A estreia de uma provável ópera de repertório

Giordano Bruno candidata-se a ser uma obra de referência no repertório operático contemporâneo, tendo sido uma aposta ganha pela Casa da Música a programação da sua estreia mundial.

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Em cena estiveram quatro excelentes cantores que interpretaram os personagens principais Casa da Música
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O libreto, a composição musical e a encenação confluíram num objecto único, resultando numa obra genuinamente transdisciplinar. Esta simbiose é uma verdadeira homenagem aos princípios basilares da filosofia cosmológica de Giordano Bruno: a multiplicidade da unidade e a unidade da multiplicidade.

Estruturado em duas partes e doze cenas o libreto e a música oscilam entre dois planos distintos: por um lado os princípios filosóficos de Giordano Bruno (o mundo das ideias, a contemplação do sublime e do infinito), por outro o julgamento do filósofo (a imposição dogmática, o processo inquisitório). Este contraste entre cenas contemplativas e cenas de acção, garante a filiação numa concepção tradicional de ópera mas vai muito mais além ao nível dramatúrgico, valendo-se da constante dialéctica entre os dois planos que só se dilui na última cena após o martírio – O Supremo Bem.

A música de Filidei é intensa. A partitura sublinha o conteúdo emocional de cada cena, destacando-se a delicadeza das texturas sonoras do Preâmbulo e das Cenas de Filosofia, o vigor rítmico de Carnaval e a forte carga emocional e psicológica das cenas de Inquisição (Interrogatório, Tortura, Condenação e Fogueira). O recurso frequente a ostinati revelou-se um recurso dramático particularmente eficaz na expressão e confrontação obsessiva das convicções de Giordano Bruno e dos Inquisidores.

A utilização de alguns instrumentos menos convencionais – tubos flexíveis, rombos, apitos e copos de água, entre outros – enriqueceu a paleta tímbrica da orquestra. O recurso frequente a sons de sinos, assim como à citação de fragmentos de música antiga (nomeadamente canto gregoriano e polifonia renascentista), sugerem espaços e tempos da vida de Giordano Bruno sem no entanto esquecer a reflexão contemporânea sobre esta figura histórica.

Quanto à encenação destaca-se o requinte e a eficiência dos meios utilizados – nomeadamente dos figurinos, adereços e trabalho de luz – assim como a movimentação cénica de Lionel Peintre (Giordano Bruno) e dos doze cantores do coro. Antoine Gindt e a sua experiente equipa resolveram com extraordinária perícia os desafios cénicos que esta ópera colocou, nomeadamente a necessidade de transformação contínua dos recursos cénicos (sem maquinaria de cena) em função de cada uma das doze cenas.

Em cena estiveram quatro excelentes cantores que interpretaram os personagens principais – Giordano Bruno, dois Inquisidores e o Papa Clemente VIII – e o coro. Os desempenhos vocal e cénico dos quatro protagonistas foram de elevadíssima qualidade. Destaca-se o barítono Lionel Peintre pelo rigor da interpretação vocal, pela intensidade psicológica que conferiu ao personagem e disponibilidade física – características distintivas deste cantor que já se apresentou por diversas vezes na Sala Suggia. Merece ainda especial destaque o excelente desempenho do tenor Jeff Martin (Inquisidor I), cuja parte vocal é de elevada dificuldade técnica, e ainda os cantores que integraram o coro que para além do bom desempenho vocal demonstraram grande versatilidade cénica. O coro interpretou diferentes grupos – um bacanal, encarnação dos quatro elementos, um coro de meninos e monges numa missa, o povo que assiste ao martírio, entre outros – cumprindo a sua original função como elemento estrutural no teatro grego antigo.

O maestro Peter Rundle e os músicos do Remix Ensemble souberam sublinhar a riqueza sonora da partitura de Filidei e compreender de forma excelente a sua função dramática.

Giordano Bruno candidata-se a ser uma obra de referência no repertório operático contemporâneo, tendo sido uma aposta ganha pela Casa da Música a programação da sua estreia mundial.

 

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