Medicamento evita transmissão do vírus da sida a quem mais precisa
Medicamento profiláctico diminuiu em 86% o risco da transmissão do vírus da sida em homens que têm sexo com homens. Fármaco não está disponível na Europa para este fim.
O truvada contém emtricitabina e tenofovir, dois antivirais que impedem a replicação do vírus da imunodeficiência humana (VIH) nas células humanas. Desde 2004 que o medicamente está no mercado norte-americano para tratar pessoas que foram infectadas pelo vírus da sida. Em 2005, o medicamento chegou à Europa com o mesmo propósito.
O objectivo destes antivirais é impedir completamente a replicação do vírus nas células humanas. Desta forma, o nível do vírus no sangue torna-se indetectável e, a longo prazo, impede-se a destruição de células do sistema imunitário — um alvo preferencial do VIH. É a destruição daquelas células que torna os doentes vulneráveis a todo o tipo de micróbios. Nesta fase, as pessoas com o VIH passam a ter a síndrome de imunodeficiência adquirida (sida), e morrem — só em 2013, 1,5 milhões de pessoas morreram de sida.
Mais tarde, o truvada começou a ser alvo de ensaios clínicos para testar a eficácia desde medicamento como profilaxia pré-exposição (que já ganhou o nome de PrEP, sigla em inglês para “pre-exposure prophylaxis”). Este termo vem em oposição à profilaxia pós-exposição — um tratamento especialmente indicado para quem correu o risco, nas últimas 72 horas, de ter sido infectado pelo VIH numa relação sexual, no uso de uma seringa já usada ou de outra forma qualquer.
O VIH existe em certos fluidos humanos como o sangue, o esperma, o fluido pré-ejaculatório, o fluido vaginal, o fluido anal e o leite. E pode ser transmitido a outra pessoa quando um destes fluidos entra em contacto com as membranas mucosas, que existem na boca, na vagina, no pénis e no ânus, quando entram em contacto com uma ferida, ou no caso do uso de seringas ou de transfusões de sangue contaminado com o vírus. As relações sexuais desprotegidas são das formas mais comuns de se transmitir este vírus.
Enquanto o preservativo impede o contacto físico entre o vírus e as membranas mucosas, e é um dos métodos mais eficazes para evitar a transmissão do VIH, o truvada actua a jusante, impedindo a replicação do vírus nas células e evitando que a infecção se estabeleça.
A profilaxia pós-exposição, que usa uma certa combinação de medicamentos, está disponível em Portugal, ao contrário da profilaxia pré-exposição, já que o truvada não foi aprovado pela Agência Europeia de Medicamentos para esse fim. Mas nos Estados Unidos, depois de vários estudos que mostraram a eficácia do medicamento, o truvada passou em 2012 a ser indicado como profiláctico.
“Quando tomado todos os dias, a PrEP pode dar um alto nível de protecção contra o VIH, e é ainda mais eficaz quando combinado com o uso de preservativo e de outros métodos de protecção”, lê-se no site dos Centros de Controlo e Prevenção de Doenças, a agência pública de saúde dos Estados Unidos. “Não se deve parar de usar os preservativos por se estar a tomar a PrEP. Se a PrEP é tomada diariamente, oferece muita protecção contra a infecção do VIH, mas não 100% de protecção. Os preservativos também oferecem muita protecção contra a infecção do VIH se forem usados correctamente cada vez que se tem sexo, mas não oferecem 100% de protecção. A PrEP não dá qualquer protecção a outras infecções que podem ser transmitidas durante o sexo, mas os preservativos dão”, explica ainda aquele site.
A demonstração da eficácia da PrEP foi feita apenas para o VIH-1, o tipo de vírus da sida mais comum. Não há informação sobre a sua eficácia para o VIH-2, um vírus que representa uma minoria dos casos de sida em Portugal.
Na cidade de São Francisco, o uso da PrEP tem, desde então, aumentado. Um estudo publicado no início de 2015 mostrava que 31% das 16.089 pessoas que, naquela cidade, se estima estarem mais vulneráveis à infecção pelo vírus, já estava a fazer a PrEP em 2014. Mas os especialistas querem aumentar esta percentagem para, juntamente com a detecção precoce e o tratamento imediato do VIH, baixar o número de novos infectados.
Na Europa, esta opção continua a não estar disponível. O novo estudo, liderado por Sheena McCormack, da Universidade College London, vem reforçar a ideia da eficácia desta estratégia, ao mesmo tempo que refreia alguns medos associados ao uso do truvada para a profilaxia pré-exposição.
Experiência sem placebo
No estudo, chamado Proud, participaram 523 homens que fazem sexo com homens, contactados em clínicas de saúde sexual na Inglaterra, que deram negativo no teste inicial para o VIH. Só quem tinha tido uma ou mais relações de sexo anal sem o uso do preservativo nos 90 dias anteriores ao início do estudo é que pôde participar no trabalho.
Parte do grupo começou imediatamente a tomar um comprimido diário de truvada. Outra parte do grupo só iniciaria a profilaxia passado um ano. Todos os participantes receberam aconselhamento para evitar a infecção pelo VIH e preservativos. Os participantes que só iniciariam o uso de truvada passado um ano tinham oportunidade de fazer sempre que quisessem a profilaxia pós-exposição.
Ao contrário de outros estudos sobre a PrEP, este trabalho não recorreu ao uso de comprimidos placebo. Nesses trabalhos, os participantes não sabem se estão a tomar o truvada ou um comprimido que não faz nada. O novo estudo imitou o que se passará no dia-a-dia, em que se sabe quando se está a tomar o fármaco. Desta forma, o trabalho testou se há fundamentos para um dos argumentos contra a introdução da PrEP: o receio de que os utilizadores do truvada acabem por descurar o uso do preservativo correndo um risco acrescido de serem infectados por uma outra DST.
“Esta hipótese reflecte uma mistura estranha de ingenuidade e moralismo. Se os preservativos fossem usados consistentemente, o rácio das novas infecções pelo VIH não continuaria a ser de dois milhões de infecções por ano”, defendem os especialistas em sida e VIH Chris Beyrer, presidente da Sociedade Internacional da SIDA, e Kenneth Hugh, epidemiologista da Faculdade de Medicina de Harvard, num comentário ao artigo, publicado também na revista The Lancet.
Mas o trabalho não confirma aquele receio, além de demonstrar mais uma vez a eficácia do medicamento. Apenas três homens foram infectados com o VIH no grupo que iniciou imediatamente a PrEP. Num deles, o VIH foi detectado um mês após o início da experiência, e os cientistas pensam que terá sido infectado antes do início do tratamento. Os dois outros indivíduos não tinham tomado o medicamento durante meses antes de se detectar que tinham o vírus. “Isto sugere que não houve novas infecções nos participantes que tomaram a PrEP”, lê-se no artigo.
Já no grupo que ficou durante alguns meses sem tomar o truvada (o período de tempo não chegou a ser um ano devido aos resultados muito positivos da PrEP), 20 pessoas foram infectadas pelo VIH. Isto mostra que a eficácia da PrEP foi de 86% (os três homens infectados do grupo que tomou a PrEP foram contabilizados).
Em relação às outras doenças sexualmente transmissíveis, os autores concluíram que, em média, o grupo de homens a tomar truvada contraiu tantas DSTs como o grupo de controlo.
“A redução impressionante da incidência de VIH nas pessoas a tomar a PrEP, sem nenhum aumento comensurável de outras infecções sexualmente transmitidas, é tranquilizador (...). Os serviços de saúde nacionais estão sob constrangimentos financeiros, mas não podem ignorar resultados do Proud e Ipergay [outro trabalho com resultados semelhantes], que apoiam firmemente a inclusão da PrEP na prevenção básica do risco de transmissão da infecção VIH em homens que fazem sexo com homens”, conclui o artigo.
Falta de prevenção
Em 2013, houve 1416 novas infecções pelo VIH em Portugal, de acordo com o relatório de 2014 da Direcção-Geral da Saúde. São menos de metade do que no ano de 2000 — quando se atingiu o pico de novas infecções, de 3097. Mas esta tendência reflecte a gigante diminuição de novas infecções em utilizadores de drogas injectáveis que passaram de 1574, em 2000, para 97, em 2013.
Em mulheres e homens heterossexuais, o número passou de 1190 para 876 nesses 14 anos, depois de uma subida nos primeiros anos da década passada. Mas o número de infecções aumentou entre os homens que fazem sexo com homens de 237, em 2000, para 411, em 2013.
“Todos os meses, detectamos oito ou nove infecções novas pelo VIH”, diz Maria José Campos ao PÚBLICO, médica e coordenadora científica do CheckpointLX, um centro comunitário dirigido aos homens que têm sexo com homens, onde se pode fazer o rastreio do VIH e de outras infecções sexualmente transmissíveis. “A prevenção e a detecção do VIH falharam completamente”, defende a especialista, que considera que a educação sexual nas escolas não existe na prática, porque não está a ser aplicada.
Para a médica, a PrEP deve chegar o mais rapidamente possível a todas as pessoas mais vulneráveis à infecção, como homens que têm sexo com homens e não usam o preservativo, heterossexuais com vários parceiros e que não usam o preservativo, pessoas cujo parceiro
a tem o VIH, trabalhadores do sexo, mulheres transexuais ou utilizadores de drogas injectáveis. “Todos os dispositivos que evitem a transmissão do vírus do VIH devem estar disponíveis”, refere Maria José Campos, acrescentando que custa muito mais dinheiro “tratar uma pessoa seropositiva para o resto da vida” do que proporcionar todas as formas de evitar que se transmita o vírus.
Segundo os autores do estudo Proud, a população que se ofereceu para tomar o truvada está especialmente susceptível à transmissão do VIH. Enquanto a incidência anual foi de 1,34 novos casos de VIH por 100 homens que fazem sexo com homens para o ano de 2012, em Inglaterra, a incidência no grupo que não tomou a PrEP, no estudo, foi de nove casos em 100 homens, ou seja, muito maior do que a população em geral. “Esta diferença sugere (...) que a oferta da PrEP atrai geralmente aqueles homens que mais irão beneficiar dela”, lê-se no artigo. O grupo que tomou a PrEP teve uma incidência de apenas 1,2 casos por 100 homens, muito mais baixa do que o grupo que não tomou o medicamento e até mais baixa do que na população em geral.
Em 2017, a patente do truvada vai expirar, abrindo a porta para os genéricos e a redução dos preços destes antivirais. Mas Maria José Campos receia que quem precise do truvada já esteja a fazer aquilo a que chama de “PrEP selvagem”. “Há quem já esteja a encomendar o medicamento pela Internet. E pode estar a comprar gato por lebre”, explica a médica. Como a venda de medicamentos na Internet não é controlada, é possível que as embalagens de truvada compradas não tenham o comprimido, mas algo a imitá-lo. Além disso, sem acompanhamento médico, estes utilizadores correm o risco de se automedicar erradamente e de não serem seguidos — o medicamento pode ter alguns efeitos secundários, a maioria fracos como dores de cabeça ou enjoos que depois tendem a passar.
No comentário ao artigo, Chris Beyrer e Kenneth Hugh são peremptórios: “Os serviços de prevenção do VIH devem expandir-se em todo o mundo para oferecer rotineiramente a PrEP àqueles que podem beneficiar.”