Isto foi a juventude – e teve um fim
A 18 de Setembro de 1995, Jorge Silva Melo estreava António, Um Rapaz de Lisboa, peça histórica para o teatro português, reivindicação do palco como lugar para a gente vulgar, extensão da rua alicerçada numa rebentação de juventude que marcou o nascimento dos Artistas Unidos.
“Pensava que tinha uma companhia de jovens actores”, comenta com o Ípsilon no final do ensaio, “mas não, eles envelheceram, tal como eu – enganam-me todos os dias ao andarem de calções e de chinelos como agora os adultos fazem –, e achei engraçado reunir quatro dos fundadores dos Artistas Unidos para abrir estes 20 anos de actividade”.
Pode ser uma, pode ser outra, podem ser as duas coisas. Pode Jorge Silva Melo ter estado tão distraído a viver estes 20 anos dos Artistas Unidos que não se tenha apercebido de que os anos também passaram para António Simão, João Meireles, Pedro Carraca e Américo Silva. Pode também dar-se o caso de viver numa cedência permanente à nostalgia daquele tempo, em 1995, quando reuniu à sua volta uma magnífica trupe de jovens actores cuja energia transbordante, aliada à partilha de uma linguagem teatral que lhes era nova e excitante, ajudou a inscrever António, Um Rapaz de Lisboa , peça estreada há exactamente 20 anos, como um momento histórico no teatro português. O fantasma de António, aliás, poder-se-á entrever algures no palco de Jogadores. Tal como ele, também estas personagens não têm trabalho nem deixam de ter (fazem umas coisas, sobrevivem). Tal como na peça fundadora dos Artistas Unidos, também aqui “olhamos durante uma hora para quem passamos na vida sem olhar, para pessoas que na vida real só vemos que troco têm para nos dar quando lhes pagamos o serviço que nos prestaram”, descreve o encenador, parafraseando o dramaturgo italiano Spiro Scimone.
E tal como Miró diz que os seus Jogadores são como personagens que se esqueceram do texto e estão à espera que volte, também Silva Melo falava há muito de ecos de Pirandello em relação a António, Um Rapaz de Lisboa, quando aludia a um público que andava à procura de personagens que lhe equivalessem, de um público que tomava a cena exigindo que a sua “história pateta” tivesse a mesma atenção e a mesma importância das tragédias de imperadores e de reis, de cortes em desgraça, de lutas sociais, de guerras sem fim.
A ferida inicial
Bruxelas, 1993. Nas “horas mortas da sonorização” do seu filme Coitado do Jorge, Silva Melo “corria para o Musée des Beaux-Arts, uma colecção sublime sem ninguém nas salas”. Foi numa dessas escapadelas que se viu perante António, Bastardo da Borgonha, obra do pintor flamengo Rogier van der Weyden (1400-1464). Olhou muitas vezes para esse “retrato esplêndido” perguntando-se se aquela determinação no olhar poderia existir num rapaz de Lisboa de 20 e poucos anos que desde logo teve um rosto óbvio: Manuel Wiborg. Desde Bruxelas, Silva Melo enviou um postal para o jovem actor que levara já para Coitado do Jorge: “Fazemos agora um António, rapaz sem pai, em Lisboa?” Foi isso que fizeram, quando o encenador sentiu que Lisboa precisava de uma outra cara depois da do pugilista Belarmino, filmada por Fernando Lopes.
Na verdade, é em Coitado do Jorge que se começam a forjar os Artistas Unidos. Regressado de um período de dez anos a fazer teatro em Paris com Jean Jourdheuil, Silva Melo avança para esse filme que marca o encontro com dois jovens actores. “Foi o facto de ter filmado com o Manuel Wiborg e a Joana Bárcia que me fez pensar: não posso usá-los, deitá-los fora, entregá-los a um patrão”, confessa. “Queria pelo menos viver uns anos com eles, ver a voz afinar-se. Depois, conheci o maravilhoso Paulo Claro. E era com eles que eu pensava que iria viver.” Wiborg, ainda no seu primeiro ano de Conservatório, foi uma descoberta do casting, enquanto Bárcia foi “roubada” de um casting para outro filme de que a actriz já não se recorda. “Foi o início de uma história de amor, e de um período de laboratório artístico com muita gente nova, cheia de vitalidade, que conseguiu criar coisas incríveis. E o Jorge tinha e tem isso – um dom para juntar pessoas”, afirma Joana.
Em Wiborg e Bárcia, Silva Melo encontrava “a juventude sem fim, a entrega, o abandono”. “E, de certa maneira, a ferida. Gosto que os actores tragam consigo a sua dor, a ferida inicial… e que a queiram chorar connosco.” Esse abandono, essa ferida, essa juventude que se confunde ainda com imortalidade, acredita Joana, tudo isso era acompanhado pela ideia de que o encenador sabia chegar “àquelas pessoas que teriam à partida menos a dizer”. “O Jorge sabia que, no fundo, eram quem tinha mais a dizer, eram um pouco os misfits. Eu fazia parte disso na altura e acho que estava presente esse lado quase punk de pegar em pessoas aparentemente coxas e… pô-las a andar.”
Se é o encantamento com os dois actores que o faz avançar para a criação de António, Um Rapaz de Lisboa, não é menos relevante que esse marco fundamental do teatro português nasça da proposta de uma mini-série sobre Lisboa que Silva Melo é convidado a apresentar pela RTP no âmbito de Lisboa-94, Capital da Cultura. “Escrevi três episódios”, recorda. “Apreciaram muito mas… não se fez. Aquilo irritou-me.” A irritação poderia ter morrido nos braços da frustração, mas em vez disso o autor dirigiu-se a Yvette Centeno, do Serviço Acarte (Gulbenkian), e propôs-lhe transformar aquele material numa peça de teatro. Centeno ajudou-o a pôr de pé um seminário de escrita que se prolongou por dois meses e que contava já com parte do elenco com o qual desenvolvia as cenas. A este grupo de trabalho, juntavam-se “20 auditores que iam propondo alterações, variantes, outros desfechos”. “Foi um processo muito rico e generoso."
O envolvimento dos actores no processo dramatúrgico começa então a tornar-se inebriante e, fixado o texto no seminário, António começa a ganhar vida em ensaios partilhados com quase três dezenas de intérpretes, quase todos em início de carreira, que se juntavam em torno de Wiborg e Bárcia. “Começou a desenhar-se um grupo de pessoas, mais ou menos da mesma geração, com os mesmos interesses, que frequentavam os mesmos sítios, que se encontravam e falavam”, conta António Simão. “Depois apareceu o Jorge, que aglutinou um pouco as vontades e as procuras deste grupo.” São estes actores que enchem então o palco. Não apenas em número, mas também em vitalidade e urgência.
Lisboa de volta
Depois dos dez anos em Paris, Jorge Silva Melo “tinha perdido de vista Lisboa", onde via "nascerem alguns cineastas" que lhe interessavam e um teatro que não lhe "interessava nada”. “Não frequentei o teatro durante os anos 80/90, ainda me doía a forma como tive de sair daqui, ficava a tremer quando entrava nas salas, tinha suores e não sabia o que dizer, foi muito violento.” Toda este gente de que se rodeava parecia, assim, um meio para voltar a ligar-se a Lisboa, fazer as pazes com o teatro da cidade, infundir numa nova geração efervescente a sua vontade de se atirar de cabeça e correr riscos, ao contrário da produção teatral dominante que falava do presente recorrendo ao passado, nunca a partir do presente. E que incidia, por regra, noutros lugares ou então em vidas épicas, extraordinárias, pouco mundanas.
“Porque é que a poesia do teatro é tão bafienta e deixamos ao rock as palavras dos nossos dias?”, questionava Silva Melo no prefácio à edição em livro de António, Um Rapaz de Lisboa. “Não pode já haver um teatro dos dias de hoje? Não digo para hoje, insisto que seja de hoje, e desta rua”, escrevia ainda. A rua chegava ao palco pelas palavras (frases que, inacabadas, não perdiam o sentido nem tinham tempo a perder com formalidades – “…o coiso de História de Arte?”, pergunta às tantas Ana) e os corpos eram trabalhados pelo coreógrafo João Fiadeiro, nome fundamental da Nova Dança Portuguesa que se impunha (e que, mais tarde, encenaria nos Artistas Unidos Samuel Beckett e Sarah Kane), pondo fim a poses solenes. Fiadeiro foi chamado “a aplicar muitas ideias que estava a investigar em termos de composição coreográfica” e encontrou ali “um lugar de experimentação em que o próprio Jorge estimulava a ideia de arriscar.” “Ele procurava uma espécie de explosão, um lugar onde a palavra não fosse erudita no seu modo de composição, uma palavra que viesse directamente da rua”, argumenta o coreógrafo. “Mas que não caísse na representação da rua. Grande parte do nosso exercício foi trazer a rua cá para dentro sem a representar. Era um sinal dos tempos, mas também uma questão política: não abdicar do teatro e da ficção e, por outro lado, não sucumbir nem nos tornarmos vassalos de uma estrutura de poder que pode matar tudo o que toca.”
Também João Meireles, que conta ter entrado em António depois de chamado para uma reunião na cozinha de Silva Melo que ainda não terminou, fala da peça como “uma coisa de explosão, de descoberta, entusiasmante”, em que a realidade era chamada à cena através, por exemplo, da leitura do jornal do dia. “Eram personagens que lidavam com as mesmas questões que tinham sido discutidas à volta do café nessa manhã. Era uma dramaturgia do agora – nem sequer era do contemporâneo.” Para João Pedro Rodrigues, cineasta e assistente de encenação em António depois de aluno de cinema de Silva Melo, foi também óbvia a sensação de estar a participar em algo em que “havia uma excitação por uma coisa que se estava a fazer à medida que se fazia, que se encenava e se descobria”. “A vida do exterior vinha para dentro do teatro, Portugal, a realidade, os corpos jovens daquela altura e todas essas energias que explodiam numa coisa muito crua e muito viva.”
António
No centro de tudo isto, claro, António. Ou melhor, Manuel Wiborg. Para o actor, o quase anonimato da personagem, o poder corresponder a alguém que se levantaria da plateia para contar a sua normalidade em palco, o existir apenas no agora – sem passado para onde se escapar nem futuro a que se agarrar –, foi tão atraente quanto desafiante. “Poderá haver muitos pontos de encontro entre a personagem António e o actor Manuel Wiborg”, comenta, “uma vez que o Jorge escreve o António como um rapaz da minha idade, que vive na cidade de Lisboa. Mas não estou a fazer de mim. E como actor é muito mais complicado fazer uma personagem do tipo do António, comum a muitas pessoas de uma geração em determinada época e em determinado lugar, do que fazer alguém que tem uma característica muito própria. Todos os gestos, todas as formas de estar ou de falar têm de ser pensadas no sentido de um conceito e não de uma pessoa”.
Foi precisamente essa quase ausência de distância entre actores e personagens que inundou o palco de uma energia e de uma intensidade que deixaram marcas nas três primeiras apresentações, em Setembro de 1995, no Grande Auditório da Gulbenkian (e mais tarde no Tivoli). “Havia um grande espírito colectivo, um grande espírito de entrega e uma grande alegria em fazer aquela peça. Foi um dos baptismos mais felizes que tive na minha vida profissional”, garante Wiborg. Feliz e com um enorme impacto. Na noite da estreia, ainda mal refeitos da euforia com que a peça tinha sido recebida, os actores foram festejar para o Bairro Alto e perceberam que António era o nome que se ouvia contagiar as conversas. “Havia mais pessoas que me viam passar na rua e diziam ‘Olha o António’ do que hoje quando entro numa telenovela em prime time”, descreve Wiborg. “Foi o boom que foi. E não podia parar.”
A intensidade daquela história de um jovem de classe média lisboeta a viver com o irmão e a namorada, lidando com uma mãe cancerosa, uma ex-mulher falida e um filho para sustentar e criar, parecia, ainda assim, de um tempo suspenso. “O horizonte prometia algo, embora ninguém percebesse muito bem o que era, mas havia actividade e vida, coisas a acontecer”, descreve António Simão.
A festa interminável
Apoiando-se no profundo entusiasmo colectivo que levou à cena António, Um Rapaz de Lisboa, Silva Melo prolongou o gesto e fundou os Artistas Unidos, tornando mais consequente a promessa de um teatro que se afirmava em palco como “uma festa interminável em que tudo podia ser possível”, na descrição de Joana Bárcia. A festa, mais ou menos nos mesmos moldes, continuou depois em Fim ou Tende Misericórdia de Nós e Prometeu Agrilhoado. Essa convocação dos actores para a criação do texto era aquilo que “prendia muito” Wiborg a Silva Melo e “à ideia de Artistas Unidos”. “É dessa forma que o teatro me enche de felicidade”, admite o actor que, na altura, “recusava todos os outros convites para poder trabalhar ali": "Era aquilo e era assim que queria fazer.”
É, depois, com a entrada em textos de reportório, de Shakespeare e Brecht, que Wiborg conclui que “o modelo mudou um bocadinho”, deixando de existir “a dinâmica e a vibração da criação colectiva das três primeiras peças”. Em 1998, coloca um primeiro pé fora dos Artistas Unidos, ao criar com António Simão e Mónica Calle os Actores Produtores Associados (APA). Simão acaba por regressar à casa-mãe "Queria contribuir para que algo maior do que eu pudesse continuar a existir”, explica); Wiborg entrega-se por inteiro à APA em 1999, escolhendo os seus próprios textos, ainda que aconselhado por Silva Melo, que lhe vai indicando peças para fazer. Primeiro, interessam-lhe os protagonistas, dada a sua vontade de se desafiar simultaneamente enquanto actor e encenador; depois, privilegia a encenação através de peças a que possa emprestar o seu olhar, casos de Regras de Atracção, a partir de Breat Easton Ellis (“lixo literário”, classifica, mas cujo dispositivo original cruzando teatro e cinema lhe valeu o Prémio Revelação Ribeiro da Fonte), ou Laranja Mecânica. A APA fecha em 2008 e Wiborg volta a trabalhar mais assiduamente em televisão, pontuando cada ano com algumas experiências de direcção teatral.
Durante um período mais longo, 12 anos, Joana Bárcia mantém-se na companhia e é uma presença tão forte que muitos ainda assumem que se encontra nos Artistas Unidos. Mas saiu em 2007, “cansada de um sistema interno”, à procura de qualquer outra coisa, passando a trabalhar com a cineasta Solveig Nordlund ou com companhias como a Truta (com a qual está actualmente em cena no Teatro Maria Matos) ou a Mala Voadora. Continua, no entanto, a afirmar que a passagem pelos Artistas Unidos foi, “de certa maneira", "a melhor coisa" que lhe aconteceu na vida. Pelo encontro daquelas pessoas, pela oportunidade de trocar ideias com autores como Enda Walsh, mas também pela perseguição movida pelo grupo à contemporaneidade. De Silva Melo diz, entre outras coisas, ter sorvido um mandamento fundamental para os actores: “Não perguntes, faz.” “Uma coisa muito importante para o meu crescimento”, diz Fiadeiro no mesmo sentido, “foi a enorme liberdade que o Jorge me deu, sem nenhum medo de arriscar ou de falhar. Isso teve uma influência muito grande nas minhas obras coreográficas mais tarde”.
“A vontade de estar juntos, de inventar coisas” que Jorge Silva Melo identifica como a força motriz dos Artistas Unidos, ligada a um sublinhar dos novíssimos textos contemporâneos, mantém-se até hoje e por ela foram passando exemplos vários daqueles que, saindo, desenvolveram os seus próprios projectos – Bruno Bravo (Primeiros Sintomas), Jorge Andrade (Mala Voadora), José Maria Vieira Mendes (Teatro Praga) ou Tiago Rodrigues (Mundo Perfeito). “A única coisa que se alterou”, acredita António Simão, “foram os meios para realizar esta ideia de companhia, meios que, por inacreditável que pareça, diminuíram. Também é possível que o nosso projecto não tivesse ou tenha cabimento nesta Lisboa, neste país, e que por isso tenhamos de nos adaptar à realidade, que só haja lugar para o novo, o momentâneo, para a festa patrocinada.” Silva Melo confirma que “as condições têm sido terrivelmente duras”: “Não sei como estamos, mas eu não estou feliz. E estou velho.”
A juventude, ainda assim, continua por perto. Muito embora Silva Melo diga estar a acompanhar uma “fornada de actores” que sabe ser “a última”, à sua volta, como aconteceu há 20 anos, começa a reunir-se um grupo composto por João Pedro Mamede, Rita Cabaço, Nídia Roque e amigos que traz energia renovada para os Artistas Unidos. Simbolicamente, em Fevereiro de 2016, o encenador estreará no Teatro Municipal São Luiz um filme sobre si que está a ultimar. Chama-se assim: Ainda Não Acabámos.