Descoberta a forma como o cérebro diz ao corpo para “queimar” gordura
O trabalho, liderado por investigadora portuguesa, desvenda um enigma e pode abrir o caminho a tratamentos inéditos contra a obesidade.
O tecido adiposo representa 20 a 25% do peso corporal humano e as suas células contêm triglicéridos, ricos em energia. Quando não comemos o suficiente, essas gorduras são degradadas pelo organismo para suprir as nossas necessidades. Consequência óbvia: se não comermos o suficiente, emagrecemos. Mas por outro lado, em condições normais, também não estamos sempre a comer desalmadamente e o nosso peso mantém-se mais ou menos estável, controlado.
Há duas décadas que se sabe que uma hormona, a leptina, também chamada “hormona da saciedade”, é crucial para esse controlo, mantendo esse delicado equilíbrio energético e garantindo que o nosso peso corporal permanece dentro de valores aceitáveis. Segregada pelas células adiposas do organismo, a leptina actua sobre o cérebro, ligando-se aos neurónios de uma estrutura cerebral, o hipotálamo.
Resultado: quando os níveis de leptina vinda dos adipócitos (células de gordura) pelo sangue – e detectados pelo hipotálamo – aumentam, isso faz diminuir o nosso apetite e estimula a utilização das nossas próprias reservas de gordura. Inversamente, quando os níveis de leptina em circulação diminuem, o nosso cérebro sabe-o. Sentimos fome e sentamo-nos à mesa.
Esta acção da leptina foi descoberta nos anos 1990 – e na altura, os especialistas pensaram ter encontrado a chave para desenvolver tratamentos contra a obesidade. Porém, as coisas revelaram-se mais complexas do que se esperava: o cérebro de muitas pessoas obesas, mesmo quando elas apresentam altos níveis de leptina em circulação, não recebe devidamente o sinal de saciedade emitido pelo tecido adiposo – e não lhes diz para parar de comer e passar a queimar gordura.
“A resistência central à leptina é uma condição em que o cérebro não ‘vê’ a hormona leptina. É muito comum,”, disse ao PÚBLICO num email Ana Domingos, do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC) em Oeiras. A descoberta agora anunciada pela equipa desta investigadora, em colaboração com colegas da Universidade Rockefeller (EUA), desvenda o enigma e poderá permitir, ao contornar a resistência à leptina, desenvolver tratamentos mais eficazes contra a obesidade.
De facto, neste “diálogo” entre as células adiposas e o cérebro, o que faltava identificar era, justamente, o mecanismo que permite às células do cérebro, em função dos níveis de leptina, enviar por sua vez um sinal às células adiposas, induzindo-as a “queimar” gordura.
Os métodos até aqui utilizados para estudar esta questão, escrevem os autores no seu artigo, “não permitiam distinguir os neurónios que apenas atravessam [o tecido adiposo] daqueles que se projectam directamente nos adipócitos”. Mas agora, combinando várias técnicas recentes (incluindo de imagem), a equipa conseguiu literalmente olhar em pormenor e em profundidade para o tecido adiposo, tanto in vitro como in vivo, no ratinho.
Os cientistas mostraram assim que as células do tecido adiposo estão inervadas por fibras nervosas projectadas por neurónios do chamado “sistema nervoso simpático” (que é a parte do sistema nervoso não consciente que governa os equilíbrios fisiológicos indispensáveis à manutenção da vida dos organismos).
E não só: também mostraram que a estimulação directa dessas fibras nervosas que inervam as células adiposas é suficiente para induzir a degradação das gorduras por essas células.
A equipa identificou ainda o sinal bioquímico envolvido neste processo: a norepinefrina, um neurotransmissor (e hormona) que, ao ser libertado pela estimulação dos neurónios em causa, “desencadeia uma cascata de sinais nas células adiposas que conduz à lipólise [degradação das gorduras]”, lê-se em comunicado do IGC.
Também aqui, as peças do puzzle encaixam-se umas nas outras. “Há cerca de meio século que se sabe que a norepinefrina é um gatilho da degradação das gorduras”, diz-nos Ana Domingos. “Só não se sabia de onde ela vinha, porque a norepinefrina [também] é libertada pelas glândulas adrenais, que não estão envolvidas nos processos de perda de peso." Agora já sabem: a norepinefrina vem destes neurónios. "A acção que activa a lipólise é local e não sistémica”, salienta Ana Domingos.
O carácter local deste mecanismo permite pensar que “uma aplicação terapêutica consistiria na activação selectiva destes neurónios”, diz-nos ainda a investigadora. O que seria ideal, segundo ela, porque permitiria minimizar os potenciais efeitos colaterais decorrentes de uma acção mais global sobre o sistema nervoso – e em particular, sobre o cérebro. O próximo passo? “Desenvolver compostos que activem selectivamente os neurónios na gordura!”