Os futuros do mundo no presente da Bienal de Veneza
Com o primeiro curador africano, Okwui Enwezor, chegaram 89 artistas que nunca tinham feito a sua entrada na Bienal de Veneza. O tema da 56.ª edição, All the world's futures, não foi propriamente levado à letra: para não caírem na ficção do futuro, as exposições falam sobretudo do presente.
Passada a efervescência dos dias inaugurais, das festas e recepções dadas por cada representação nacional, cada coleccionador de luxo, cada patrocinador, a Bienal passou à velocidade de cruzeiro e já se dá a ver em condições mais do que aceitáveis.
Okwui Enwezor, o “primeiro curador africano da Bienal de Veneza”, nas palavras da imprensa que cobriu o evento, não é propriamente um desconhecido no meio. A viver entre Munique e Nova Iorque, construiu uma carreira impressionante que inclui, por exemplo, a curadoria de uma das edições da Documenta, o cargo de curador ajunto no Art Institute of Chicago e a direcção da Haus der Kunst de Munique. Em All the world’s futures, salienta a vontade de explorar “os limites que nos ajudam a formular juízos estéticos sobre a arte contemporânea”, questão que se coloca depois da constatação de que as certezas formuladas pelas diferentes vanguardas são coisa do passado. Mas, olhando para o programa, talvez os limites que Enwezor quer quebrar sejam também territoriais: o curador nigeriano pretendeu instalar aqui um “Parlamento de Formas” , qualquer coisa como uma assembleia de 136 artistas de 53 países. Daqueles, 89 estão pela primeira vez na Bienal de Veneza.
Paralelamente, Enwezor declinou o seu conceito geral em três subtemas: Garden of Disorder, Liveness: On Epic Duration e Reading Capital. Não é muito claro que artistas trabalharam um ou outro destes tópicos, suficientemente vagos para permitirem diferentes osmoses conceptuais entre eles. Mas a tonalidade geral está dada: o apelo à demonstração de um estado da arte e dos artistas que questiona o sistema, quer pelo tipo conceptual de projectos apresentados, quer pelas origens geográficas de muitos dos participantes – que, como acima se referia, são na maioria estreantes neste tipo de eventos. Ou seja, o grande tema geral de toda a exposição não é o futuro, ou não é apenas o futuro, mas o presente. Mais exactamente: a presença testemunhal do artista perante o estado do mundo. Um artista, afinal, só pode falar do presente. A alternativa será sempre cair na ficção do futuro.
Por todas estas razões, a perplexidade acompanha não raro a visita da exposição. É que o apelo ao exótico, no fundo a grande constante subjacente à integração de expressões artísticas que continuam, por força das circunstâncias, a considerar-se como periféricas, acarreta desde logo uma consequência importante: a de obrigar o espectador a considerar as obras apenas nas suas qualidades técnicas ou formais, na impossibilidade de abarcar todas as condicionantes sociológicas que as originam. Perante os desenhos figurativos de um artista egípcio, interrogamo-nos sobre a presença da representação da figura humana numa cultura religiosa que a proíbe, ou sobre a presença de modelos estéticos e artísticos de importação numa sociedade do Médio Oriente, e pouco mais. O mesmo perante as assemblages de objectos de cerâmica em tons berrantes, do deslocamento de peças de arte popular oriental por um artista da Coreia do Sul, de representações próximas dos nossos estereótipos da arte africana, e por aí fora. Os exemplos, quer nos Giardini, quer no Arsenal, são muitos, às dezenas, e acabam por questionar o próprio conceito de arte, tanto quanto os próprios critérios com que avaliamos cada obra. E o conteúdo político tão evidente em todas elas produz sempre a interrogação que se impõe em Veneza: sendo a bienal, como sempre o foi, a alavança para a internacionalização dos artistas participantes, ela é também o sinal da sua integração plena no sistema económico, capitalista e ocidental, do coleccionismo de arte. Questionar este sistema a partir do seu interior será sempre, no mínimo, uma contradição evidente.
O bom, o médio e o mau
Como em qualquer exposição de dimensão comparável, há obras más, obras muito boas, obras de qualidade mediana. E obras provocantes: as esculturas de Sarah Lucas, no Pavilhão Britânico, convocam a iconografia pornográfica, provocando uma leitura entre o cómico e o abjecto. Mesmo em frente, um excelente trabalho da francesa Céleste Boursier-Mougenot, Révolutions: grandes cedros plantados em blocos de terra dotados de um motor, que se movem lentamente pelos espaços disponíveis. Ou, no Pavilhão dos Países Baixos, uma instalação do veterano Peter de Vries feita com matérias diversas, de plantas aquáticas a restos das oficinas de vidro de Murano, recolhidas na laguna: um projecto que estabelece a ligação entre o tema da bienal e uma das últimas vanguardas do século XX, a Land Art. Ou ainda, num trabalho que lhe valeu um prémio de carreira, a obra em vídeo realizada por Joan Jonas e apresentada no pavilhão dos Estados Unidos.
A artista que ganhou o Leão de Ouro está no Arsenal, em All the world’s futures. Trata-se da também norte-americana Adrian Piper, que criou um registo interactivo, de aparência burocrática e oficial, onde qualquer visitante pode deixar as suas coordenadas e comprometer-se a uma de três atitudes: falar sempre a sério, fazer tudo o que diz que se vai fazer, e “ser sempre caro(a) demais para ser comprado”. Cada participante receberá no futuro um e-mail a confirmar este compromisso, que o júri considerou como um convite “para uma vida responsável”. Já o Leão de Ouro das participações nacionais foi para a Arménia, que reuniu os seus artistas da diáspora num convento numa ilha ao largo do Lido. Neste caso, o júri salientou, para além da qualidade dos trabalhos dos artistas, o facto de se comemorar o centenário do massacre dos arménios perpetrado pela Turquia.
Esta conotação política, que talvez com alguma candura os responsáveis pela Bienal não se cansam de salientar, esteve também presente numa menção honrosa concedida a um colectivo anónimo de cineastas sírios, Abounaddara, que acabou por protagonizar um daqueles casos que condimentam as inaugurações: o colectivo queixou-se de censura e abandonou com algum estrondo a exposição do Arsenale pouco tempo depois da inauguração, alegando que era impossível que o júri tivesse visionado o filme que pretendiam apresentar antes de atribuir o prémio. No Arsenale, este passaria supostamente num espaço de performances várias, a Arena, onde também houve uma homenagem muito comentada ao cineasta alemão de origem indiana Harun Farocki.
Ainda no Arsenale, e no espaço dos Giardini dedicado a All the world’s futures, destacavam-se o filme de Steve McQueen, discretamente projectado num recanto, a instalação com uma grande árvore morta de Robert Smithson, que aqui estabelece uma ponte fortemente simbólica entre o que se mostrava e a arte ainda modernista, e radical na sua vontade de inovação dos anos 70; e uma formidável instalação de Thomas Hirschhorn que rompe literalmente o tecto da sala onde se encontra para deixar cair uma série de cópias de obras de Platão, escritas em grego – logo, ilegíveis para a maioria. Entre muitos outros autores, de Marlene Dumas a Marcel Broodthaers ou ao moçambicano Gonçalo Mabunda (e Moçambique teve este ano, pela primeira vez, pavilhão em Veneza), decepcionantes são alguns projectos de artistas com responsabilidades inegáveis. O público não se engana, transformando-as em cenário de fotografia pseudo-artística, como no caso dos drapeados coloridos de Katharina Grosse.
A tudo isto acrescenta-se um programa de performances, retrospectivas e acções diversas que se por um lado visam atestar da vitalidade da bienal, testemunham também da importância cada vez maior que estas acções paralelas à actividade artística mais tradicional possuem. Mesmo numa tarde de fim de Agosto, com um público moderado nos seus objectivos e na sua densidade, o espaço da Arena fervilhava de vozes e gestos, suscitando a curiosidade e prendendo a atenção de quem passava.
Portugal no Loredan
E depois há os muitos pavilhões nacionais que, não tendo lugar fixo nos Giardini, como é o caso de Portugal, se distribuem por espaços alugados por toda a cidade. Livres de constrangimentos curatoriais, boa parte deles espelha as idiossincrasias inerentes a diferentes conceitos de contemporaneidade, de arte, de qualidade artística. Do Tuvalu aos Emirados Árabes Unidos ou à Santa Sé, cada pavilhão reflecte os meios económicos disponíveis para a representação, para além dos esforços nacionais para mostrar o melhor que há em casa.
Este ano, numa selecção que continua a manter uma aura de mistério e a suscitar os mais diversos boatos, a obra de João Louro, comissariada por María de Corral, está no Palazzo Loredan, um edifício que acolhe o Instituto Veneziano de Ciências, Letras e Artes. Dotado de uma biblioteca antiga, extensa e bonita, distribuída por diversas salas, é aqui que se encontra a exposição I will be your mirror – poems and problems, onde o artista sintetiza as grandes linhas de força subjacentes ao seu trabalho dos últimos anos. Frases, apagamentos, reproduções de capas de livros, signos luminosos e outras obras conjugam habilmente os códigos linguístico e plástico, introduzindo-nos num universo muito pessoal onde o livro, o filme e a música são instrumentos para construir uma autobiografia do artista. Muito boa é também uma escultura em forma de escadote, onde o “espelho” de cada degrau foi substituído precisamente por um espelho, introduzindo-nos a nós, espectadores, na própria imagem do trabalho. Maior perplexidade é causada por uma exposição paralela no mesmo espaço, da autoria da EDP, financiadora de toda a participação portuguesa, e que surge aqui como intrusão publicitária difícil de justificar.