As brincadeiras dos irmãos Lawrence como Disclosure
Depois da aclamação global com o álbum de estreia, os Disclosure, regressam com um disco mais diversificado, ao lado de Lorde ou Miguel. Guy Lawrence diz que não quiseram fazer um álbum apenas de música house.
Quando lançaram o primeiro single ainda não tinham transposto a fasquia dos 20 anos e quando saiu o seu primeiro álbum, Settle (2013), pouco mais tinham. Talvez por isso seja estranho ouvir Guy falar-nos, ao telefone, de uma noite há apenas seis anos que parece ter mudado a sua vida, como se tivesse sido há muito tempo. “Foi numa noite com Joy Orbison e Person Sound que acordei definitivamente para essa vontade de fazer música mais a sério. Claro que tinha havido outras noites importantes, mas naquela fui para a casa com aquela música na cabeça. Antes podia ouvir géneros como grime ou dubstep, mas aquilo era outra coisa, um som de dança com baixo potente que acabou por ser marcante.”
Agora, seis anos depois, ei-los no centro das atenções do mundo da música, prestes a editarem um segundo álbum – Caracal sai a 25 deste mês – para o qual convidaram um naipe invejável de cantores conhecidos (Miguel, Sam Smith, Weeknd, Gregory Porter, Lorde) e outros em vias de o serem, como Kwabs ou Nao.
É um álbum totalmente composto por canções, com ritmos a velocidades diversificadas, embora a música house, na variável mais plana e sedutora, continue a predominar, como já acontecia na estreia. “Sim, é verdade, que do ponto de vista sonoro o novo disco não é radicalmente diferente do anterior, constituindo mais uma continuação”, diz-nos Guy. “A maior diferença é que neste álbum cada canção é tratada como tal, ao mesmo tempo que existe maior diversidade de tempos rítmicos, com canções mais próximas da dança e outras num registo mais lento, com influências de soul, R&B, pop e até de jazz, que sempre ouvimos. Não queremos ser apenas conhecidos pela música house.”
Algumas das canções de sucesso do álbum de estreia, como White noise, com Aluna George, ou Latch, com Sam Smith, já resultavam de colaborações, mas no novo registo levaram essa filosofia mais longe. “A maior parte das pessoas com quem trabalhámos conhecemo-las em digressão ou noutras circunstâncias de trabalho; de outras eramos apenas admiradores, como no caso de Weeknd”, afirma Guy, ressalvando que todas as canções foram compostas e escritas em parceria, ao piano, com as letras a reflectirem experiências diversas, depois de conversas tidas entre os dois e com os respectivos participantes. “A composição é muito importante e surge antes da produção e de tudo o resto. Se não tivermos uma boa canção entre mãos nada mais vale a pena.”
Quando lhe perguntamos qual foi a colaboração que resultou mais fácil e qual foi a mais difícil, opta por uma resposta polida, rindo-se ao mesmo tempo, sublinhando que a mais surpreendente foi com Miguel. “Não esperávamos que fosse tão diligente, fazendo parte de todo o processo, envolvendo-se verdadeiramente com paixão, o mesmo acontecendo com Weeknd, embora mais reservado.”
Nome firmado no jazz, Gregory Porter, talvez não fosse o convite mais óbvio para uma cooperação com o duo, mas Guy tem outra visão. “Ouvimos imenso jazz e música brasileira, como João Gilberto, por exemplo. Na verdade só descobrimos a música house há poucos anos. Portanto, a partir do momento em que decidimos que queríamos ir além da música de dança, pareceu-nos que Gregory Porter seria uma boa hipótese, porque tem uma voz soul simplesmente fantástica. Conhecemo-nos nos Grammy há dois anos, quando ele ganhou em Álbum de Jazz, e convidámo-lo.”
Curiosamente a prestação vocal mais inesperada acaba por ser a de um tal de Jordan Rakei, ao que parece descoberto pelo duo através de um amigo que o viu cantar num bar na Austrália. Em Masterpiece o ritmo é lento, a atmosfera lânguida e a estrutura esquelética, numa canção que faz lembrar D’Angelo. “Quando eu e Howard o ouvimos ficámos de imediato convencidos e sim, criar essa canção com ele acabou por ser uma oportunidade para construirmos um tema que tem muito a ver com neo-soul.”
Nessa canção, e noutras, como na voluptuosidade sintética de Nocturnal, na tranquilidade soul de Willing & able ou no ritualismo pop de Magnets, está sintetizado o desejo do duo para este álbum. Dir-se-ia que depois de terem visto, nos últimos anos, milhares de braços no ar na sua direcção extasiados pela dança, quiseram agora diferenciar a sua área de acção, traçando um caminho entre a tradição da house e a modernidade pop.
Tempos estranhos
Ao longo dos últimos anos, os Disclosure foram capazes de recuperar influências perdidas no tempo, do deep-house americano dos anos 1990 ao garage britânico do final da mesma década, entregando-se à sua recriação sem os constrangimentos da história por perto. Por um lado possuem o olhar límpido dos seus 20 anos. Por outro existe quem também os acuse de apenas reescreverem o passado.
“Percebo que possam existir esse tipo de comentários, mas tentamos alhear-nos deles, porque sentimos que temos um som que é nosso, apesar de não estarmos imunes a influências e de as reconhecermos”, afirma Guy. Curiosamente, logo no tema de abertura, Nocturnal, com a voz de The Weeknd, existe uma citação do DJ e produtor Frankie Knuckles, lenda e pioneiro da música house nos anos 1970 e 1980, que morreu no ano passado. “Estávamos no processo de criação dessa faixa quando ele morreu e resolvemos inserir esse pormenor como forma de homenagem”, explica. “É estranha a forma como os americanos lidam com essas memórias. Recordo-me que estávamos em Chicago [berço da música house e onde Knuckles se popularizou] e falávamos de todos esses pioneiros, e as pessoas só diziam que a nossa música é que era e tal. E nós dizíamos: sim, OK, mas sem o que vocês conseguiram aqui não teria sido possível para nós.”
A história que Guy conta parece estranha, mas não o é realmente. É verdade que os Estados Unidos são a pátria da música house e tecno, mas durante anos apenas em circuitos mais minoritários era ouvida, ao contrário do que sucedeu na Europa, onde se foi popularizando principalmente a partir da década de 1990. Apenas nos últimos anos, pelo menos ao nível do grande público de massas, os Estados Unidos começaram a tomar contacto e a celebrar efusivamente música de dança como a dos Disclosure. “A grande diferença entre o que se passa no Reino Unido e os Estados Unidos é essa: em Inglaterra existe um entendimento histórico diferente desta música e nos Estados Unidos não, o que é paradoxal, porque foi ali que ela nasceu. Por outro lado o público americano exterioriza mais nos espectáculos, o que é óptimo.”
O duo já actuou em Portugal por três vezes, não escondendo que os concertos são muito importantes, na comunicação da música mas também pelos proveitos económicos que geram, principalmente no contexto actual de fragmentação da indústria.
“Chegámos numa altura confusa a este negócio, quando ninguém sabe muito bem o que fazer. Claro que, nesta fase, não nos podemos queixar, até porque o dinheiro não é a nossa principal motivação, queremos é dar a conhecer ao máximo de pessoas a nossa música porque ainda somos ignorados por muitas delas. Mas à nossa volta vemos muito artistas nossos amigos a queixarem-se de que recebem quantias residuais dos serviços de streaming. Por outro lado, hoje, com tecnologia qualquer pessoa pode aspirar a fazer música, como aconteceu connosco. Tempos estranhos.”
É isso. Quando lançaram o primeiro álbum, os irmãos Lawrence ainda viviam com os pais, também eles com um passado ligado à actividade musical. Foi na casa deles que, em grande parte, viriam a criar esse disco inaugural, a partir de algumas ideias simples mas eficazes – ritmos house desusados e refrães pop açucarados, algo capaz de seduzir os amigos, mas também as irmãs ou as mães.
O cenário agora é diferente. E a ambição também. Há mais convidados. A música está mais estilizada e diversificou-se. E as expectativas são muitas, embora eles neguem qualquer tipo de pressão. “Crescemos a fazer música, de alguma forma é como se não tivéssemos tido outra distracção ao longo dos anos e é isso que continuamos a fazer, brincando à música.”