avista-se o exterior –, a pintura que se situa por baixo da cruz representa simultaneamente um santo e um prisioneiro. Apesar de a maior parte das pessoas com quem falamos afirmar que a estigmatização que o bairro já sofreu se diluiu nos últimos anos, e que existe um sólido sentimento de pertença e de auto-estima, não vale a pena romantizar: ainda há tensões.
Não é difícil perceber que existe um preconceito social em relação a territórios como a Zona J. O curioso é que o preconceito é devolvido da margem para o centro e existe consciência disso. Pelo menos é o que nos diz Tó, assim, sem apelido (“Todos me tratam dessa forma). Os de fora, conta, acham que ali são todos marginais, e os do bairro “não fazem questão de sair porque acham que se forem ao centro são mal tratados”.
Ou seja, quem vive no centro tende a conotar negativamente quem habita na periferia. E o cumprimento é devolvido, com os da periferia a acharem o centro confuso, conflituoso e perigoso. Uma coisa é certa: muitas das zonas periféricas acabam por ser lugares de experimentação social e cultural. Não é por acaso que em muitos países é lá que irrompe a maior parte das movimentações culturais mais arriscadas. O facto de serem por norma espaços híbridos, onde pessoas de origens e condições diversas coabitam, tanto pode originar tensão como potenciar a criatividade. Na verdade, as paisagens são cada vez mais móveis e esquizofrénicas. Na Zona J sente-se isso, tanto na paisagem humana como na paisagem urbana, principalmente nos últimos anos: o apartamento social coabita com o condomínio privado com vista para o Tejo.
Este movimento de baralhação de referentes é também um dos desígnios que têm norteado o percurso da editora Príncipe, uma das aliadas do festival, representada por DJ Lilocox & DJ Maboku (os Casa da Mãe Produções) e DJ Firmeza, três dos nomes que têm ganho visibilidade nos últimos anos, da periferia para o mundo, ao lado de Marfox, Nigga Fox, Black Sea Não Maya, Nidia Minaj e outros. Mensalmente, têm levado a sua música inspirada em várias expressões urbanas (do kuduro ao afro-house, passando pelo tarraxo ou batida) ao MusicBox e ao Lux, em Lisboa, ou aos mais diversos clubes de dança e revistas mundanas da Europa e dos Estados Unidos.
Foi há dois anos que falámos com DJ Maboku pela primeira vez. Na altura era um ilustre desconhecido. Hoje a sua música viaja pelo país e pelo estrangeiro. “Aconteceram muitas coisas, muitas viagens, muitas saídas, desde então, e daqui para a frente ainda vai ser melhor; este festival acaba por traduzir isso também”, confia ele, afirmando que sábado vai passar uma série de novos temas da sua autoria. Reside em Queluz, mas mantém cumplicidades com família e amigos da Quinta do Mocho, perto de Sacavém, de onde vêm também Firmeza ou Marfox.
“Espero que venha gente de todos esses lados”, afirma, “porque, depois de termos levado esta música ao centro de Lisboa e do mundo, está na altura de a fazermos ouvir aqui, onde ela também pertence. Este festival já devia ter acontecido há mais tempo. Andamos lá por fora, mas o pessoal daqui não nos chegou a ouvir”.
Má fama sem proveito
Quem tem assistido aos acontecimentos da Príncipe são as irmãs Maria e Júlia Reis, ou seja as Pega Monstro, que levarão as canções rock do seu mais recente álbum, Alfarroba, ao evento. Aparentemente não encontraremos pontos de contacto entre o seu rock impetuoso, juvenil e profundamente refrescante e a música física e serpenteante das noites Príncipe. Nada mais errado. As formas musicais são diferentes, mas a energia primordial é a mesma: “Vamos a quase todas as noites da Príncipe porque são muito inspiradoras em termos de música e ambiente”, reflecte Maria, acrescentando que é a primeira vez que as duas “estacionam” em Chelas. “Na verdade acho que só estive aqui, de passagem, para Xabregas.” Não devem ser as únicas. Vivem no centro de Lisboa, no Saldanha, e a Zona J parece-lhes uma entidade remota. E no entanto fica mesmo ali, entre as Olaias, Marvila e Cabo Ruivo, perto da malha urbana da cidade e ao mesmo tempo parecendo longe dela, separada por vales.
“Quando tocamos em Lisboa é sempre no centro, portanto vai ser óptimo fazê-lo aqui, provavelmente para pessoas que nunca nos viram”, diz Júlia. “A ideia do festival é óptima, e a cena de ser à pala é uma opção democrática”, refere Maria, acrescentando que aquilo que mais a entusiasma é a “possibilidade de agregar o pessoal daqui": "Mesmo que não venham por nós, que apareçam pelo evento em si.”
Depois de uma digressão pelo Reino Unido, resultante da edição e da distribuição do novo álbum pela editora inglesa Upset The Rhythm, e de vários concertos em Portugal, a dupla diz que as reacções têm sido muito boas. “Estamos a tocar de forma diferente e o concerto está mais poderoso e sólido porque temos uma ideia mais clara do rock que queremos.” Elas não o referem, mas o rock que praticam também teve a sua génese em bairros periféricos de grandes cidades.
Temos a memória curta, mas na sua esmagadora maioria as músicas populares hoje instituídas – do rock ao fado, dos blues ao hip-hop – eram na origem formas de expressão desqualificadas, praticadas por amadores sem veleidades artísticas, muitas vezes rejeitadas pelas classes dominantes e nascidas nas periferias das grandes cidades. Na fase de legitimação, foram muitas vezes associadas à marginalidade ou a questões identitárias. Raramente foram encaradas como simples arte. Nas formas musicais de rua que têm conhecido protagonismo nos últimos anos, os processos repetem-se, seja no kuduro luso-angolano de Lisboa, no baile funk do Rio de Janeiro ou no grime londrino.
Esta última corrente vai estar representada por duas gerações de activistas britânicos, os mais veteranos Newham Generals de D Double E e o mais novato Jammz, auxiliado pelo DJ e histórico radialista Logan Sama. Síntese mutante que engloba batidas electrónicas, elementos de jungle e ambientes sombrios sacudidos por subgraves, o grime impôs-se nos primeiros anos da década de 2000, reconhecendo um novo fulgor nos últimos tempos. O género nasceu nos bairros mais desfavorecidos do Este londrino, onde novas gerações criavam música com computadores rudimentares ou consolas de jogos vídeo, aplicando o conceito de faça-você-mesmo.
Quando perguntamos a Tó se ele sabe o que é grime, diz-nos que não. Hoje em dia está mais interessado em hip-hop português, com história em Chelas e um nativo bem conhecido (Sam The Kid), e sobretudo em kizomba. Não tanto por causa da música, mas pela dança. “Para mim, música é movimento e sensualidade”, ri-se ele, na direcção de Maria Filomena, que continua a passear o seu cão.
Ali, toda a gente parece conhecer-se. “Este é o bairro onde criei os meus filhos e gosto dele, embora existam, como em todos os lados, problemas, como o facto de haver pessoas que têm altos rendimentos e habitam [em casas] com rendas camarárias baixas”, afirma ela, relativizando de seguida o que acaba de dizer. “Mas, enfim, isso são problemas menores. Embora este bairro tivesse má fama no passado, era uma fama sem proveito. Claro que existe um pouco de tudo, mas aqui as pessoas entreajudam-se e isso é tudo. Se não fosse isso, já estava no céu.”
É essa ideia de comunidade, de “relações reais”, como lhe chama Mónica Calle, que trouxe uma artista ao bairro, ainda por cima em dias onde o clima constante no mundo é a indiferença. “Acredito que o gesto artístico implica ética, comunidade e a possibilidade de uma relação ou de agir em pequena escala. Aqui estou longe de um centro – pelo menos de uma certa ideia de centro – onde existem conflitos e perdas de energia. É válido, mas não é a minha coisa. Sinto-me mais perto da vida e da possibilidade de interrogar o que é isso do gesto artístico, embora não seja de forma nenhuma uma coisa conceptual.“
É isso. A Zona J, geograficamente, parece uma ilha, “separada da cidade”, diz Mónica Calle, mas ao mesmo tempo personifica “movimentos que são profundamente contemporâneos e que têm a ver com a cultura no sentido universal, seja dança, teatro ou música”.
Como tornar central, através de um projecto artístico, um bairro-ilha chamado Zona J, eis a questão. Uma coisa parece certa: vai levar tempo a quebrar estigmas e a superar medos, e vai ser preciso insistir. Mas é possível, dizem-no Mónica Calle e a editora Príncipe, cada uma à sua maneira. Há momentos em que a arte pode antecipar transformações sociais, ou pelo menos contribuir para as acelerar. Este sábado, a primeira edição do Zona Não Vigiada, na Zona J, em Chelas, pode ser um desses momentos.