O sucesso de uma jogada de alto risco
Há quatro anos, António Costa e Catarina Martins não eram líderes partidários. Passos Coelho prometia não cortar salários. Paulo Portas foi a votos sozinho. Jerónimo de Sousa viajou a Havana e encontrou-se com Raúl Castro. Terceiro artigo da série "Quatro anos que mudaram a vida deles (e a nossa)."
Era cristalino o ar de satisfação com que Paulo Portas presidiu no final de Agosto à cerimónia de lançamento da primeira pedra do IKEA no Algarve. Uma satisfação que lhe advinha de estar perante “um dos maiores” investimentos em Portugal nos últimos quatro anos. Além de satisfeito por ter cumprido o seu objectivo enquanto vice-primeiro-ministro com a responsabilidade formal de coordenar as questões económicas no Governo, Portas estava manifestamente aliviado. Tinha conseguido concretizar um projecto que começara por estar previsto para Portimão e acabou em Loulé, mudança de localização que foi um da dúzia de impedimentos administrativos e processuais em que o projecto tropeçou.
Um deles, lembra Portas com um sorriso, foi a magna questão das osgas-turcas. E explica à Revista 2 que a certa altura as preocupações ambientais dos suecos embateram na campanha de organizações ecologistas que questionavam a construção do empreendimento por poder pôr em causa o habitat natural de nidificação daquela espécie de reptéis. Perante o risco de a IKEA desistir, Portas teve de dar “medidas de compensações ambiental”, garantir que a espécie não ficaria em perigo e que o que havia mais em Portugal era osgas-turcas.
Poucas terão sido, porém, as vezes em que se reduzem a histórias risíveis os obstáculos com que se deparou na sua qualidade de vice-primeiro-ministro, função que desempenhou nos últimos dois anos com uma discrição que contrasta com o tom contestatário e reivindicativo que assumiu face ao parceiro de coligação, o PSD, nos dois primeiros anos, ocupando então o cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros.
Pelo meio fez o Governo “passar o Cabo das Tormentas”, provocando a crise aberta com a sua demissão “irrevogável”. Jogou todo o seu peso e todos os seus trunfos para conseguir o objectivo do CDS de que houvesse equilíbrio no Governo entre o pilar financeiro e o pilar económico. Uma jogada de alto risco em que teve sucesso. Como vice-primeiro-ministro a partir de 24 de Julho de 2013, passou a ser responsável pela coordenação económica do executivo e realizou com periodicidade quinzenal, tendencialmente às quintas-feiras, a Reunião de Coordenação de Assuntos Económicos e Investimentos, conhecida na gíria como “recaei”. Um miniconselho de ministros presidido por si, coadjuvado por Marques Guedes e por Pires de Lima, com uma agenda preparada pela Agricultura, a Economia e a Energia, que juntava vários secretários de Estado, no total de dezena e meia de departamentos governamentais. A ideia era reduzir os entraves administrativos e resolver casos concretos, já que Portas é defensor de que “os investidores têm direito a um sim ou um não a tempo e a respostas coordenadas, pois tempo é dinheiro”. O próprio assume à Revista 2 que foi um dos trabalhos que mais gostou de fazer até hoje e que encara como uma forma de superar a “tendência nacional para burocratizar e complicar”.
O fracasso da reforma
De todas as novas funções que abraçou como vice-primeiro-ministro, o fracasso surgiu com a reforma de Estado. Gorando as expectativas criadas na opinião pública, a tarefa ficou-se pela elaboração do texto “Um Estado melhor”, aprovado em Conselho de Ministros a 30 de Outubro de 2013. O objectivo de reformar o Estado ficou-se por esse momento de propaganda. E criou perplexidade sobre as razões que levaram um político experiente a aceitar uma tarefa impossível de concretizar com o país sob intervenção estrangeira e com os níveis de desemprego a subir, para mais sem consenso interpartidário alargado sobre quais as funções do Estado a reformar.
Sobre esta questão Portas faz questão de explicar à Revista 2 que não era sua função dirigir a reforma de Estado, mas apresentar um guião: “Não tive nem tenho o pelouro da reforma do Estado. Tive a missão de apresentar um guião de reforma do Estado que tem 118 medidas em concreto que modernizam o Estado e que a meu ver devem ser desenvolvidas por todos os departamentos da administração e muitas delas podem ser partilhadas por qualquer governo.”
É o vice-presidente do CDS Diogo Feio quem afirma: “Se alguém pensava que um documento apresentado durante a intervenção da troika ia mudar a Segurança Social, a Saúde, a Educação, eu sempre tive a maior das dúvidas.” E considerando que “as reformas têm de ser feitas pelos ministérios no seu todo e não por um superministro”, Diogo Feio lembra que no segundo Governo de António Guterres, Alberto Martins teve o pelouro da reforma do Estado e também “não fez nada”.
Com a tutela da coordenação económica, Portas multiplicou-se em contactos em prol da Economia. Foi uma espécie de ministros dos Negócios Estrangeiros que tem a cargo “o lado AICEP, sem o peso de representação institucional e sem ter de aturar a elite diplomática”, resume um dirigente do CDS. Assume um papel no Governo que vem na continuidade dos seus dois primeiros anos como chefe da diplomacia. Uma presença no Palácio das Necessidades que marcou com dois movimentos de embaixadores, mudando 70 postos diplomáticos e combinando “tudo ao milímetro” com o Presidente da República, com quem se reunia a um ritmo no mínimo semanal e com quem decidia todas as opções: desde os mercados em que apostar às prioridades.
A nova relação que construiu com o Presidente é uma das novidades na vida de Portas, que assim conseguiu enterrar a hostilidade e crispação entre si e Cavaco Silva que vinha do tempo em que dirigiu O Independente. Já no PS, Portas teve sempre como interlocutor João Ribeiro, do secretariado nacional.
Dos tempos de MNE, o próprio Portas sublinha à Revista 2 a singularidade do papel de Portugal como observador na ONU para o reconhecimento da Palestina, bem como as conversas que manteve com Hillary Clinton e Joe Biden, da Administração americana, sobre “o erro e a injustiça” da manutenção do embargo a Cuba que “não traz mudança e prejudica os mais pobres”. Ainda no plano internacional, Portas foi sempre crítico da forma como a União Europeia geriu a relação com a Rússia a propósito da Ucrânia, afirmando várias vezes: “Escolhemos os amigos e não os vizinhos.” Já em relação à Síria considerou sempre que “o Ocidente não soube escolher nem adversários nem aliados”.
Por fim, só os dois
O fim da tensão no Governo reflectiu-se sobretudo na relação de Portas com o primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho. Conseguiram mesmo um grau de cumplicidade que é revelado pelo sigilo com que tomaram decisões sobre a coligação Portugal à Frente — só os dois sabiam, por exemplo, que o acordo formal entre PSD e CDS seria assinado a 25 de Abril.
As boas relações entre os dois líderes existiram também no Governo, onde Pires de Lima acabou por não precisar de fazer pontes entre ambos, ainda que se tenha disponibilizado para isso. “Eles acertaram-se”, diz um dirigente do CDS, frisando que todo o processo das europeias e o das legislativas foi conduzido pessoalmente por Portas e Passos e que no CDS coube ao líder decidir tudo, incluindo quem era candidato e onde, ganhando a oposição de distritais como as de Braga, Aveiro e Faro.
Um membro do Governo afirma que a saída da troika a 17 de Maio de 2014 ajudou imenso a distender as relações: passaram a decidir sozinhos, sem a “interferência dos três senhores da pasta”. Um período em que a maioria vai ganhando confiança, apesar do susto das europeias, em que a coligação se fica pelos 27,71% e o PS sobe aos 31,46%. Para a distensão contribuiu também a melhorias de alguns indicadores económicos, como o défice, o desemprego e as exportações. “Agora o Governo já pode andar na rua”, frisa um dirigente do CDS. E, ao que a Revista 2 apurou, há o compromisso assumido por Portas junto de Passos de que, se a coligação ganhar, ele não sairá do Governo.
O sucesso da jogada de alto risco para reequilibrar o peso das áreas de governação no Governo e o peso do CDS no executivo revelaram também um Portas mais maduro. Apesar de os olhos continuarem a brilhar vigilantes em cada momento da conversa privada ou da prestação política, Portas é hoje um homem manifestamente mais tranquilo, amadureceu ao longo dos últimos quatro anos e largou a atitude de quem estava permanentemente grávido de pátria e empanturrado em interesse nacional. A teatralidade da sua posse mantém-se, porém, e continua a saber capitalizar até com o ridículo que por vezes pode raiar essa mesma teatralidade. Tal como sabe cada vez melhor tirar partido do efeito que causa perante os interlocutores e a ter uma desconcertante capacidade de rir de si mesmo — como quando, este ano em Maputo, se voltou a comparar a uma personagem das histórias de Tintim, de Hergé, o português Oliveira da Figueira, que calcorreava tiras e as pranchas da banda desenhada belga, vendendo este mundo e o outro.
A calma que exterioriza relativamente à forma como hoje encara o poder revela que aprendeu a conviver com a ansiedade, durante uma legislatura em que passou a cinquentão — fez este sábado, 12 de Setembro, 53 anos. A aprendizagem do controlo sob o stress é visível, por exemplo, nas mãos limpas de vestígios de quem foi um intenso roedor de unhas, assim como na muito menor sofreguidão com que puxa as passas dos cigarros Lucky Strike, vermelho, que prefere, até porque considera que têm a embalagem com o design mais bonito. Um hábito que lhe deixa marcas na respiração no final das frases mais longas, mas cujos efeitos são contrariados pelo bem que lhe faz a hora e meia de ginásio a que se dedica ao fim da tarde três vezes por semana. O ginásio é mesmo o local onde aprendeu a estar desligado do mundo. Sem rede no telemóvel, acabou por perceber que o mundo continuava a girar sem si.
A relação com o telemóvel é, aliás, um elemento do seu quotidiano que mais assinala o seu ritmo. Tanto que estar de férias é conseguir prescindir dele. Este ano conseguiu parar dez dias. Esteve no Alentejo, no Algarve e em Marrocos. Privilegiou a família — um núcleo afectivo que ficou abalado com a morte do irmão, Miguel Portas, de cancro no pulmão aos 54 anos, em 24 de Abril de 2012. Este Verão, Paulo Portas conseguiu estar com a irmã, Catarina Portas, o pai, Nuno Portas, e a mãe, Helena Sacadura Cabral, tendo até arranjado tempo para visitar com esta última a Festa da Flor em Campo Maior. O lazer passa também por poder ler, sobretudo literatura latino-americana de que é um devoto. Falante de várias línguas, não espera traduções e, apesar de assumidamente info-excluído, compra os livros pela Amazon com a ajuda do seu adjunto Diogo Belford.
Leitor compulsivo, nos últimos anos diz que foi surpreendido por alguns escritores como o columbiano Juan Gabriel Vásquez e o seu El Ruido de las Cosas al Caer, que classifica de genial, ou Alonso Sánchez Baute com o seu Librenos del Bien. E, claro, o “incrivelmente bom” livro que é El Hombre Que Amaba a los Perros, de Leonardo Padura, sobre o assassino de Leon Trotsky, figura que vê como a mais interessante da revolução russa. Gostou tanto que deu este livro “a toda a gente” no último Natal. Prepara-se para ler uma biografia de Frei Bartolomeu de Las Casas, assim que acabar a biografia de Filipe II de Espanha e I de Portugal, El Rey Imprudente, de Geoffrey Parker, que devorou em parte durante as 11 horas de voo na última ida a Moçambique. No domínio das biografias diz ter ficado marcado com a de Gabriele d’Annunzio, que leu o ano passado.
A leitura de telegramas diplomáticos, documentos de Estado e livros é o que o tem ocupado cerca de 20% do tempo que passou, nos últimos quatro anos, em aviões e aeroportos, onde lamenta não conseguir dormir, nem poder fumar. Outra coisa que não faz nos aviões é ver filmes. Amante de cinema não cede no princípio de que para haver cinema é preciso uma sala escura e um ecrã gigante. Continua assim, quando pode, a ir ao cinema à meia-noite e, nestes quatro anos, do que viu destaca o filme sobre o Irão Taxi, de Jafar Panahi, e os filmes Relatos Selvagens, de Damián Szifrón, e Philomena, de Stephen Frears, onde sublinha o “papelão” de Judy Dench.
“Bullying político”
“Passos e Portas terão sempre duas versões da crise e as duas versões são verdadeiras”, garante um importante dirigente do CDS à Revista 2. Mas a leitura que é feita do lado do CDS e de Portas não subscreve a ideia de que a demissão irrevogável, a 2 de Julho de 2013, foi fruto de Portas “se ter passado” com a nomeação de Maria Luís Albuquerque ou que “gripou os fusíveis” desgastado pelo jet lag de sucessivas “viagens loucas”, tendo chegado na véspera do Bahrein, depois de ter percorrido uma rota por três continentes que o levou do Brasil a África e Médio Oriente. Pelo contrário, a leitura que é feita hoje é que, ainda que de forma sofrida e com uma dose de risco que não controlava, Portas fez o seu jogo político para imprimir ao Governo o rumo que considerava necessário e recolocar o CDS na relação institucional. Uma jogada que programou e desenrolou sozinho, sem que ninguém da direcção do CDS tivesse conhecimento prévio. Nem sequer os dirigentes que estiveram com ele reunidos na sede do Largo do Caldas na véspera à noite se aperceberam do que ia acontecer.
Portas é considerado pelos seus próximos um político racional e frio, por mais afectivo e emocional que seja na sua exteriorização da política. Além disso, é senhor de uma experiência de mais de duas décadas em funções de Estado. Deputado desde 1995, líder do CDS primeiro entre 1998 e 2005 e de novo desde 2007 até agora, Portas foi já ministro da Defesa (2002 a 2005), nos governos de coligação PSD-CDS, liderados por Durão Barroso e por Santana Lopes. É durante o mandato como ministro da Defesa que surgem as suspeitas de que Portas tivesse ligações ao “caso dos submarinos”, recentemente arquivado.
A própria cronologia dos factos revela que a crise no Governo era antiga. A relação era tensa entre os dois líderes da coligação, em que o primeiro-ministro assumia uma atitude presidencialista, o que deixava Portas numa situação que era vista no CDS como humilhante. E cada vez que estava em causa as apostas em relação ao Orçamento do Estado a relação descambava. O modelo de governo e de relação entre os dois partidos estava esgotado. O CDS estava farto de engolir em seco no lugar de terceira força de um governo, em que o tecnocrata e todo-poderoso ministro das Finanças, Vítor Gaspar, impunha a linha de governação e dominava o Conselho de Ministros, num autoritarismo classificado por um importante dirigente do CDS como “bullying político”.
Assim, a partir do início da 7.ª avaliação da troika, a remodelação profunda era uma exigência, tanto mais que era sabido dentro do Governo que o próprio Gaspar não queria continuar. Portas foi dando sinais a Passos e ao PSD, através de posições pessoais ou através das suas “outras metades” políticas, António Pires de Lima e Diogo Feio. E preparou o partido para a eventualidade de precisar de ser substituído: pediu a Pires de Lima e a Nuno Melo que apresentassem moções ao congresso do CDS marcado para 6 e 7 de Julho e depois adiado em plena crise para Janeiro de 2014. Nesse congresso, em Oliveira do Bairro, Portas será absolutamente transparente sobre o que se passou, ao afirmar no palco: “O que teve de ser teve muita força.”
O confronto com a linha Gaspar surgira já em 2012, quando foi visível que Portas assumia dentro do Governo o papel de polícia mau face à troika, chamando aos representantes da Comissão Europeia, do Banco Central Europeu e do Fundo Monetário Internacional “sindicato de credores” e considerando que Portugal estava “sob protectorado”. Desde o início, a divergência com o ministro das Finanças era clara em torno da política fiscal, que penalizava a classe média e que era vista como radical no Largo do Caldas. Assim, quando, em plena 5.ª avaliação, Passos anuncia pela televisão, a 7 de Setembro desse ano, que vai descer a TSU para as empresas de 23,75% para 18%, e subir de 11% para 18% a TSU dos trabalhadores, o CDS opõe-se.
Com Portas no Brasil, a posição do CDS é gerida no Governo pelo ministro da Segurança Social, Mota Soares, que no final de Agosto recebera já um documento sobre os limites das cedências do CDS manuscrito por Portas em Moçambique e sistematizado em computador pelo seu adjunto, o ex-jornalista da SIC Miguel Guedes. Foi Mota Soares o único dirigente do CDS que defendeu a medida em declarações públicas em Ponte de Lima, no dia 8. E foi o único a defendê-la numa reunião do partido dois dias depois. A posição oficial do CDS é expressa a 11 de Setembro pelo deputado Adolfo Mesquita Nunes no final da última reunião com a troika: “Não há espaço para alterar, do ponto de vista de agravamento das condições fiscais, o que está já previsto no memorando de entendimento.”
No sábado, 15 de Setembro, quando mais de um milhão se manifesta nas ruas bramindo “Que se lixe a troika”, o conselho nacional do CDS reúne-se no Porto e está contra a TSU. No domingo é a vez de Portas assumir perante as televisões em directo: “Se me perguntam se eu soube? Claro que soube. Se me perguntam se eu tive uma opinião diferente? Tive uma opinião diferente. Se me perguntam se eu alertei? Alertei. Se me perguntam se eu defendi que havia outros caminhos? Defendi… Se me perguntam se eu bloqueei a decisão? Não bloquei, pela simples razão de que fiquei inteiramente convencido que isso conduziria a uma crise nas negociações com a missão externa, a que se seguiria uma crise de governo, a que se seguiria um caos que levaria a desperdiçar todo o esforço já feito pelos portugueses. O Governo é um só, os partidos que o apoiam é que são dois. Nem haverá dois governos, nem será possível a maioria ter um só partido.”
Momentos depois, na sede do PSD também em directo, o vice-presidente Jorge Moreira da Silva responde, mas o clima acalma ali. Até porque Cavaco Silva toma em mãos a gestão da crise e a 21 de Setembro, perante o Conselho de Estado, o primeiro-ministro e o ministro das Finanças deixam cair o aumento da TSU. Em alternativa, a 3 de Outubro, Gaspar anuncia o “enorme aumento de impostos”, com destaque para a criação da sobretaxa de 4% sobre os rendimentos em 2013. No dia seguinte, em protesto, os deputados do CDS da Comissão de Orçamento e Finanças não aplaudem de pé Passos Coelho no Parlamento. A oposição à política fiscal é assumida mais uma vez pelo CDS, que acaba por conseguir apenas a descida da sobretaxa de 4% para 3,5%.
Tensão cresce
As pequenas conquistas do CDS não satisfazem Portas, que tem uma noção diversa do perfil da governação e uma preocupação assumida com os interesses da classe média. E a tensão volta a rebentar na 7.ª avaliação em Março de 2013. Os sinais exteriores de que o CDS quer mudanças são dados no conselho nacional de dia 23, com Pires de Lima a pedir mais economia e a criticar a coordenação do Governo, isto é, Miguel Relvas: “Eu acho que é necessário reforçar a capacidade política deste Governo, a capacidade de coordenação política deste Governo. Falta muitas vezes capacidade e competência política a este Governo. E falta, do meu ponto de vista, dar uma outra prioridade ao tema importante da economia, nomeadamente outra eficácia na captação de investimento.” A ideia de remodelação é apoiada no mesmo dia em declarações aos jornalistas por Diogo Feio.
Portas mantém-se calado, mas a 13 de Abril falta à posse de Poiares Maduro, na remodelação que Passos aceita fazer quando Miguel Relvas se vê forçado a demitir-se (4 de Abril) pelo desgaste da sucessão de casos que atinge o clímax com a falta de credibilidade do seu diploma universitário. E no dia a seguir cabe de novo a Pires de Lima dizer o que Portas não pode dizer. “Se esta substituição de um ministro por dois ministros for o primeiro acto de uma remodelação a que falta ainda conhecer o final, diria que é um bom primeiro acto”, afirma, sublinhando que a fase do processo de ajustamento “exige dar outro peso à Economia, valorizá-la”. E concretiza: “Creio mesmo que já só se fará se elevarmos o Ministério da Economia à categoria de Ministério de Estado, para estar no mesmo plano do Ministério das Finanças.”
A 5 de Maio é a vez de, numa conferência de imprensa convocada para a sede do CDS, Portas atacar Passos e a taxação adicional de pensões, que Gaspar preparava para incluir no acordo com a troika durante a 7.ª avaliação e contornar o chumbo do Tribunal Constitucional a anteriores soluções. “O primeiro-ministro sabe e creio ter compreendido que esta é a fronteira que não posso deixar passar. Não quero que em Portugal se verifique uma espécie de cisma grisalho.” Uma semana depois, Portas apenas consegue que o Conselho de Ministro passe a “facultativo” o carácter “obrigatório e prioritário” do novo imposto sobre pensões que ia somar-se à CES (contribuição extraordinária de solidariedade).
Até que a 1 de Julho Gaspar consuma a sua demissão e Passos faz subir a secretária de Estado Maria Luís Albuquerque a ministra, assumindo assim uma linha de continuidade no perfil do Governo. Foi a gota de água na paciência de Portas, que tem já admitido em privado que “Paulo Macedo daria um bom ministro das Finanças”. Mas é sabido também que hoje Portas vê Maria Luís Albuquerque como uma governante que soube fazer o seu lugar e sair do padrão Gaspar.
Então, perante os factos consumados que adiam sine die as soluções que defende, Portas decide virar a mesa. E na manhã de 2 de Julho escreve a carta da demissão que foi passada a computador por Miguel Guedes. Portas continua a não escrever em computador, usando para apontamentos e anotações de leitura um lápis, de preferência com borracha na ponta. Para cartas pessoais usa uma caneta de tinta permanente da Parker que lhe foi oferecida pelo avô, há 40 anos. Já para os discursos continua a utilizar caneta de filtro grosso Futura azul, sobre folhas A4 brancas, que usa em quantidade, pois cada vez que se engana recomeça numa folha limpa — detesta rasuras.
A novidade em matéria de discursos, nesta legislatura, é que todos os que fez no Parlamento foram escritos na sala dos presidentes do CDS em São Bento. Sempre de manhã bem cedo. Levantava-se às cinco, às seis chegava à Assembleia da República; às sete e meia, quando entrava a senhora que faz a limpeza do grupo parlamentar, Portas aproveitava para conversar sobre a crise e ter o feedback da política do seu Governo. O carácter madrugador do novo Portas é uma das novas características que as funções executivas lhe trouxeram. Morando em Caxias, sai de casa por regra antes das 7h45, para fugir ao trânsito na A5. Nenhum dos seus dias começa sem tomar café.
Aposta de risco
A “demissão irrevogável” surpreende o país e o próprio CDS. Apenas parece não surpreender o primeiro-ministro. Político que calcula os caminhos e as opções a longo prazo, o cerebral Passos Coelho não perde a cabeça fria e num tom definitivo vai às televisões, quatro horas depois da demissão, avisar que não aceita a saída de Portas. Era a resposta que deixa o CDS aliviado e que Portas queria ouvir. Afinal, estava ultrapassado o risco máximo: o de ter mesmo de deixar o Governo e passar a liderança do CDS a outro dirigente, já que nunca esteve em causa a ruptura da coligação e muito menos fazer cair o primeiro-ministro.
No partido, o primeiro a saber foi Pires de Lima. Sem poder atender o telefone toda a manhã, foi recebendo sms de Portas até que soube por este do que se estava a passar. Perplexo e tendo faltado à reunião da véspera à noite no Caldas, ligou sucessivamente a Luís Queiró, Nuno Melo, João Almeida e Nuno Magalhães, para saber se se passara alguma coisa, sem explicar porque perguntava. Ninguém notara nada. Mas, assim que ao princípio da tarde a notícia surgiu, foi organizada a demarcação por parte dos secretários de Estado e ministros do partido para salvaguardar que o CDS ficaria de fora da demissão.
Na quarta-feira, 3 de Julho, a comissão executiva reúne-se. Diogo Feio e Nuno Melo participam através de Skype. Garantem os presentes que Portas nunca foi tão criticado. Apenas Assunção Cristas e Mota Soares mostraram compreensão. Segue-se João Almeida, que inicia as hostilidades. Portas sabia já que ia recuar na irrevogabilidade da sua demissão, ainda que tenha ficado para sempre com a imagem de leviano. O próprio assumiu recentemente esse risco como menor ao afirmar em entrevista à SIC: “Eu revoguei essa decisão, pago o preço em termos de compreensão, por ter feito essa revogação. Aquilo que, para mim, é mais importante, é que conseguimos chegar a um acordo.” (21/07/2015) Um acordo anunciado a 5 de Julho que incluiu já a estratégia para as autárquicas e as europeias, além de reestruturar o Governo, em que Pires de Lima entra como ministro da Economia e Portas passa a vice-primeiro-ministro.
Mas antes Portas e Passos tiveram de passar pela experiência de se verem forçados pelo Presidente a tentar um “compromisso de salvação nacional” com o PS. Em troca do “sim” dos socialistas, Cavaco Silva oferecia a antecipação das legislativas para o Verão de 2014, assim que a troika saísse.
De acordo com as informações recolhidas pela Revista 2, Passos Coelho nunca acreditou que o PS aceitasse um acordo. No dia a seguir à demissão de Portas, Passos vai a Berlim reunir-se com a chanceler alemã, Angela Merkel. De caminho aproveita para pedir ajuda ao presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, e ao presidente do Parlamento Europeu, o socialista Martin Schulz, para que este estabeleça a ponte com o PS de modo a garantir a governabilidade, caso a coligação com o CDS se afunde. Passos volta a Lisboa, sabendo que António José Seguro não queria acordos e que os socialistas pretendiam eleições antecipadas logo, convencidos de que teriam maioria absoluta.
Daí que, quando, a 19 de Julho, aparentemente pressionado por socráticos e soaristas, Seguro abandona as negociações mediadas por David Justino, em representação do Presidente da República, Passos não ficou surpreendido, ao contrário de Cavaco e de Portas. Nas negociações, o CDS esteve representado por Mota Soares e Portas empenhou-se em tentar garantir a satisfação das exigências socialistas, ao ponto de aceitar negociar com a troika uma maior margem de défice. Não valia a pena.
Sair de cara limpa
Ao fim de uma legislatura em que contribui para que pela primeira vez em Portugal um governo de coligação chegue ao fim do mandato, Portas parte para mais uma campanha eleitoral e convicto de que pode sair vitorioso de novo. É um político feliz. Desta vez, o Governo acabou bem. O PSD e o CDS cumpriram a missão de concretizar o memorando da troika. E tiveram o privilégio de ver os “três senhores da mala” saírem do país, sem novos empréstimos, sem espiral recessiva, sem mais intervenção directa dos credores. Como Portas diria: acabou-se o protectorado. A atitude com que se apresenta aos eleitores é muito diversa da que tinha quando o Presidente Jorge Sampaio despediu o Governo que dirigia com Santana Lopes. Em 2005, foi difícil ao líder do CDS dar a cara na campanha — tanto que Portas adoptou então a táctica de passear pelo país dentro de uma tenda, cenário que disfarçava a falta de entusiasmo. Agora tem a noção do dever cumprido.
É essa a leitura que o especialista em publicidade Carlos Coelho, presidente da Ivity, faz. “Estes últimos quatro anos foram a alteração profunda de como ele gere a imagem. Vem da imagem de enfant terrible para alguém que tem de ter posição de Estado. Passos Coelho não fez esse caminho. Portas começa por ser um tipo cheio de si próprio, pedante, para ser o embaixador do país”, diz. E salienta as características que compõem a imagem pública de Portas: “É prático a abordar os assuntos, pragmático na busca de soluções, potentíssimo, persistente, perseverante, tem um discurso incisivo, curto, organizado, gere muito bem a sua imagem pessoal, é polido, bem vestido, bem-educado, bem falante, menos arrogante, menos presunçoso, culto e com mundo.” E conclui: “Não sei se isto é verdade, mas é a única explicação que encontro. Ele tem a possibilidade de aparecer como um patriota. Só isso justifica que possa dar o dito por não dito. Ele sempre falou da defesa do interesse nacional, quando se demite e quando se reintegra.”
A mesma leitura é feita por Pedro Bidarra, também especialista em publicidade e imagem. “Ele aparece com o descanso do dever cumprido e a coligação com mensagem de esperança”, afirma Bidarra. E sublinha: “Pode constar na história como alguém que ajudou a recuperar o país.” “Portas aguentou estoicamente e até apoiou coisas que eram contra a sua posição. Passos é o homem que aplicou o programa da troika. Portas é o príncipe da coligação e os príncipes saem sempre melhor”, frisa.
À beira da campanha, os correligionários de Portas garantem que está entusiasmado como há muito não o viam — apesar de, pela primeira vez, estar a fazer uma campanha como líder do CDS em que não é cabeça de cartaz, já que o primeiro lugar nos palcos eleitorais é para o presidente do PSD. Mas foi destacado por todos os interlocutores da Revista 2 na preparação deste trabalho que há uma “excelente” articulação com Passos, para além de que a coligação tem um discurso claríssimo e muito bem acertado entre ambos.
É claro que o risco da derrota eleitoral está também presente. E uma das questões centrais que se colocam nessa situação é a de saber o que vai fazer Portas. Para mais, quando se trata de alguém que “respira política desde as seis da manhã, já que agora até se levanta cedo”, questiona-se um dirigente do CDS. E acrescenta: “Ele coordena tudo, fala com todos os secretários de Estado, com todas as concelhia. Quando uma pessoa sai de uma função destas, é um drama por causa da adrenalina, quanto mais ele.” Mas sobre o seu futuro o próprio nada diz, apenas sorri.