Desminagem de Moçambique terminou e é como se a guerra acabasse de novo
Mais de duas décadas após fim da guerra civil, foi oficialmente anunciado que o país está livre da ameaça das minas antipessoal.
Quem por ali vive respira agora de alívio, depois de, no final de Agosto, as operações de desminagem terem terminado. “As minas eram como uma segunda guerra”, disse o chefe tradicional da zona, Felberto Manuel Mafambese, ao jornal britânico The Guardian. “A comunidade vivia sob pressão. De cada vez que eu saía não sabia se ia pisar uma mina.”
Agora essa preocupação acabou. O Governo anunciou que o país já não tem as minas que, ao longo de décadas, causaram medo a quem sabia havê-las por perto “É com grande prazer que tenho o privilégio de declarar Moçambique como um país livre da ameaça das minas antipessoal”, disse, esta quinta-feira, em Maputo, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Oldemiro Balói, na presença de embaixadores e organizações internacionais.
Muitas minas foram deixadas pelas tropas portuguesas. Mas o recurso a essa arma escondida – são normalmente enterradas a uns cinco centímetros de profundidade – continuou durante os 16 anos da guerra civil entre o Governo da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) e a guerrilha da Renamo (Resistência Nacional Moçambicana) que custou a vida a um milhão de pessoas.
A guerra acabou em 1992, mas o problema ficou. Muitos morreram anos após a entrada em vigor da Convenção internacional contra as minas antipessoal, em 1999, e décadas depois de terem sido enterrados os engenhos que os vitimaram. Entre 2008 e 2011 morreram 23 pessoas, em 2013 perderam a vida 13.
Na memória de Tomé, agricultor, 76 anos, está bem vivo um caso de 2010. “Ouvi uma explosão e corri para lá”, recordou. “Estava a chover, o homem estava a tentar atravessar o viaduto e pisou uma mina. Ela atingiu uma das suas pernas mas ele ainda estava consciente. Eu e um amigo levámo-lo para o hospital mas ele morreu.”
Antes do anúncio oficial desta quinta-feira, foi, no final de Agosto, detonada no Dondo, junto a uma ponte ferroviária que atravessa o rio Punge, a última mina cuja localização era conhecida. Era uma Gyata-64, de fabrico húngaro. Foi esse “momento final”, acompanhado pelo diário britânico, que permitiu a Moçambique anunciar agora o fim da desminagem, do país. Mais de duas décadas após o fim da guerra civil.
Daquela zona, minada pelas forças do Governo, a organização britânica Halo Trust limpou cinco campos de minas que se estendiam por uma área de 36 mil metros quadrados. Foram destruídas 314 engenhos explosivos.
A Halo Trust foi uma das principais responsáveis pelo êxito do processo de desminagem de Moçambique: destruiu mais de 171 mil minas e limpou para cima de 1100 campos minados, com um custo estimado em 2012 de 285 milhões de dólares, lembrou o Guardian. Seriam, ao câmbio actual, mais de 252 milhões de euros. A organização perdeu também quatro colaboradores.
O Instituto Nacional de Desminagem calcula que tenham sido removidas no total cerca de 300 mil minas, enterradas na sua maior parte junto a caminhos-de-ferro, barragens, pontes e outras infra-estruturas. Chegou a ser mencionado o número de um milhão, que se revelou fantasioso.
Sair da lista negra
Chegou a pensar-se, e essas eram as perspectivas mais optimistas, que a desminagem de Moçambique, iniciada em 1993, demoraria pelo menos cinco décadas. Acabou mais depressa devido ao esforço combinado das autoridades, de doadores, designadamente Estados Unidos e Reino Unido, e de organizações internacionais.
Moçambique torna-se no primeiro dos cinco países mais minados do mundo a chegar ao fim de uma tarefa imensa. Os outros são Angola, Afeganistão, Cambodja e Sudão. O caso moçambicano dá esperança a todos os que trabalham na desminagem, como reconheceu ao mesmo jornal Calvin Ruysen, director regional da Halo para o Sul da África. “É o primeiro país fortemente minado a chegar ao fim do processo. Mostra que com a abordagem e os recursos certos pode chegar-se ao fim. É um exemplo para outros países.”
Ainda que o momento seja de satisfação, ninguém pode garantir que as minas tenham deixado de matar. Isso porque não foi vasculhou cada palmo de território, mas apenas os lugares suspeitos. “Não seria realista afirmar que não voltará a haver acidentes relacionados com minas ou outros engenhos explosivos”, reconheceu o ministro Oldemiro Balói, citado pela AFP.
Em cada distrito do país haverá dois polícias com formação para desactivarem eventuais engenhos que sejam descobertos. Mas o caminho feito permitiu que fosse declarada oficialmente em Moçambique o fim de um tipo de guerra que se prolonga muito para além do momento em que os tiros acabam.