Europa: 25.ª Hora?
A 25.ª hora europeia pode não ter chegado, mas é certamente mais do que tempo de a prevenir, se não queremos ver ruir o projecto de paz pela integração.
Alguns refugiados célebres deixaram relatos dramáticos, como O Mundo de Ontem. Recordações de um Europeu, o livro de memórias de Stefan Zweig. Após perder a nacionalidade (austríaca), Zweig refugiou-se na Grã-Bretanha; em 1940 teve de abandonar Londres e procurar hospitalidade nas Américas e sobre esse momento escreveu: “eu sabia que de novo o passado se ia, de novo ficava reduzido a nada o que fora construído – a Europa, a pátria comum para a qual vivêramos, estava destruída muito para lá da nossa vida terrena”. Li O Mundo de Ontem em 1992, em plena guerra da Bósnia, e tive consciência de como o progresso inexorável é uma perigosa ilusão – a Europa não era, não é, apenas a terra de Voltaire, é também a da limpeza étnica, de Srebrenica.
Os fantasmas da Europa reapareceram na convicção absurda da superioridade civilizacional, da pureza étnica, no medo do outro, especialmente se é muçulmano e vem do Médio Oriente. Reaparecem nas divisões europeias, mas sobretudo na incapacidade de resposta da União quando um estado membro, como a Hungria, desrespeita os valores políticos da adesão.
É fácil prever que a actual crise dos refugiados se vai agravar, pondo em risco a coesão da União Europeia, incapaz de chegar a acordo para receber 120 mil refugiados. Hoje, existem 7.6 milhões de deslocados na Síria; nos países vizinhos são cerca de 4 milhões de refugiados. Fogem à guerra que, desde 2011, já matou 300 mil pessoas.
A violência do regime de Assad contra a sua população, com utilização de armas químicas, bombardeamentos indiscriminados e cerco a cidades controladas pela oposição, tem vindo a intensificar-se com o apoio militar do Irão e da Rússia. Da violência e do caos na Síria e do vizinho Iraque nasceu e cresceu o ISIS, grupo extremista anti-xiita, o que dividiu e enfraqueceu a oposição a Assad e transformou a luta contra a ditadura numa guerra sectária. A emergência do ISIS aumentou a desintegração do Iraque, o que provoca também um êxodo de iraquianos (há mais de um milhão de deslocados internos no Iraque).
Na situação actual, nada indica que esteja próxima uma solução para a guerra na Síria. A solução interna é muito pouco provável, pois nenhum dos beligerantes parece ser capaz de destruir o outro: nem o regime tem capacidade de destruir a oposição armada, nem a oposição armada do exército Sírio Livre e da Frente Islâmica, envolvida em duas frentes – Assad e o ISIS – tem condições de derrubar o governo. Uma solução diplomática, produto de um acordo entre os EUA e a Rússia, parece, igualmente, improvável, dadas as desavenças entre as antigas superpotências, o recuo estratégico americano e a falta de ambição europeia. A solução regional, assente num acordo entre o Irão, a Arábia Saudita e a Turquia, com apoio das Nações Unidas, parece a mais realista, apesar das dificuldades que resultam do envolvimento da Arábia Saudita numa guerra anti-xiita no Iémen.
Neste momento, há cerca de 270 mil pedidos de asilo de Sírios na Europa. Tudo leva a crer que este número aumentará exponencialmente, na medida em que os países vizinhos da Síria já não têm condições para receber mais refugiados: segundo os dados da ONU, existem 1,8 milhões na Turquia, 250 mil no Iraque, 630 mil na Jordânia, 132 mil no Egipto, 1,1 milhões no Líbano e 24 mil noutros países do Norte de África. Muitos dos que encontraram refúgio nos países vizinhos tinham a esperança de que fosse uma situação temporária, mas hoje procuram na Europa um local para trabalhar e educar os seus filhos.
Ao mesmo tempo, os quase 8 milhões de deslocados internos encontram-se numa situação de enorme privação. O Fundo Alimentar Mundial só consegue prover às necessidades de 1 milhão de sírios, quando em 2014 alimentava 2 milhões – situação que também leva muitos dos deslocados a procurarem abandonar a Síria.
Perante a ausência de uma solução para o conflito, um cálculo realista do número de sírios que pode vir a procurar refúgio na União Europeia aponta para números muito mais significativos, a que se somam os potenciais refugiados iraquianos, para falar só do Médio Oriente. No Magrebe, não sabemos quais serão as consequências da desintegração da Líbia, o que por sua vez ameaça a democracia e a estabilidade na Tunísia.
Perante a desintegração de países na sua fronteira Sul, o grande vizinho do Norte, a União Europeia, tem sido irrelevante na procura de uma solução para as guerras e vê-se rodeada por um eixo de Estados falhados. A afirmação de que quer combater as causas profundas da crise dos refugiados não passa, até agora, de uma declaração bem-intencionada e a operação naval no Mediterrâneo é mais um factor de instabilidade regional.
Qual será a reacção europeia a uma vaga de refugiados comparável à situação que se vive na Turquia? Triunfará a perspectiva de hospitalidade, anunciada, num primeiro momento, por Merkel, ou prevalecerá a perspectiva nacionalista xenófoba do governo húngaro? O nacionalismo pode triunfar, como os muros que se erguem indiciam, mas também pode ser que a sociedade civil europeia, que é uma força poderosa, seja capaz de impor a visão solidária que tem manifestado, forçando a União a regressar aos seus valores fundamentais.
A minha geração devorou livros como os de C. Virgil Gheorghiu, que relatam o drama da Europa durante a II Guerra Mundial, na sua 25.ª hora – título de uma das suas obras –, a hora do desespero, onde já não há tempo para fugir à destruição. A 25.ª hora europeia pode não ter chegado, mas é certamente mais do que tempo de a prevenir, se não queremos ver ruir o projecto de paz pela integração.
O Portugal democrático honrou os que se notabilizaram na defesa dos refugiados, como Aristides Sousa Mendes, em Bordéus, ou Teixeira Branquinho e Sampaio Garrido, na Hungria. São esses exemplos que devemos seguir, se queremos ajudar a salvar os refugiados, e, com eles, a União Europeia.
Investigador, Director de Projectos no Arab Reform Initiative (ARI)