Moderno: ser ou não ser?
Um filme 3D de Cyprien Gaillard e uma instalação de Emmanuelle Lainé rasgam a paisagem discreta da Bienal de Lyon. Nestes dois trabalhos, a “vida moderna” é o passado a enformar o presente. E o presente a olhar para trás sem medo. Sim, vamos voltar a falar do Modernismo.
O impulso do tema geral de Lyon traz pouca novidade. De resto, surpreende que se decida reconsiderá-lo depois do marco constituído pela 12.ª edição da Documenta de Kassel. “Is modernity our antiquity?”, perguntava a Documenta em 2007. Todo um programa através do qual Roger M. Buergel, o director artístico desse ano, pretendeu recuperar o espírito da primeira Documenta de sempre – a de 1955. Então, no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, Arnold Bode, artista e académico alemão perseguido pelo Terceiro Reich, era um refugiado de regresso a casa. Pensou aquela que se tornaria numa das mais relevantes mostras periódicas de arte do mundo como olhar retrospectivo sobre o Modernismo. Uma maneira de apresentar ao país aquilo que o regime nazi banira como “arte degenerada”.
O Modernismo, pois: chegados ao século XXI, é não apenas o Modernismo como a própria ideia de Modernidade que ficam em causa na pergunta de Buergel.
“A Modernidade é a nossa Antiguidade?” – em seis palavras lançava-se a possibilidade da passagem de uma era de presente a passado. Não uma era qualquer: a Modernidade – que podemos defender como nossa, ainda em curso. Também não um seu simples deslizar rumo ao anonimato do esquecimento, antes a sua ascensão a equivalente da Antiguidade – a clássica, ali onde se articulou o conceito do que o Ocidente entenderia como arte. Ou seja, em seis palavras tratava-se de declarar uma era como ciclo (re)fundador que se abriu e fechou no tempo, matéria passível já de revisitação arqueológica.
Num brevíssimo texto, Buergel explicou o que o levou à formulação da pergunta: “É bastante óbvio que a modernidade, ou o seu destino, exercem uma influência profunda nos artistas contemporâneos. Parte da atracção pode derivar do facto de ninguém saber realmente se está viva ou morta. Parece estar em ruínas depois das catástrofes totalitaristas do século XX (exactamente as mesmas catástrofes que de alguma forma instigou). Parece totalmente comprometida pela aplicação brutalmente parcial das suas demandas universais (liberdade, igualdade, fraternidade) ou pelo simples facto de a modernidade e o colonialismo terem andado, e provavelmente ainda andarem, de mãos dadas. Ainda assim, a imaginação das pessoas está cheia das visões e das formas da modernidade (e não apenas da Bauhaus, mas também de enquadramentos teóricos transformados em palavras-chave contemporâneas como ‘identidade’ e ‘cultura’). Resumindo, parece que estamos tanto dentro como fora da modernidade, tão repelidos pela sua violência mortal como seduzidos pelas suas mais imodestas aspirações ou potenciais: que possa, apesar de tudo, haver um horizonte planetário para todos os vivos e os mortos.”
Na Documenta, como agora em Lyon, havia uma armadilha: a possibilidade da queda infértil na discussão sobre se os contextos europeus que a partir de meados do século XVIII levaram ao que se entendeu como Mundo Moderno desembocaram ou não, já na segunda metade do século XX, numa pós- ou hiper-Modernidade, segundo proclamado por autores como François Lyotard, Zygmunt Bauman e Gilles Lypovetsky. Depois de décadas de especulação e produção teórica à volta desta hipótese, Ralph Rugoff, o comissário de Lyon, opta por ignorar a discussão. Escolhe um regresso a Baudelaire – o primeiro dos modernos. E a sua preocupação primeira é a distinção entre “Modernidade” e “Modernismo”.
Sob o título La vie moderne – retirado directamente de O pintor da vida moderna (1863) –, Rugoff reflecte como a própria expressão “a vida moderna” se tornou ambígua, encerrando hoje “uma assombrosa incerteza temporal”: “No uso quotidiano, o adjectivo ‘moderno’ ainda implica qualquer coisa de recente ou novo, mas esta frase carrega uma longa história que pode servir para indicar o momento actual, mesmo quando sugere uma relíquia de um tempo ido”, escreve o curador num dos seus textos para a bienal. Acrescentando o que visou conseguir ao evocar Baudelaire: “Questionar – não tanto o ‘moderno’, mas a natureza do nosso presente e o tipo de diálogos que estabelece com o passado.”
Outra pergunta colocada por Rugoff e que intensifica problemáticas: “O impulso para anunciar um corte limpo com o passado, para instigar a ruptura com a tradição é o gesto modernista por excelência. Será então possível que o nosso desejo recorrente de declarar o fim da era moderna seja, na realidade, meramente um sintoma da modernidade que aspira a enterrar?”
Já em Farewell to an Idea: Episodes from a History of Modernism (1999), o historiador norte-americano T. J. Clark se antecipava à pergunta da Documenta propondo o Modernismo – e não a Modernidade – como a nossa antiguidade. Nessa obra, Clark propunha a ideia de uma ruptura extrema: a de que talvez a relação iconoclasta do Modernismo com o seu passado tenha sido tão absoluta que nos tenha vedado qualquer possibilidade de revisitar seja o que for antes dele; a ideia de que se o Modernismo se instituiu como guerra contra as formas antigas talvez estejamos agora em guerra contra uma guerra; mas também a ideia de que, se assim é, então talvez estejamos a passar pela secularização absoluta do homem, e, com isso, a viver a completude triunfante do moderno.
De acordo com esta tese, o homem contemporâneo perfilar-se-ia como um ser em guerra diária contra os fundamentos e a actualidade da sua própria identidade. O mesmo que declará-lo como agente do desencantamento extremo.
Rugoff não segue essa exacta via. Propõe um cenário mais generalista: um em que as várias trajectórias do projecto modernista enformam ainda activamente as percepções e os mais destacados temas do nosso tempo. “Com demasiada frequência, o contemporâneo é emoldurado como um tipo desenraizado de presente perpétuo, um infinito horizonte do agora. Porém, um exame ainda que fugaz dos acontecimentos à volta do globo revela que a nossa paisagem ‘contemporânea’ está longe de ser um campo uniforme do novo e recente.”
É preciso, diz Rugoff, termos um “sentido fluido” da forma como “vários momentos no tempo se ligam ao momento actual, confrontando-nos com ligações inesperadas entre eles”.
Contra o desaparecimento
É difícil não pensar uma e outra vez na mesma frase de Faulkner: o passado nunca morre, o passado nem sequer é ainda passado.
O passado é uma dimensão crucial do presente. Qualquer presente. E demonstra uma estranha resiliência contra o desaparecimento. Como diz Rugoff, “não é fácil deixá-lo para trás”. Talvez não seja sequer desejável, como sugerem os dois mais interessantes trabalhos de Lyon. O primeiro dos quais Nightlife, um filme 3D de Cyprien Gaillard (Paris, 1980). Porventura, também, a mais consensual das escolhas de Rugoff.
O assistente a oferecer óculos 3D à entrada da sala pode perfilar-se como pré-aviso para o desastre – afinal, são raras as propostas em que a escolha técnica pareça justificar-se por adequação aos fins. Puro preconceito neste caso em que todos os temores caem por terra aos primeiros segundos: Nightlife é uma experiência profundamente sedutora. Do princípio ao fim. E sob todos os pontos de vista – técnicos, plásticos, conceptuais…
No início está O Pensador, de Rodin. Ou, mais concretamente, uma das versões em bronze cuja execução o escultor supervisionou e que, no filme de Gaillard, é uma presença monumental que aparece a rodar pelo espaço, aparentemente ao alcance do nosso toque. Uma ilusão fugaz. E que rapidamente se vê substituída por uma lenta cadência de imagens de flores, plantas e árvores fustigadas por ventos nocturnos. Primeiro uma família de estrelícias como grandes pássaros de bico agudo e coroas de plumas coloridas.
As imagens são densas e pausadas. Como uma coreografia com gotas de água a saltarem dos corpos e a desfazer-se no escuro. E, depois, há o entorno – talvez a entrada de um prédio.
Em geral, deambulamos por paisagens urbanas mais ou menos desoladas, desabitadas e áridas, povoadas apenas por um intenso motim vegetal.
Aquilo a que assistimos podiam ser danças rituais alimentadas por drogas. Palmeiras, carvalhos e zimbros – todos numa espécie de transe hipnótico. Até a intensidade dos movimentos de uma série de árvores contra uma vedação de arame farpado insinuar urgência e violências maiores. Como se as plantas procurassem na verdade libertar-se dos grilhões impostos pela humanidade e pelas suas arquitecturas. Como se estivéssemos, na verdade, a assistir a uma revolta.
E que estádio é este que estamos agora a sobrevoar? E que evento celebra o enorme fogo de artifício com que Gaillard termina o filme?
A sequência de imagens de Nightlife é misteriosa e a imersão na sua noite profundamente romântica. É uma experiência sublime, acentuada ainda pela hipnose do pequeno trecho de uma canção que se repete infinitamente. Umas vezes é claramente audível, outras abafado, longínquo, mas é sempre a mesma frase: “I was born a loser” – “nasci um perdedor”.
Podíamos ficar por aqui, instalados nas incógnitas deste embalo da mais pura fruição estética. No entanto, a profundidade total do abismo de Nightlife abre-se ainda mais vasta com as narrativas por trás das imagens.
Gaillard não oferece significados. É preciso procurá-los. Por exemplo, saber que as filmagens decorreram tanto na Europa como nos Estados Unidos. E que a versão usada de O Pensador pertence ao Museu de Arte de Cleveland.
A partir da sua realização, em 1880-1881, O Pensador passou, em geral, a ser assumido como símbolo do pensamento e do conhecimento, nomeadamente do acto de reflexão por trás da criação poética ou artística (já que representaria Dante, o autor de A Divina Comédia). Foi já no arranque do século XX que se tornou também num símbolo do movimento socialista francês e da luta pelos princípios gerais de justiça social lançados pela Revolução.
Liberdade, igualdade, fraternidade – as reivindicações da organização norte-americana Weather Underground, tida como de extrema-esquerda, não fugiam a esta matriz. Menos claros são os motivos por que em 1970 esta facção dos Students for a Democratic Society, apoiante do black power e envolvida na fuga de Timothy Leary da prisão, decidiu dinamitar "O Pensador de Cleveland” em protesto contra a guerra do Vietname. Seja como for, a peça foi parcialmente destruída e nunca foi restaurada. Assim, é com uma versão dinamitada do pensamento e da liberdade que Gaillard começa o seu filme. E, desde logo, também, com o refrão que nos acompanhará até ao fim: "I was born a loser" foi a versão inicial do tema que, por imposição da sua editora, o cantor jamaicano Alton Ellis acabou por gravar como I was born a winner.
A mudar
De perdedor a vencedor – era o espírito dos tempos da luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. E, no seu filme, Gaillard introduz quase imperceptivelmente ambas as versões. O perdedor mais presente do que o vencedor. Nomeadamente quando sobrevoamos o estádio de Berlim onde, nos Jogos Olímpicos de 1936, Jesse Owens ganhou quatro medalhas de ouro, expondo ao ridículo a ideologia do Terceiro Reich.
Nesse ano, para além das medalhas, o comité olímpico ofereceu aos atletas vencedores pequenos rebentos de carvalho. Owens plantou o dele na Escola Secundária Rhodes, em Cleveland, onde estudou e treinou. É dos poucos (se não o único) carvalhos do Comité Olímpico de 1936 ainda sobreviventes. O carvalho que no filme de Gaillard se vê iluminado pela passagem de um helicóptero e que parece desmembrar-se ao vento, com pedaços da casca a voarem pelos ares.
Tal como toda a restante vegetação – as estrelícias, as bananeiras, os “zimbros de Hollywood”… –, é uma presença exótica na paisagem norte-americana – não-autóctone. Constitui mais uma camada de significado e de tempos acumulados sob a imensa encenação orquestrada por Gaillard.
Ralph Rugoff refere como muitos dos trabalhos da edição deste ano da bienal “se deslocam inesperadamente de cenários actuais para referências históricas”. Nightlife é uma dessas obras. Da mesma família alargada de trabalhos em que “as imagens do presente são uma espécie de palimpsesto estratificado com traços de momentos anteriores”. A via de Emmanuelle Lainé (Paris, 1973).
O título da grande instalação que a artista apresenta em Lyon propõe desde logo uma grelha de leitura: Il paraît que le fond de l’être est en train de changer. À letra, é dizer que “parece que o fundo do ser está a mudar”.
A natureza transitória do tempo, do ser e do estar está em causa num trabalho para o qual a artista trabalhou in situ durante três semanas, ocupando a sua sala do Museu de Arte Contemporânea com presenças de naturezas e origens diversas. Plantas artificiais, bidões industriais, baldes de tinta, uma vassoura, a mão de um manequim a apontar algures para o horizonte através de uma janela: é o processo habitual de Lainé – trabalhar em estreita relação com a arquitectura dos seus espaços expositivos; a acumulação.
Apesar do cuidado na composição – notório, por exemplo, nas combinações cromáticas –, podíamos estar a entrar no atelier de um artista. O caos ordenado podia corresponder a diferentes zonas de trabalho com diferentes projectos em curso e o fio de pensamento de uma mesma pessoa como elo superior. Constituiria, por si só, uma narrativa complexa e cheia de pequenas narrativas dentro. No entanto, a realidade do espaço de Lainé é estratificada de forma mais deliberada.
Enquanto foi arranjando e rearranjando o espaço, à medida que novos elementos surgiram e foram introduzidos, Lainé fotografou diferentes momentos de existência das sua instalação in progress. Uma vez ampliadas, essas imagens são agora as duas maiores paredes da instalação. Podiam ser espelhos. A não ser por pequenas deslocações – um balde branco simplesmente deixado perto de um velho pano cheio de tinta cor-de-rosa, o balde-espelho bidimensional caído por terra junto ao mesmo pano; uma vassoura de palha bidimensional encostada a uma parede, o seu espelho tridimensional caído no chão; um pequeno objecto de ferro que já só existe enquanto imagem, outro apenas tridimensional… Um fresco contemporâneo com efeitos de trompe-l'oeil e mise en abîme dentro.
Em última análise, podemos pensar em objectos tornados imagem e, depois, de novo devolvidos à sua condição primeira de objectos. Podemos também imaginar este como um processo ininterrupto, passível de ser repetido uma e outra vez. Ficaríamos perante um momento infinito. Nunca exactamente igual. Nunca radicalmente distinto.
É como a História. Como uma cidade enterrada na areia – um dia a areia é soprada e o que estava por baixo vem subitamente à tona.
O passado nunca morre. O passado nem sequer é ainda passado.
O Ípsilon viajou a convite da Bienal de Lyon